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A PRIVATIZAÇÃO DAS ÁGUAS (OU TIAY TAITAY)

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-GUILHERME PURVIŅŠ-


Manqu Qhapaq, também conhecido como Manco Inca e Ayar Manco), primeiro governante de Cusco e fundador do Império Inca, nasceu no século XIII. Fonte: Archivo El Comercio, 1999 (domínio público) Manco-Capac

Em 13 de agosto de 1933, a edição dominical do Suplemento da Folha da Manhã estampava um artigo do diplomata A. Ostría Gutierrez intitulado “O Índio Quechua”. Ostría Gutierrez foi encarregado dos Negócios da Bolívia no Brasil nos anos 1930 e, nesse artigo, busca apresentar aos brasileiros um pouco de seu povo. O artigo se inicia com homenagem ao grande romancista Alcides Arguedas, que retratou a personalidade e a cultura da população aymara, que povoa o planalto da Bolívia:


“Alcides Arguedas conviveu com o aymara. Conhece-lhe a língua e os hábitos. Além disso, como grande psychologo que é, conhece-lhe a alma. Entende o seu silêncio e a sua melancolia. Mergulhou profundamente, e seus olhos, depois da surpresa, empanaram-se de raiva e dó em frente ao sofrimento dessa raça que, para esgotar tudo o que possuía, até as suas lágrimas acabou por esgotar”.


O diplomata, porém, se propõe a falar de outro índio, aquele que ele diz conhecer, o quíchua, que habita os departamentos de Chouquisaca, Cochabamba e Potosí — povo que fez parte do Império dos Incas, fundado em Cuzco pelo sábio Manco Capac e sua irmã e esposa Mama Ocllo. Afirma Ostría Gutierrez que o quíchua é “humilde, calado, triste. Se bem que arisco como o aymara, não nega nunca a hospitalidade ao branco. Quando alguém se assoma à porta de seu rancho, o quíchua convida-o a entrar, e diz: ‘Tiay, taitay’. Isto é: ‘Senta-te senhor”. Ou melhor: “Esta casa é tua; toma posse dela, senhor’. Aprendida fidalguia castelhana? Não. Doçura instintiva, bom fundo coração, um grande coração”.


A guerra da água em Cochabamba


Terceira cidade mais populosa da Bolívia, a Cochabamba dos índios quíchuas apresenta hoje o maior IDH daquele país. Nela, é comum a presença de brasileiros desde os idos de 1980, que para lá vão com a finalidade de estudar. Calcula-se que, em 2015, havia 25 mil estudantes brasileiros de Medicina na Bolívia.


Nos primeiros quatro meses de 2000, jornais de todo o mundo traziam notícias a acerca de uma crescente revolta popular na cidade de Cochabamba. A população boliviana não aceitava a edição da Lei 2029, que permitia a privatização da água potável. Com base nessa lei, o governo boliviano havia firmado um contrato com o consórcio Aguas del Tunari. A resistência foi de tal intensidade que o governo foi obrigado a revogar a lei e a romper o contrato com o consórcio.


Verdadeiro cipoal de nomes de acionistas encobria o controle da tal Aguas del Tunari que, em última instância, era comandada pela multinacional norte-americana Bechtel.

Em sua homepage, a empresa destaca sua origem humilde, no início do século XX, quando W. A. Bechtel, sua esposa Clara e seus dois filhos, Warren Jr. e Stephen, e seu irmão caçula Arthur dirigiram-se para o oeste. Um encontro casual, no ano de 1902, com um gerente do Southern Pacific, garantiu-lhe um emprego e o início da formação da poderosa empresa, que já concluiu mais de 25 mil projetos em 160 países de todos os continentes do planeta, nas áreas nuclear, de segurança e meio ambiente, petróleo, gás, produtos químicos, mineração e metais. Afirma a empresa que os valores da ética, segurança, cultura e sustentabilidade são seus valores essenciais.


A revogação da lei da privatização das águas e o rompimento do contrato resultaram, assim, no afastamento da jurisdição boliviana para a solução da lide.

A Bechtel, cabe ressaltar, não era sócia da Aguas del Tunari, na verdade utilizava-se de uma subsidiária chamada de International Waters, registrada no paraíso fiscal das Ilhas Caiman. Segundo Pablo Solon (A lição de Cochabamba – Cadernos Le Monde Diplomatique, n.3 – 2003, p.32/33), ao prever a vitória da resistência popular boliviana à privatização, a International Waters – Bechtel vendeu parte de suas ações a uma empresa italiana e mudou o domicílio para a Holanda. A razão disto era a existência de um Tratado Bilateral de Investimentos entre Holanda e Bolívia, que impunha a solução de toda controvérsia entre investidor holandês e a Bolívia por meio de arbitragem internacional do CIADI.


A revogação da lei da privatização das águas e o rompimento do contrato resultaram, assim, no afastamento da jurisdição boliviana para a solução da lide. Para Pablo Solon, a arbitragem do CIADI constitui “justiça alheia e privada a serviço das multinacionais”.


