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As redes sociais como palco dos sintomas da contemporaneidade

Atualizado: 22 de abr.

- Marilia Donadio Antunes -



Sociedade do espetáculo.

Pensar a psicanálise nos dias atuais nos leva a buscar uma compreensão dos conceitos fundamentais propostos por Freud à luz da cultura de nossa época. Vivemos tempos de hiperexposição da subjetividade, em que o conceito de sociedade do espetáculo, introduzido por Debord, ganha lugar privilegiado. Já em 1967, o filósofo francês dizia de uma realidade condenada ao mundo da artificialidade e da representação, fazendo do espetáculo uma obrigatoriedade para transmitir uma imagem de si mesmo que cria uma nova realidade ficcional. Em uma sociedade onde a imagem e a teatralidade desempenham papel central é possível traçar paralelos entre redes sociais e histeria, uma vez que o espaço virtual é o cenário propício ao teatro histérico com todos os seus artifícios para capturar e reter a atenção de milhões de pessoas, em qualquer lugar do mundo, a qualquer instante. É neste contexto, que nos debruçamos sobre novas formas de expressar conflitos e sintomas diante de uma plateia que, agora, está do outro lado da tela. De acordo com Freud apud Laplanche e Pontalis "... os sintomas têm por objetivo ou uma satisfação sexual, ou uma defesa contra ela, e, no seu conjunto, o caráter positivo de realização de desejo predomina na histeria, e o caráter negativo, ascético, na neurose obsessiva” (p. 199). Essa polaridade entre neurose histérica e obsessiva é fundamental para compreensão da dinâmica de formação dos sintomas em cada uma dessas estruturas psíquicas, de um lado a “realização do desejo” histérico e, por outro; rituais, pensamentos intrusivos e compulsões que têm como finalidade a evitação da satisfação dos desejos moralmente inaceitáveis.


As histéricas, que ajudaram a fundar a psicanálise com seus sintomas inexplicáveis pelas vias da medicina, expressavam no corpo desejos inconscientes reprimidos. Os sintomas então convertidos no corpo seriam, para Freud, a realização disfarçada de um desejo sexual inadmissível para a própria consciência: "um desejo que se achava em agudo contraste com os demais desejos do indivíduo, que se mostra inconciliável com as exigências éticas e estéticas da personalidade."(1910, p. 242.) Na base da formação dos sintomas histéricos haveria então um desejo reprimido que continua a existir no inconsciente e, então "consegue enviar à consciência uma formação substitutiva para o que foi reprimido, deformada e tornada irreconhecível, à qual logo se ligam os mesmos sentimentos de desprazer dos quais o indivíduo se acreditava poupado mediante a repressão." (FREUD, 1910, p. 246). Importante dizer que a noção de histeria em si remonta a Hipócrates e sua definição foi sendo transformada ao longo da história. Se Charcot deu à histeria a dignidade de uma doença como as outras, tornando-a objeto da ciência médica e não mais algum tipo de degeneração, considerando-a, ao lado de Freud, como doença psíquica; este último foi além, dedicando-se a entender e explicar os sintomas histéricos a partir da fala de suas primeiras pacientes e propondo sua terapia de "talking cure".


O corpo tela: exposição x enigmático.

Mais de 100 anos depois, entram em cena novas formas de sintomatologia que se deslocam do “corpo-teatro” da histérica, expressão utilizada pelo psicanalista britânico Christopher Bollas em seu livro Hysteria, para a tela como extensão do próprio corpo. Os novos sintomas, impulsionados por uma sociedade moldada pelas imagens e pelo consumo, se manifestam através de uma impulsividade no compartilhamento de fotos, momentos e enquadramentos que capturam olhares atentos no palco de encenações das redes sociais. Narrativas criadas para provocar sedução e fascínio, tal como Freud aponta para a relação entre histeria e sexualidade, cujos sintomas são expressões de fantasias inconscientes, em busca de uma satisfação sexual. Nas plataformas, o sujeito não encontra resistência, e o que acontece é justamente o contrário, as mesmas estimulam a satisfação imediata com visualizações, curtidas, comentários, compartilhamentos. O desejo reprimido das histéricas dá então lugar à pulsão, que pela definição dada por Freud, "nos aparece como um conceito-limite entre o somático e o psíquico, como o representante psíquico dos estímulos oriundos do interior do corpo." (1915, p. 57).


