-DANIEL FERRAZ-



Ugur Gallen é um artista turco que vem me ensinando a aprender e desaprender em relação às imagens, principalmente aquelas que aparecem abundantemente nas redes sociais. O processo de justaposição usado por Gallen aproxima realidades muito distintas e culturas inquestionavelmente distantes criando um espaço no qual as culturas se encontram e interagem. Os privilegiados e os desprivilegiados são aproximados, restando-nos, assim, os questionamentos e os incômodos no encontro com sua arte. As imagens são ferramentas poderosas que deslocam instantaneamente nossos “olhares” e, no caso de Gallen, abarcam outros significados: somos instantaneamente convocados a imaginar outras possibilidades de olhar criticamente para e com o Outro (MIZAN; FERRAZ, 2019).
Desde 2000 venho pesquisando sobre o poder das imagens, principalmente aquelas publicadas nas mídias de massa e, recentemente, nas redes sociais. Além disso, venho utilizando todos os tipos de imagens (fotografias, memes, vídeos, artes, entre outras) em minhas formações docentes nos cursos de Letras. Meu principal objetivo é problematizar a naturalização e a representação das imagens nas sociedades contemporâneas. Quantas vezes já ouvimos manifestações críticas e desconfiadas do tipo: “Uma imagem vale mil palavras” ou “Ver para crer”. Essas (e outras) manifestações são discutidas com os meus futuros professores no sentido de questionarmos, por exemplo, de que formas as imagens representam (ou não) as realidades sociais. As imagens, paradoxalmente, constroem essas mesmas realidades? A linguagem visual é neutra, apenas representa fatos ou é, assim como a linguagem/língua verbal, política, problematizadora, construtora de realidades?
Tomemos o caso que está mais “na moda” e nas discussões nos âmbitos midiáticos, políticos e escolares: as imagens digitais/digitalizadas. Estas, propagadas nas redes sociais, são editadas, coladas, montadas e, a partir delas, memes, fake news, arte, humor, tragédia, manipulação, informação e conhecimento são criados (por qualquer pessoa que tenha um celular em mãos, há de se ressaltar).
Trata-se de uma nova cultura discursiva, a cultura do Remix, que segundo Stanovsky (2017), revoluciona não somente como entendemos as imagens, mas também oferece a possibilidade de produção das mesmas. Vivemos a era dos prosumers, termo da língua inglesa que une as palavras producers + consumers, ou seja, somos, ou podemos ser, ao mesmo tempo, produtores e consumidores de imagens todas as vezes que editamos as nossas fotos no Instagram ou curtimos um meme nas redes sociais.
É por isso que os jovens produzem colagens, bricolagens, pastiches, jammings, mashups, etc para se comunicarem enquanto nós, educadores, insistimos não somente na proibição dos celulares em nossas aulas, mas ainda utilizamos o famoso material didático (a bíblia do ensino!) e o velho quadro negro e giz (sim, giz!) para dar aulas.
A fim de explicar a cultura digital dos jovens, Stanovsky afirma, ainda, que a cultura do Remix tem base nos estudos de Freud, cuja teoria psicanalítica explica a "compulsão à repetição". “A conjectura de Freud é que, na raiz, um instinto é uma necessidade inerente à vida orgânica de restaurar um estado anterior das coisas”. Por isso, “só podemos desejar coisas que já conhecemos, isto é, coisas que experimentamos no passado”. De certo modo e para Stanovsky e Freud, “buscamos os mesmos prazeres e satisfações que conhecemos, mesmo que os procuremos sob o disfarce de novos relacionamentos e novas experiências” (Stanovsky, 2017). O “Remix”, então, pode ser entendido como um termo muito novo de uma compulsão muito antiga de desejar repetir. “Remix é literalmente o reaparecimento de algo que já vimos antes”.
Quais são as visões de língua/linguagem/imagem numa prática pedagógica em que o professor passa um filme para matar aula, solicitando aos seus alunos um resumo do filme?
A cultura do Remix pode ser similarmente explicada por meio dos estudos de Benjamin, para quem “um novo modo de produção artística é introduzido pelo capitalismo, juntamente com a introdução das novas tecnologias de gravação de som, fotografia e cinema” (idem). Desse modo, a arte e a Cultura com C maiúsculo, ambas hegemônicas, passam a ser questionadas. Outras formas de arte e cultura, agora extremamente influenciadas pelo mundo digital e conectividade global, surgem com força em tempos pós-modernos e pós-humanos. “A arte começou a se espalhar pelo tempo, espaço e classe social”.
Com base nos conhecimentos de Stanovsky e em suas leituras de Freud e Benjamin em torno das questões do Remix, volto à discussão sobre o ensino e compartilho, para encerrar esta reflexão, algumas das práticas pedagógicas que tenho realizado, pensando nessa nova cultura discursiva digital. Em uma de minhas aulas, por exemplo, levo os meus alunos da disciplina de Língua e Cultura para o laboratório e, após a discussão do mesmo texto de Stanovsky (Remix Racism: The visual politics of the Alt-Right) supracitado, solicito que criem alguma imagem (tema livre) por meio de Remixes e postem as imagens no mural Padlet (AQUI). Como podemos verificar abaixo, as imagens criadas são interessantíssimas, pois demonstram a capacidade crítica dos alunos, e também o desejo de se posicionarem politicamente em relação aos tempos avassaladores (para a educação, em especial) que estamos vivendo no Brasil:




Por fim, além de convidar o leitor a dialogar com as imagens acima, quero deixar alguns questionamentos aos educadores que almejar inserir um trabalho de letramento visual ético e responsável em suas aulas, bem como um convite para todos aqueles que de certa forma trabalham com imagens. Trata-se de provocações que também tenho feito a mim mesmo todas as vezes que entro e saio de uma aula e todas as vezes que abro as redes sociais em meu celular:
- Quais são as visões de língua/linguagem/imagem numa prática pedagógica em que o professor passa um filme para matar aula, solicitando aos seus alunos um resumo do filme? O que os alunos aprendem quando o professor explora as imagens no livro didático perguntando como as imagens explicam o texto, (des)incentivando-os a interpretarem com seus próprios olhares?
- Quais são as negociações necessárias – entre formador e formando – para que a construção de sentidos por meio das imagens enseje o diálogo em meio ao conflito de interpretação, para usar um termo de Ricouer de 1976? Ainda, quando realizamos um trabalho de fato interpretativo com nossos futuros professores, como olharmos para nós mesmos, nos escutando, aprendendo e desaprendendo o tempo todo, no sentido de permitirmos um olhar mais flexível, múltiplo, agonístico e afetuoso? (FERRAZ; KAWACHI, 2019).
E em relação à sociedade: Até quando prosseguiremos acreditando nas imagens distribuídas de forma tão manipuladora pelas mídias de massa, redes sociais e demais âmbitos sociais?
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DANIEL FERRAZ é formador de professores no curso de Letras e escreve mensalmente para a Revista PUB todo dia 27.