Resistência


Em 2009, a Bolívia promulgou sua nova Constituição. Seu preâmbulo narra a formação do continente, o erguimento das montanhas, o movimento dos rios, a formação dos lagos, todas as terras cobertas de verdura e flores: “Nós povoamos esta sagrada Mãe Terra com diferentes faces, e desde então entendemos a atual pluralidade de todas as coisas e nossa diversidade como seres e culturas. É assim que moldamos nosso povo, e nunca entendemos racismo até sofremos desde os terríveis tempos da colônia.”


O que para nós pode soar como poesia, é na verdade consubstanciação constitucional de um paradigma totalmente diverso daquele adotado pela sociedade ocidental. No art. 1º de sua Constituição, a Bolívia se define como um Estado Unitário Social de Direito Plurinacional Comunitário. O país se assenta na perspectiva da pluralidade e do pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e linguístico.


O art. 3º dispõe que o povo boliviano é constituído pela totalidade das bolivianas e dos bolivianos, das nações e povos originários, camponeses e das comunidades interculturais e afrobolivianas.


A despeito de todos os ataques sofridos pelas multinacionais e seu braço armado (a polícia e o aparato judiciário dos países sob seu inteiro controle), o Estado Plurinacional Boliviano conseguiu promulgar a Constituição em 2009, cujo art. 8º, inc. I, constitui demonstração de resistência ao modelo predatório que pretende destruir completamente a vida no Planeta:

“El Estado asume y promueve como principios ético-morales de la sociedad plural: ama qhilla, ama llulla, ama suwa (no seas flojo, no seas mentiroso ni seas ladrón), suma qamaña (vivir bien), ñandereko (vida armoniosa), teko kavi (vida buena), ivi maraei (tierra sin mal) y qhapaj ñan (camino o vida noble)”.


Os termos ama qhilla, ama llulla, ama suwa e qhapaj ñan são de origem Quíchua. O termo Suma qamaña está escrito em idioma Aymara. E ñandereko, tekokavi e ivi maraei são escritos em idioma Guarani. Um dos princípios fundamentais do suma qamaña, ensina Juan Lixmar Zoto Alvarado (Derecho Ambiental en Bolivia, in Direito Constitucional Ambiental ibreo-Americano, Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2016, p. 94, nota 13), é saber, viver, em harmonia e complementaridade com a Mãe Terra.


O pleito da empresa, formulado em tribunal arbitral realizado nos primeiros anos do terceiro milênio, era de recebimento de indenização 50 vezes superior ao investimento que fizera, ou 25 milhões de dólares, segundo informação de Pablo Solon. Ou o dobro disso, segundo o site The Democracy Center. O total pretendido seria suficiente para pagar os salários de um ano de três mil médicos em todo o país, ou 125 mil novas conexões de água potável. Diz Pablo Solon, no citado artigo:


O que na verdade a Bechtel e toda a irmandade multinacional perseguem é plantar um precedente, dar um exemplo para que ninguém mais siga o caminho de Cochabamba. Eles querem advertir todos os governos que, caso cedam às pressões sociais, sofrerão como castigo o pagamento de indenizações milionárias, definidas em reuniões de arbitragem privadas e secretas”.


A Bechtel talvez tenha tomado ao pé da letra a tradução proposta pelo diplomata boliviano para a expressão “Tiay, taitay”. Tomar posse da casa? Não. Apenas descansar enquanto for preciso. A água é de todo o povo boliviano. Beba apenas para saciar a sede, mas não ouse dela se apossar ou ela envenenar, “senhor”.


Em outubro de 2005, o CIADI decidiu que tinha jurisdição no caso de Aguas del Tunari x Bolívia. Àquela altura, a Bolívia já havia gasto um milhão de dólares em honorários nos últimos três anos.

Em 19 de janeiro de 2006 (cf. The Democracy Center), a Bechtel e a Abengoa, principais acionistas do consórcio, concordaram em desistir do processo mediante o pagamento simbólico de dois bolivianos - ou trinta centavos de dólar. A decisão das empresas decorreu da pressão da opinião pública internacional, que estava causando um prejuízo ao nome das empresas maior do que a indenização pretendida.


A indenização simbólica não deixa de ser uma demonstração de profunda arrogância das empresas - melhor seria se elas indenizassem a população pelos danos morais causados e ressarcissem o governo boliviano pelas despesas com a defesa no processo de arbitragem. Seja como for, o desfecho foi alentador e com certeza marcou a redação da Constituição promulgada três anos mais tarde e, em especial, do seu art. 20:


Artículo 20.

I. Toda persona tiene derecho al acceso universal y equitativo a los servicios básicos de agua potable, alcantarillado, electricidad, gas domiciliario, postal y telecomunicaciones.

II. Es responsabilidad del Estado, en todos sus niveles de gobierno, la provisión de los servicios básicos a través de entidades públicas, mixtas, cooperativas o comunitarias. En los casos de electricidad, gas domiciliario y telecomunicaciones se podrá prestar el servicio mediante contratos con la empresa privada. La provisión de servicios debe responder a los criterios de universalidad, responsabilidad, accesibilidad, continuidad, calidad, eficiencia, eficacia, tarifas equitativas y cobertura necesaria; con participación y control social.

III. El acceso al agua y alcantarillado constituyen derechos humanos, no son objeto de concesión ni privatización y están sujetos a régimen de licencias y registros, conforme a ley.

 

GUILHERME PURVIŅŠ é formado em Letras e Direito pela USP. É escritor e professor de Direito Ambiental.

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