Na encenação contemporânea das redes, as pulsões encontram seus destinos em selfies irretocáveis e registros em série de momentos e cenários ditos perfeitos, que diferem dos sintomas das neuroses clássicas freudianas porque são satisfações diretas no corpo-tela, sem espaço para simbolização. O caráter enigmático dos sintomas e “la belle indifférence” das histéricas dão lugar a uma exposição incessante da intimidade que parece não guardar nenhum segredo. A capacidade de simbolização fica empobrecida e nos vemos diante de uma compulsão pelo compartilhamento em um feed repleto de fotos e histórias na busca permanente por ser o falo do outro. O que se vê é uma narrativa literal e esvaziada do sujeito, no que seria uma vivência histérica na contemporaneidade. Como citado no livro Histeria e Sexualidade, de Marco Antonio Coutinho Jorge e Natalia Pereira Travassos, em uma frase da escritora e psicanalista britânica Lisa Appignanesi que resume bem o sintoma histérico como um modo de subjetivação que assume variadas aparências de acordo com o seu tempo "a histeria é uma dessas condições que é reinventada por diferentes épocas e possui uma maleabilidade cultural tão dramática quanto a paciente Augustine", estudada por Charcot em suas pesquisas sobre o tema. (2021, p. 19)


Para compreender o fenômeno da histeria nos dias de hoje é importante assinalar que a repressão sexual que dá origem ao que Freud chamou de recalque, e que, no passado, atuava com ainda mais força sobre as mulheres, foi impactada por intensas transformações sociais que nos trouxeram um certo nível de liberdade na expressão da sexualidade – embora saibamos que toda civilização se ergue às custas de muita repressão. Se o sintoma histérico, tal qual proposto por Freud, refletia conflitos de uma época marcada pela fixidez de certos aspectos do desenvolvimento, os novos conflitos se dão em uma sociedade caracterizada pela fluidez das estruturas e posições subjetivas que se tornam cada vez mais instáveis e efêmeras. Neste novo contexto, por vezes, a permissividade não se traduz em algo libertador. É possível dizer que vivenciamos uma moral que, de certa forma, exige o sucesso sexual, passando do esconder para uma ordem da exibição e imperativo do gozo.


Histeria, sedução e consumo.

Essa dinâmica que transforma tudo em um teatro da vida real tem como grandes protagonistas os chamados influencers, que tornam as tarefas mais triviais como comer, fazer as unhas, ir à academia e até acordar em um grande espetáculo que está o tempo todo ao alcance do olhar do outro. Com 400 milhões de seguidores no Instagram, sendo o 5º perfil mais seguido do mundo na plataforma, Kylie Jenner é uma celebridade impulsionada pelas redes sociais e pelo culto à imagem que ganha na internet um lugar privilegiado. Diante deste contexto, a psicanálise se torna essencial para compreendermos as novas formas de expressão social e o que sustenta seus sintomas.

O perfil da influenciadora acumula mais de 6800 publicações entre imagens e vídeos, nos quais a vemos em uma infinidade de situações, ângulos e poses. Kylie faz da plataforma social um palco sem precedentes onde os produtos da sua marca, Kylie Cosmetics, e ela própria se misturam como objetos que provocam sedução e fascínio. Mais do que delineadores, batons, paletas de sombras e produtos de cuidado para a pele, o que está à venda é a própria imagem de Kylie, meticulosamente produzida, editada e encenada para seduzir e ser consumida por seus seguidores. O caráter enigmático da histeria, que distorce o desejo para que este seja indecifrável e, assim, tolerável pelo eu, dá lugar a uma exibição incessante que transforma cada momento em um espetáculo que captura uma plateia de milhões. A teatralidade pela qual o histérico foi rechaçado ao longo da história é agora um código social incorporado em nossa cultura através de uma infinidade de registros que são criados intencionalmente para serem objetos causa de desejo.

O que vemos é um teatro da vida real impulsionado por uma sociedade que valoriza a imagem e transforma a dramatização, a busca por atenção e pelo olhar do outro em um negócio extremamente rentável para alguns.

Em uma postagem publicada no dia 3 de outubro deste ano, cuja legenda é "paris", vemos uma sequência de 10 fotos que retratam a influenciadora e empresária em selfies no espelho, no quarto do hotel, posando para ensaios fotográficos, segurando um item de sua marca diante do rosto, estampada em um banner gigante com a Torre Eiffel ao fundo. Em outra publicação intitulada "LADY IN RED", datada do dia 2 maio, o que se mostra é uma sequência de 8 fotos nas quais a influenciadora aparece em um mesmo vestido vermelho, sendo retratada em diferentes momentos: posando para a foto, subindo uma escada, abraçando a filha, indo de encontro a um homem, de lado, de frente, de costas. A imagem de Kylie está por todos os lados sempre como protagonista, retratando cada detalhe de sua vida pessoal não em sua totalidade, mas em um recorte idealizado que rende milhões – 1,47 milhão de libras (R$ 9 milhões) por post, segundo ranking publicado pela CNN Brasil, em julho de 2023. O que vemos é um teatro da vida real impulsionado por uma sociedade que valoriza a imagem e transforma a dramatização, a busca por atenção e pelo olhar do outro em um negócio extremamente rentável para alguns.

