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"UM MERCADO ENORME CONSUMIDOR DE QUALQUER COISA"

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-SANDRA CUREAU-


Até o dia 28 de dezembro de 2020, quarenta e sete países já haviam iniciado a vacinação contra o coronavírus. Entre eles, o Reino Unido, os Estados Unidos, diversos países das três Américas, os integrantes da União Europeia, outros países da Europa e países da Ásia. Apenas a África, dentre os continentes, ainda sofria dificuldades para implementar a vacinação.



Um dos problemas enfrentados pelos países africanos diz respeito à falta de planejamento e de preparação, conforme o informativo Euronews. Embora todos os cinquenta e quatro países tenham revelado interesse em participar da iniciativa global Covax – que agrega a Cepi (Coalition for Epidemic Preparedness Inovation), a GAVI Alliance (Aliança Mundial para Vacinas e Imunização) e a Organização Mundial da Saúde –, alguns não têm receita suficiente para financiar sua participação.


Os países mais ricos, por sua vez, incluindo o Reino Unido, os Estados Unidos e o Japão, em setembro de 2020, já haviam comprado mais da metade do suprimento esperado de vacina contra o coronavírus, segundo um relatório da Oxfam, organização internacional sem fins lucrativos que atua buscando soluções contra a pobreza e as desigualdades sociais. Esses países, que representam apenas 13% da população mundial, adquiriram suprimentos futuros da ordem de 51% das vacinas (dados da CNN Brasil).

O Brasil é considerado um país emergente (nomenclatura utilizada pela primeira vez na década de 1980 pelo Banco Mundial) ou, se quiserem, em desenvolvimento, o que significa dizer, entre outras coisas, que ainda apresenta níveis sociais e de distribuição de renda limitados, com elevada pobreza e falta de recursos em áreas como educação e saúde.

No quadro geral, tanto os países desenvolvidos como as economias emergentes e os países pobres estão preocupados com as vidas de seus cidadãos e com a imunização contra a pandemia que se alastrou pelo mundo e já fez quase dois milhões de mortos. Nada mais normal, aliás, uma vez que, além dos aspectos humanitários, ligados à perda de vidas e ao luto das famílias, existem as inevitáveis repercussões socioeconômicas.

Por isso soam como irresponsáveis as declarações de Bolsonaro que, desde o início da pandemia, vem ignorando a sua gravidade. Enquanto os casos de contaminação se avolumam e cresce o número de mortos, o presidente do Brasil permanece totalmente alheio ao que se passa à sua volta, mais preocupado com as futuras eleições presidenciais de 2022 e em como derrotar seus eventuais opositores.


Apenas para dar um exemplo, em novembro do ano passado, quando o país já contabilizava cerca de cento e setenta mil vítimas fatais, Bolsonaro comemorava a suspensão, pela Anvisa, dos testes da vacina chinesa Coronavac, produzida em conjunto com o Instituto Butantan de São Paulo. O que torna mais grave sua atitude é o fato de que Bolsonaro estava celebrando o que chamou de “vitória sobre Dória”, seu possível adversário político nas próximas eleições, ainda que às custas de vidas do povo que o elegeu.


No dia 28 de dezembro, Bolsonaro cobrou dos laboratórios internacionais a responsabilidade de tornar as vacinas disponíveis no Brasil. Segundo a sua lógica, como o Brasil tem duzentos e dez milhões de habitantes, “é um mercado consumidor enorme de qualquer coisa” e os laboratórios precisam estar interessados em vender vacinas e correr para providenciar o pedido de registro junto à Anvisa. Não lhe passou pela cabeça que os laboratórios têm mais pedidos do que estoque a fornecer e que não precisam andar, de pires na mão, à busca de futuros clientes. Também não tentou entender que imunizar contra uma pandemia letal não é qualquer coisa.


Para piorar – se é que dá para ficar pior -, o jornal El País noticiou que a farmacêutica norte-americana Pfizer, em nota divulgada no mesmo dia 28, afirmou ter se reunido no dia 14 de dezembro com representantes da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, tendo encontrado obstáculos para a solicitação do uso emergencial de sua vacina, criados pelo protocolo da própria agência, razão pela qual desistiu de proceder à solicitação.

Na sequência, veio mais um previsível tropeço: o Ministério da Saúde se deu conta de que não possuía agulhas, nem seringas. Realizado pregão eletrônico para adquirir trezentos e trinta e um milhões de unidades, só obteve oferta para cerca de oito milhões, ou seja, 2,4% do total pretendido.


Assim, enquanto o presidente da República não se sente pressionado pelo avanço da vacinação no mundo, nem “dá bola” para isso, conforme suas próprias palavras, o Brasil obtém mais uma acachapante vitória: é o único grande país das Américas (grande em tamanho, bien-sûr) que não tem vacinas, nem seringas, nem agulhas para imunizar a população e nem sequer se preocupa em prever uma data para tanto, mesmo porque, é bom que se diga, essas previsões não estão mais ao seu alcance.

 

Sandra Cureau é Subprocuradora-Geral da República, faz parte da diretoria da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil – APRODAB, fez mestrado na UERJ e foi Vice-Procuradora-Geral Eleitoral (2009/2013)



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