-RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO-
Em sociedades marcadas por uma desigualdade muito profunda, a presença de opressões atomizadas em grupos, embora real, conduz a que cada uma delas possa prestar-se a configurar um meio de obnubilar problemas de maior dimensão.
Costuma-se falar na família como a primeira das células sociais, em qualquer tipo de comunidade, e nela se encontra o gérmen da divisão das tarefas entre os sexos. Sem a pretensão de dar a resposta definitiva a um debate ainda palpitante no âmbito das ciências sociais, não se pode negar a facilidade de constatação do caráter da dominância masculina a partir, primeiro, da força física e da assunção da responsabilidade pela proteção da prole, assumindo, mais tarde, caracteres mais sutis, e da mulher passando a exercer um caráter auxiliar da respectiva autoridade, na nutrição e educação dessa mesma prole, submetida ela, mulher, também à autoridade do marido. Este cenário ainda é muito presente, mesmo nos tempos atuais, com todo o abalo que se verificou na capacidade de o discurso patriarcalista lograr racionalmente convencer a quem quer que seja, e não é de pouca monta o fato de que somente a partir de 1962, no Brasil, a mulher casada deixou de ser considerada relativamente incapaz.
A noção da mulher “frágil” como ideal, esperando ser defendida dos perigos pelo galante cavaleiro andante, perigos que os “outros homens” representavam, presente na Idade Média ocidental-cristã – noção presente na sátira cervantina, pois é assim que vê D. Quixote a sua Dulcineia -, perdurou para muito além desse período, e a Professora Sheila Pitombeira, por ocasião do 24º Congresso do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, ao comentar a obra naturalista de Domingos Olympio, “Luzia-Homem”, apontou para a persistência dessa mentalidade (AQUI, acessado em 21 jul 2020).
Até porque a “espera do campeão” não deixa de ser, em relação a este, uma expressão inequívoca de dependência, uma expressão de que, sem este, não possa a mulher sequer – como ocorre com Katherine no final de “A megera domada”, de Shakespeare – indicar, de acordo com a sua percepção, se é dia ou noite, se faz sol ou chuva.
Na divisão de trabalho entre os sexos, mesmo no sistema econômico denominado, por Max Weber, “da autonomia” – o sistema em que a livre decisão de empreender é a base da economia -, em que a igualdade formal diante da lei é vista como um valor fundante ao lado da liberdade, no Ocidente, no qual ele nasce para substituir, paulatinamente, o sistema “da autoridade” – o sistema em que a economia é questão de Estado – em sua manifestação mercantilista, à mulher se reservam preferencialmente as tarefas menos prestigiosas, embora importantes, pois o movimento dos preços enquanto mecanismo de informação do mercado é por ela identificado quando sai às compras, concretizando a dimensão econômica da família como “unidade de consumo”. Ao homem, pois, em tal contexto, cabe a obtenção dos meios para prover a sobrevivência da família, seja na condição de quem comanda a atividade econômica, seja na condição de quem executa materialmente o ato de produção sob as ordens de outrem, e à mulher cabe verificar as necessidades da casa e as possibilidades materiais de se obterem os meios para a satisfazer. O homem com a chave do cofre e a mulher como gestora do quantitativo que o homem lhe libera para proceder à aquisição dos gêneros. É uma visão francamente hierarquizada dessa divisão de trabalho, em que uns desempenham funções de prestígio e outros desempenham funções mais humildes, subalternas, muitas vezes humilhantes, e não puramente funcional, em que cada qual tem igual importância e em que as funções não são uma menos prestigiosa que outra.
Ou seja, apenas há a substituição do sujeito ativo da opressão, numa situação muito parecida com a construída por Stanley Kubrick em seu filme “A laranja mecânica”, em que o desajustado Alex passa de algoz a vítima das pessoas a que infligiu sofrimento.
Não é rara a visão de que o “empoderamento” feminino estaria presente quando se encontrassem mulheres em condição similar à de homens “capitães de indústria”, e, para quem espose tal visão, o ápice da superação das opressões encontraria seu arquétipo em uma Margareth Thatcher, a famosa “Dama de Ferro” que se fez, na Inglaterra, a Grande Voz Oracular do Estado Mínimo, a Grande Sibila da conversão da maior parte dos serviços públicos em rentáveis atividades econômicas a serem exploradas pelos particulares e, pois, somente alcançando a quem tenha o patrimônio suficiente para pagar por tais utilidades, e que aparece como inspiradora de quantos pretendam reduzir o Estado a uma máquina de repressão aos indivíduos ou grupos sociais em que o mercado veja como ameaça e uma agência de pagamentos de juros da dívida pública. Se não restam dúvidas de que a posição de poder de mando é um espaço, normalmente, ocupado por homens, quando ocorre a reprodução do modo de estes agirem por parte de mulheres que o ocupem, longe de se ter um real empoderamento de quem padece a opressão, o que se tem é simplesmente a perpetuação do universo de conceitos que se poderia resumir na frase “eu sou mais que você/você existe porque eu permito”. Ou seja, apenas há a substituição do sujeito ativo da opressão, numa situação muito parecida com a construída por Stanley Kubrick em seu filme “A laranja mecânica”, em que o desajustado Alex passa de algoz a vítima das pessoas a que infligiu sofrimento. Ou seja, a questão passa a não ser dar a opressão como algo indesejável, mas sim ela não ser exercida pelo sujeito errado...
Mesmo avanços no sentido de se conferir à mulher espaços antes reservados ao homem e de este dividir com aquela tarefas do lar, o tema da “opressão feminina” continua presente na agenda, ao lado de outras “opressões”, de natureza classista ou racial ou política ou religiosa, e a Professora Elizabeth Harkot de la Taille, ao narrar sua experiência em órgão ligado à proteção dos direitos humanos no seio da comunidade universitária no 24º Congresso do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública, já mencionado, salientou não ser raro que cada um dos grupos oprimidos tenda a ver o seu sofrimento como o único merecedor de atenção, como se não fossem, bem vistas as coisas, oprimidos de formas diferentes, mas sempre graves, e nem sempre por um mesmo opressor (AQUI, acessado em 22 jul 2020). Neste mesmo evento, o Padre Júlio Lancelotti alertou para o perigo da tendência de, ou se “romantizar” ou se demonizar o oprimido, ao invés de se identificar e combater a opressão em si mesma (AQUI, acessado em 25 jul 2020), ou seja, a de se transformar a questão da opressão em um problema de “simpatia/antipatia”, e não num problema de negação a um ser humano do direito a ocupar um espaço que não tenha nenhum motivo racional para ele ser excluído.
Todas estas questões, na realidade, põem-se no sentido de apontar para o significado da “igualdade”, enquanto valor, por um lado, e o que particulariza e aproxima a discriminação por gênero de outras discriminações, enquanto elementos de conexão ou dissolução dos laços sociais. Desde a negação da opressão, passando pela naturalização das “hierarquias” para, em seguida, sobrevalorizar umas “opressões” em face de outras, é importante que, por exemplo, a luta feminista não venha a ser a da Sinhá que pretende dar as ordens para o emprego do chicote sobre os convertidos em escravos e escravas no lugar do Sinhô, mas sim a da destruição do chicote, do pelourinho e de todos os apetrechos voltados a causar sofrimento a seres humanos que não deveriam ser submetidos à satisfação dos caprichos de quem quer que fosse.
Ricardo Antonio Lucas Camargo é Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.
Uma análise muito crítica e lúdica sobre os discursos que permeiam os nossos tempos, mesmos os mais "bem intencionados". Parabéns!