E se de um lado existem os influenciadores, do outro temos os chamados seguidores que nos colocam um questionamento importante: o que captura o olhar desses milhões e não apenas isso, influencia o comportamento de tantas outras pessoas anônimas que reproduzem essa encenação incessante em seus próprios perfis virtuais? A grande maioria, sem ter como finalidade a monetização, que transformou a exibição exacerbada inclusive em uma profissão almejada por cada vez mais pessoas. Aqui, podemos fazer uma relação com um traço fundamental da histeria, a sensibilidade ao contágio. O mecanismo da identificação histérica foi apontado por Freud:


“Para o mecanismo dos sintomas histéricos, a identificação é um elemento de grande importância; é por meio dela que os doentes conseguem expressar em seus sintomas as vivências de um grande número de pessoas, não só as próprias; eles sofrem, em certo sentido, por toda uma multidão e executam todos os papéis de um espetáculo com seus próprios recursos pessoais” (1900, p, 184).


Diante dessa “epidemia” do que poderíamos chamar de uma manifestação histérica na atualidade, na qual todas e todos podem ser objeto de desejo nas redes sociais a partir de perfis que buscam reproduzir uma vida dita perfeita, é possível formular novas questões para a psicanálise. Se, como aponta a teoria freudiana, todo sintoma ao mesmo tempo em que se mostra, esconde algo impossível de ser trazido à consciência, podemos nos questionar quais os possíveis conflitos e sofrimentos que não entram na cena que, agora, é virtual?

Podemos concluir que os fenômenos atuais das redes virtuais são sustentados por uma cultura do espetáculo, na qual as imagens são pré-condição de existência e onde a estética assume um papel social primordial. Neste contexto, abre-se espaço para uma reflexão acerca da relação entre histeria e plataformas sociais. Espaço no qual o desejo de sedução da histérica e sua busca em ser o falo do outro podem atuar como grande mobilizador em uma busca irrefreável por aprovação e por assumir um lugar de destaque na grande cena do palco social, impulsionados pela monetização da própria imagem e por uma sociedade de consumo.


Referências

  • BANDEIRA, G. DA S. Me dá um like?: Fotografo, logo existo: histeria e redes virtuais. Estudos de Psicanálise, n. 44, p. 109–116, 2015.

  • CORRÊA, C. M. N.; FERRARI, I. F. Olhar para o mundo das imagens: uma leitura psicanalítica. Tempo Psicanalítico, v. 54, n. 1, p. 89–109, 2022.

  • DEBORD, G. A Sociedade do Espetáculo. E. S. Abreu (Trad.). (2a ed.). Rio de Janeiro: Contraponto, 2017. (Publicado originalmente em 1992).

  • FREUD, S. A interpretação dos sonhos (1900).

  • FREUD, S. Cinco Lições de Psicanálise (1910).

  • FREUD, S. Os Instintos e seus Destinos (1915).

  • JORGE, M. A. C.; TRAVASSOS, N. P. Histeria e Sexualidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2021.

  • KALLAS, M. B. L. DE M. O sujeito contemporâneo, o mundo virtual e a psicanálise. Reverso, v. 38, n. 71, p. 55–63, 2016.

  • LAPLANCHE, J; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

  • Redes Sociais, Histeria e Contemporaneidade. Disponível em: <https://centropsicanalise.com.br/2019/12/28/redes-sociais-histeria-e-contemporaneidade/>. Acesso em: 6 nov. 2023.

  • SALLES, A. C. T. DA C.; CECCARELLI, P. R. A quantas andam o sexual e a nos dias atuais? Estudos de Psicanálise, n. 41, p. 23–29, 2014.

 

Marilia Donadio Antunes é psicóloga, com orientação psicanalítica. Redatora, com Pós-graduação em Marketing. Atualmente, cursa a Especialização em Conflito e Sintoma, no Instituto Sedes Sapientiae e faz parte de um Grupo de Estudos em Lacan.


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