-SANDRA CUREAU-
Até o dia 28 de dezembro de 2020, quarenta e sete países já haviam iniciado a vacinação contra o coronavírus. Entre eles, o Reino Unido, os Estados Unidos, diversos países das três Américas, os integrantes da União Europeia, outros países da Europa e países da Ásia. Apenas a África, dentre os continentes, ainda sofria dificuldades para implementar a vacinação.
Um dos problemas enfrentados pelos países africanos diz respeito à falta de planejamento e de preparação, conforme o informativo Euronews. Embora todos os cinquenta e quatro países tenham revelado interesse em participar da iniciativa global Covax – que agrega a Cepi (Coalition for Epidemic Preparedness Inovation), a GAVI Alliance (Aliança Mundial para Vacinas e Imunização) e a Organização Mundial da Saúde –, alguns não têm receita suficiente para financiar sua participação.
Os países mais ricos, por sua vez, incluindo o Reino Unido, os Estados Unidos e o Japão, em setembro de 2020, já haviam comprado mais da metade do suprimento esperado de vacina contra o coronavírus, segundo um relatório da Oxfam, organização internacional sem fins lucrativos que atua buscando soluções contra a pobreza e as desigualdades sociais. Esses países, que representam apenas 13% da população mundial, adquiriram suprimentos futuros da ordem de 51% das vacinas (dados da CNN Brasil).
O Brasil é considerado um país emergente (nomenclatura utilizada pela primeira vez na década de 1980 pelo Banco Mundial) ou, se quiserem, em desenvolvimento, o que significa dizer, entre outras coisas, que ainda apresenta níveis sociais e de distribuição de renda limitados, com elevada pobreza e falta de recursos em áreas como educação e saúde.
No quadro geral, tanto os países desenvolvidos como as economias emergentes e os países pobres estão preocupados com as vidas de seus cidadãos e com a imunização contra a pandemia que se alastrou pelo mundo e já fez quase dois milhões de mortos. Nada mais normal, aliás, uma vez que, além dos aspectos humanitários, ligados à perda de vidas e ao luto das famílias, existem as inevitáveis repercussões socioeconômicas.
Por isso soam como irresponsáveis as declarações de Bolsonaro que, desde o início da pandemia, vem ignorando a sua gravidade. Enquanto os casos de contaminação se avolumam e cresce o número de mortos, o presidente do Brasil permanece totalmente alheio ao que se passa à sua volta, mais preocupado com as futuras eleições presidenciais de 2022 e em como derrotar seus eventuais opositores.
Apenas para dar um exemplo, em novembro do ano passado, quando o país já contabilizava cerca de cento e setenta mil vítimas fatais, Bolsonaro comemorava a suspensão, pela Anvisa, dos testes da vacina chinesa Coronavac, produzida em conjunto com o Instituto Butantan de São Paulo. O que torna mais grave sua atitude é o fato de que Bolsonaro estava celebrando o que chamou de “vitória sobre Dória”, seu possível adversário político nas próximas eleições, ainda que às custas de vidas do povo que o elegeu.
No dia 28 de dezembro, Bolsonaro cobrou dos laboratórios internacionais a responsabilidade de tornar as vacinas disponíveis no Brasil. Segundo a sua lógica, como o Brasil tem duzentos e dez milhões de habitantes, “é um mercado consumidor enorme de qualquer coisa” e os laboratórios precisam estar interessados em vender vacinas e correr para providenciar o pedido de registro junto à Anvisa. Não lhe passou pela cabeça que os laboratórios têm mais pedidos do que estoque a fornecer e que não precisam andar, de pires na mão, à busca de futuros clientes. Também não tentou entender que imunizar contra uma pandemia letal não é qualquer coisa.
Para piorar – se é que dá para ficar pior -, o jornal El País noticiou que a farmacêutica norte-americana Pfizer, em nota divulgada no mesmo dia 28, afirmou ter se reunido no dia 14 de dezembro com representantes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, tendo encontrado obstáculos para a solicitação do uso emergencial de sua vacina, criados pelo protocolo da própria agência, razão pela qual desistiu de proceder à solicitação.
Na sequência, veio mais um previsível tropeço: o Ministério da Saúde se deu conta de que não possuía agulhas, nem seringas. Realizado pregão eletrônico para adquirir trezentos e trinta e um milhões de unidades, só obteve oferta para cerca de oito milhões, ou seja, 2,4% do total pretendido.
Assim, enquanto o presidente da República não se sente pressionado pelo avanço da vacinação no mundo, nem “dá bola” para isso, conforme suas próprias palavras, o Brasil obtém mais uma acachapante vitória: é o único grande país das Américas (grande em tamanho, bien-sûr) que não tem vacinas, nem seringas, nem agulhas para imunizar a população e nem sequer se preocupa em prever uma data para tanto, mesmo porque, é bom que se diga, essas previsões não estão mais ao seu alcance.
Sandra Cureau é Subprocuradora-Geral da República, faz parte da diretoria da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil – APRODAB, fez mestrado na UERJ e foi Vice-Procuradora-Geral Eleitoral (2009/2013)
Parabéns, Sandra Cureau, por seu texto forte como necessário, claro como desejável e certeiro na análise, como sua escrita afiada sabe ser.
Onde mais há alguma autoridade máxima de um país que "não dá bola" para a saúde e a vida do povo que ele desgoverna?
O tratamento do enfrentamento da pandemia numa dimensão estritamente eleitoral não tem paralelo em nenhum lugar, que eu saiba, no mundo civilizado. O pior não é o indivíduo que ora ocupa o trono presidencial, buscando inspirações nítidas em atitudes de Mussolini, Franco e Idi Amin Dada (só não se reporta explicitamente a este porque não é europeu), tratar a saúde e a proteção da vida de seu povo como questões meramente negociáveis, mas sim esta visão ser considerada, mesmo depois da derrota do Eixo na II Guerra Mundial, como algo perfeitamente admissível, como uma opinião tolerável, ainda que absurda. Parabéns à Sandra Cureau!