-Júlio César Suzuki-
-Antonio Marcos Quinupa-
Pessoas transgêneras são corpos marginalizados e produzidos sob e para a penumbra da Ordem Social vigente. Logo, pode-se afirmar que travar qualquer discussão a respeito, não se faz senão com muita resistência, uma vez que sua produção não tem respaldo médico prático/discursivo ou hegemônico/legítimo. Não obstante, esse mesmo corpo está desprovido do respaldo de outro discurso hegemônico que o abjeta: o discurso jurídico, discurso posto, a priori, para atender demandas de pessoas ubiquadas dentro da matriz de inteligibilidade hétero-cis-normativa.
Portanto, a constituição da subjetividade das pessoas transgêneras (não existindo senão como subjetivação) encontra-se muito além da autodeclaração.
A partir da expressão da sua sexualidade, as pessoas se autorremetem às matizes de inteligibilidade de orientação sexual ou identidade de gênero. No caso das pessoas transgêneras quando estas se autodeclaram numa determinada “transidentidade” (como, por exemplo, travesti, transexual, homem trans etc.).
Assim, a discussão da garantia de direitos deveria estar fundamentada nas vivências das pessoas transgêneras no momento em que essas se submetem ao sistema de justiça demandando a retificação de prenome e designação sexual. Todavia nem sempre é esse o entendimento dos operadores do direito ao tratarem esses pedidos. A garantia dos direitos subjetivos desses sujeitos “demarca um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas” (FOUCAULT, 1979, p. 244).
Podemos inserir as pessoas transgêneras no jogo saber-poder descrito por Foucault. A anomalia, tal como aparece no século XIX se constituiu a partir de três elementos. Esses três elementos começam a se isolar, a se definir, a partir do século XVIII e eles fazem a articulação com o século XIX, introduzindo esse domínio da anomalia que, pouco a pouco, vai recobri-los, confiscá-Ios, de certo modo colonizá-los, a ponto de absorvê-los. Esses três elementos são, no fundo, três figuras. Foucault chamou a primeira dessas figuras de "monstro humano":
[...] "...o contexto de referência do monstro humano é a lei, ou seja, o monstro é essencialmente uma noção jurídica. O que define o monstro é o fato de que ele constitui, em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma violação das leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza. Ele é um registro duplo, infração às leis em sua existência mesma." (FOUCAULT, 2001, p. 69).
Vemos assim nascer, portanto, o conhecimento médico legitimado pelo discurso jurídico para falar sobre essas pessoas que serão inseridas na categoria de monstros, anormais, abjetos: os hermafroditas, que serão “executados, queimados e suas cinzas jogadas ao vento.” (FOUCAULT, 2001, p. 83).
Dessa forma, vemos funcionar, pelo dispositivo da sexualidade, o tratamento da monstruosidade que vai do “jurídico-natural” ao “jurídico-moral”, incidindo na “criminalidade pura e simples” (FOUCAULT, 2001, p. 92). Vemos funcionar, também o discurso legitimado (médico) da verdade jurídica sobre os corpos.
Discurso médico legitimado pelo discurso jurídico para falar sobre os corpos apresentados como corpos da sexualidade periférica, que estabelece o normal e o anormal na ordem sexual. Discurso que se desdobra no novo campo epistemológico do final séc. XIX, o da psicanálise. Pois esses corpos “estão na curvatura do direito de morte e poder sobre a vida.” (FOUCAULT, 2007, p. 145). Afirma ainda que “a sexualidade situa-se sempre no interior das matrizes de poder [...] tanto discursivas quanto institucionais.” (apud BUTLER, 2010, p. 144).
No início do século XXI, o Brasil ainda carece inteiramente de uma legislação específica para a solução de conflitos de identidade de gênero. Dessa forma, as decisões jurídicas amparam-se nos direitos constitucionais à liberdade, à privacidade, à conformidade física e à saúde, previstos na Declaração Universal dos Direitos do Homem (arts. XXV, II e III), na Constituição Federal (preâmbulo e arts. 6º, 196, 199, §4º) e no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, dentre outros marcos legais nacionais e internacionais. Isso torna possível porque tais casos não geram quaisquer conflitos com o bem coletivo.
