-CARLOS FREDERICO MARÉS DE SOUZA FILHO-
Não foi fácil, nem consensual e sem disputa, escrever na constituição que são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam e mais, que são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Foi ainda menos fácil escrever que as terras tradicionalmente ocupadas destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes e que o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas.
Além disso, a duríssima disputa conseguiu definir que os direitos sobre as terras são inalienáveis, indisponíveis e imprescritíveis e são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras indígenas, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. (art. 231 e seus parágrafos)
Os povos indígenas, durante o processo constituinte não se afastaram um minuto do Congresso, pressionaram, falaram, representaram, buscaram apoios, discutiram cada vírgula. E venceram! Mas os adversários, aqueles que precisaram ser pressionados, os que votaram contra, os que sabiam que aceitar os direitos indígenas seria tirar do mercado de terras um bocado considerável de negócios sempre quiseram mitigar a clareza do artigo 231. As elites interessadas em negócios de terras, grileiros, proprietários, posseiros, aventureiros, mineradoras, madeireiras, legais e ilegais, nunca se conformaram com a norma constitucional aprovada e a hostilizaram onde tivessem um mínimo espaço, seja no STF, no Parlamento ou no Executivo, na Imprensa. Tiveram apoio em todos, nem sempre majoritários, para sorte dos indígenas.
Aprovada a Constituição os povos indígenas se empenharam em que o Brasil ratificasse e adotasse a Convenção 169 aprovada pela Organização Internacional um ano depois da Constituição, em 1989. Somente em 2004 conseguiram sensibilizar o Governo brasileiro para sua ratificação e adoção como Tratado de Direitos Humanos no sistema Jurídico interno. A Convenção entre muitos outras garantias estabelece que os povos devem ser consultados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente. Isto significa que qualquer modificação ou mitigação nas normas constitucionais acima, mesmo que por Emenda Constitucional, só será válida se houver a consulta prevista. É quase uma repetição da norma Constitucional, mas tem que ser entendida como reforço aos que pouco prezam a Constituição.
Apesar do reforço internacional, a Constituição recebeu uma primeira estocada grave na discussão judicial da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. A elite anti-indígena não conseguiu que o Supremo dissesse, conforme seu pedido, que a Constituição não existia ou não poderia ser aplicada. Era impossível ao Supremo dizer isso diante da clareza das disposições, então admitiu que a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol era válida. Inconformado em votar a favor dos indígenas, o Ministro Menezes Direito propôs uma fórmula para restringir esses direitos e dificultar sua aplicação, afirmando que somente poderiam reivindicá-lo os povos que efetivamente ocupassem território em 5 de outubro de 1988. Não contente propôs que os erros e falsidades em demarcações de terras, mesmo anteriores à Constituição, somente poderiam ser considerados para mais, isto é, se uma terra tivesse sido (como foram quase todas) demarcada menor do que realmente era, azar, teria que ficar assim para sempre. Porquê? Sem explicação aparente senão a determinação em prejudicar os direitos indígenas. O fato revelador da maldade do Ministro é que naquela ação ninguém tinha questionado o tempo ou o aumento da demarcação, foi a vontade de mitigar, diminuir, restringir direitos que levou a introduzir as nefastas ponderações, já que nada poderia fazer contra o texto literal da Constituição que garantia aos povos a integridade da Raposa Serra do Sol. Sem nenhum apreço à Constituição os ministros que acompanharam Menezes Direito não notaram que os direitos indígenas à terra eram originários.
Esta maldosa interpretação da constituição foi assumida rapidamente pela Administração Federal, ávida em transferir a sua responsabilidade de não demarcação ao órgão jurisdicional. A pujança da constituição cidadã recebeu uma agressão significativa. O Executivo já havia tentado por várias formas, desde a promulgação da Constituição, mitigá-la. Primeiro por omissão, esquecendo do prazo de cinco anos para demarcar todas as terras. Depois, quase 10 anos, produzindo uma norma que dificultava a demarcação, o Decreto nº 1.775/96. Para quem já não queria cumprir a Constituição a inventiva de Menezes Direito foi uma tábua de salvação. Mais ainda parecia pouco!
O Judiciário e o Executivo têm limites que são a própria Constituição e a Convenção 160/OIT. As forças anti-indígenas se concentraram, então, no Legislativo. Apesar de muitas tentativas, os projetos que atualizavam a legislação indigenista, como o velho Estatuto do Índio, individualista e tutelar de 1973, nunca conseguiram passar da boa intenção de um ou outro parlamentar. Mas as propostas contrárias vicejaram com claras intenções de barrar demarcações e abrir as terras indígenas à mineração, exploração madeireira e agricultura monocultural de exportação.
Nenhum dos projetos, apesar dos dispositivos da Constituição e da Convenção, ouviu os povos. Todos se apresentam com peles de cordeiro argumentando que só pensam no bem estar indígena, mas todos sofrem forte oposição dos povos. A última tentativa bisonha, que foi aprovada recentemente pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados pretende introduzir a agricultura extensiva e industrial nas terras indígenas.
Na mesma semana o Executivo voltou à carga contra os indígenas em declaração do General Augusto Heleno do Gabinete de Segurança Institucional, dizendo que as demarcações de terras indígenas devem ser todas revistas, inclusive aquela que o STF teve que reconhecer, Raposa Serra do Sol. O General investe até contra coisa julgada. Mas há uma verdade inversa nas palavras do insidioso General, de fato muitas demarcações precisam ser revistas porque foram feitas aquém da descrição constitucional porque são pequenas demais para servir de habitação em caráter permanente, para o exercício de atividades produtivas, para a preservação dos recursos ambientais necessários a bem-estar e para garantir a reprodução física e cultural do povo, segundo os usos, costumes e tradições. Além do que ainda falta terra a ser demarcada. Se alguém duvidar, faça como determina a Constituição e a Convenção 169/OIT e pergunte aos povos. Pergunte aos Guarani-Kaiowá do sul do Mato Grosso do Sul, aos Xetá, aos Avá-Guarani, aos Guarani Mbiá, aos povos do nordeste, aos Xavante, Krenak, Potiguara, Tupiniquim e muitos, muitos outros.
O General e os deputados da CCJ que aprovaram o projeto de destruição das terras indígenas não cumprem ou não querem cumprir a Lei e a Constituição talvez porque tenham medo, como os Ministros do STF que tiveram que lê-la e, então, aplicá-la.
O Brasil, se entendermos apenas os direitos reconhecidos na Constituição de 1988, fechando os olhos para o genocídio passado, ainda está em grande dívida para com os povos indígenas e, se não adimplir, apenas perpetuará o genocídio continuado. Talvez hajam, no Judiciário, Legislativo e Executivo ignorantes que pensam que os indígenas devam desaparecer, afinal há quem ache que a terra é plana, mas a maior parte está assumindo o risco ou desejando o genocídio.
Curitiba, setembro de 2019
CARLOR FREDERICO MARÉS DE SOUZA FILHO (PR) - Professor de Direito Socioambiental PUC-PR, é membro do Conselho Consultivo do IBAP, foi Procurador Geral do Estado do Paraná. Escreve todo dia 01 de cada mês.
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