Por sua vez, o Conselho Nacional de Medicina, por meio da Resolução 1.482/97, elenca os requisitos autorizativos para a realização do processo de transição de gênero, incluindo hormonioterapia, cirurgia de redesignação genital, cirurgias masculinizantes ou feminilizantes, dentre outros procedimentos, de modo a superar o desconforto com o sexo anatômico atribuído ao nascimento. A exigência principal desse processo é que seja comprovada, por profissionais de saúde, devidamente habilitados, a permanência de disforia de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos, assim como a ausência de outros transtornos mentais diagnosticados.
Todavia, grande parte do problema é percebida no momento em que as pessoas transgêneras buscam a garantia de seus direitos fundamentais, no caso a retificação de prenome e designação sexual que, além de estarem vinculadas aos diagnósticos médicos/psicológicos, se submetem ao escrutínio de operadores do direito, a partir dos quais há uma profusão de entendimentos quanto à garantia dos direitos decorrentes tanto da jurisprudência quanto dos/as doutrinadores/as.
O filósofo italiano Norberto Bobbio apresenta um entendimento em relação a esses direitos fundamentais, elencando os direitos de primeira, segunda e terceira geração (BOBBIO, 2004). Ao erigir a abstração jurídica sujeito de direito e elencar direitos fundamentais/humanos, Bobbio os apresenta a partir de uma matriz eurocêntrica/hegemônica que pressupõe uma ‘hierarquia’ de sujeitos com acesso ao direito: branco/classe média/cristão/heterossexual. Seja na primeira fase – quando dispõe de direitos individuais, direitos de liberdade; como na segunda fase – quando dispõe de direitos coletivos/sociais, poder político; bem como na terceira fase – quando dispõe de direitos difusos/coletivos (BOBBIO, 2004).
Para o filósofo Luiz Fernando Coelho, “indagar sobre o fundamento ou critério de validade metodológica da hermenêutica constitucional suscita a indagação sobre os fundamentos da constituição, problema relacionado com o da definição dos direitos básicos nela estabelecido, denominados direitos fundamentais.” (COELHO, 2017, p. 175). Ao desenvolver o termo “aporia fundamentalista”, o autor problematiza a instrumentalização dos direitos fundamentais não de forma discricionária ou quanto ao critério de validade, mas como instrumento de razão prática. Apresenta ainda um dilema quanto à problematização da abstração jurídica sujeito de direito: “os fundamentos últimos da hermenêutica constitucional estarão sempre acima da compreensão realista, sociológica e crítica do verdadeiro significado da constituição.” (COELHO, 2017, p. 180).
Dessa forma, ao ratificar as duas formas de “enquadrar” os sujeitos no entendimento jurídico (masculino e/ou feminino), os operadores do direito incorrem numa celeuma na entrega da tutela jurisprudencial, ou seja, não ocorre a entrega efetiva; seja pela alegação da impossibilidade jurídica do pedido, improcedência do pedido, atendimento parcial do pedido – mudança de prenome e não de sexo, ou declinação de competência.
Assim, é preciso humanizar o direito, mas antes de tudo os seus operadores no sentido de reconhecer a diversidade do mundo, particularmente no que se refere às várias possibilidades existentes na relação entre sexo e gênero na construções das subjetividades.
Referências
BOBBIO, Norberto. A era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
BUTLER, Judith P. Problema de gênero: feminismo e subversão da identidade. 3.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
COELHO, Luiz Fernando. Direito constitucional e filosófica da constituição. 4. impr. Curitiba: Juruá, 2017.
FOUCAULT, Michel. Os Anormais. 18.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. 9.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 22.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
Júlio César Suzuki escreve todo dia 08 de cada mês na Revista PUB. É professor e pesquisador da Universidade de São Paulo
Antonio Marcos Quinupa é advogado, com mestrado em Direito
Reflexão de profunda importância e grande relevância social.