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MONTEIRO LOBATO NA LITERATURA PAULISTA E HISTÓRIA DO PAÍS: RECONHECER-LHE QUALQUER MÉRITO É NORMAl?

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO-


Quando se vai falar na literatura paulista, vêm à mente os que participaram da Semana da Arte Moderna, em 1922 – ano do centenário do “Grito do Ipiranga”, que sempre nos evoca os quadros ufanistas do catarinense Victor Meirelles (1832-1903) e do paraibano Pedro Américo (1843-1905) -, e as polêmicas que provocaram. O mais curioso de tudo é que uma primeira aproximação levaria a crer que os participantes da aludida Semana seriam os exemplos do “progressismo” em todos os campos, e seus adversários seriam os grandes defensores do passadismo. Claro que se podem identificar, dentre os participantes, personagens a que não caberia o apodo de reacionários, como é o caso do José Oswald de Andrade (1890-1954), mas a presença dos que iriam compor as hostes do integralismo, a versão tropical-católica do fascismo, não pode ser negada. E dentre os paulistas, vou apontar, precisamente, para um que combateu a Semana da Arte Moderna e que tem sido convertido em ícone da Direita, porque, efetivamente, era racista: José Renato Monteiro Lobato (1882-1948).


Quando não o demonizamos, fica parecendo que estamos a menoscabar a dor dos que sofrem a discriminação, quando dizemos que ele, neste particular, estaria a exprimir uma percepção predominante, fica parecendo que estamos a normalizar o racialismo (estou referindo impressões que já tive de enfrentar, em verdadeiros diálogos de surdos, e por esta razão, as ressalvas terão de ser postas em destaque continuamente neste texto). A experiência, entretanto, ensina: nenhuma luta, por mais legítima que seja, pode lograr simpatias durante muito tempo, quando os que nela estejam empenhados se deem ao luxo de dar como legítimo o que quer que se faça contra os adversários.


Ninguém ouse colocar em dúvida que O RACISMO EXISTE, E DEVE SER COMBATIDO COM TODAS AS FORÇAS. Ser contrário e repudiar as passagens racistas da obra de autores como Monteiro Lobato não dá o direito de negar que este sustentou, solitário, a luta pelo reconhecimento de que existia petróleo no Brasil (diziam, até 1939, que não existia), e foi preso por causa disto por ordem de um Ministro do Estado Novo (Góes Monteiro - 1889-1956) que simpatizava com o III Reich, além de, no final da vida, ter revisto muitas posições extremamente reacionárias, a começar pelo tratamento dado ao Jeca. Não se trata de "passar pano" ou desculpar o indesculpável, mas sim de lembrar que a justiça é dar a cada qual o que lhe for devido, para o bem e para o mal. E, nos tempos atuais, recordar a história do petróleo no Brasil, e de seu papel no COLONIALISMO ainda existente, se torna absolutamente necessário, diante do que se fez e do que se pretende fazer em relação à PETROBRÁS. Os fatos históricos existem, independentemente de simpatias dos personagens. É preciso lembrar que falar em petróleo no Brasil antes de 1939 era ser candidato ao internamento em hospício, e o que significa o petróleo não somente em termos de combustíveis e lubrificantes, como também em termos de insumos para os mais variados produtos. Não há nos meios urbanos, no mundo inteiro, quem não esteja cercado por produtos à base do petróleo.


Por isto que a luta lobatiana pela autossuficiência brasileira em relação a este foi retomada, ao início da década de 50, pelo Professor Washington Peluso Albino de Souza, à época assessorando a Federação das Associações Comerciais de Minas Gerais, e veio a culminar na criação da PETROBRÁS, em 1953, como estudaram com maior detalhe os Professores Wladmir Coelho e Marcus Vinicius Madeira. Ser antirracista - sim, o racismo deve ser REPUDIADO onde quer que se manifeste, e de quem quer que venha, seja de Lobato, Euclides da Cunha (1866-1909), Carlos Maximiliano (1873-1960), Mark Twain (1835-1910) ou Rudyard Kipling (1865-1936) - não dá o direito de adotar postura estalinista.


Veja-se: ao contrário de Carlos Maximiliano, que nos seus Comentários à Constituição de 1946 se condoeu dos escravocratas expropriados (!), na Geografia de D. Benta, Lobato considera um absurdo que o Brasil tenha sido o último país a abolir a escravatura.

Muito escrevi, já, sobre Lobato, realizando transcrições, comparações, menos com um objetivo advocatício, e mais com um espírito investigativo. Foi até por conta do exame dos textos que passei a reconhecer a presença de um racismo, em sua obra, que me passava despercebido, na minha condição de pessoa que não é alvo desse tipo de violência. Muitos dos trabalhos que procuram apontá-lo como um perigoso corruptor da juventude (onde já ouvimos esta acusação antes?), não se pejam em, ao lado de passagens que poderiam ser aptas a permitir a discussão em torno do propalado racismo, pôr acusações nitidamente no campo da invencionice: onde é que ele chama a Nastácia, por exemplo, de "imbecil"? Nem com a voz do narrador, nem com a voz de Emília, sempre desrespeitosa, por sinal, com todos, tal insulto aparece. Por outro lado, existem 18 livros por ele escritos para crianças e 18 livros escritos para adultos, todos publicados pela Brasiliense. Aí dir-se-á: “mas ele retrata o negro como o ser inculto”. Sim, mas não como o ser vil. A vileza, reserva-a à D. Inácia de Negrinha, branca, carola, hipócrita e sádica; não culpa, por outro lado, ao negro sua ignorância, ao contrário do que ocorre com o Cel. Teodorico, personagem de Serões de D. Benta, de O poço do Visconde, de A chave do tamanho, homem branco, rico e ignorante por opção, ou ao Cel. Lupércio, cuja cupidez o faz tornar-se espírita para designar-se, na próxima encarnação, herdeiro da fortuna acumulada, no conto Herdeiro de si mesmo. Por sinal, nenhum dos personagens que se aproximariam dele, em termos de classe – os fazendeiros do Vale do Paraíba – deixa de ser caricaturado como ignorante, hipócrita, vaidoso e violento. D. Benta, do Sítio do Pica-Pau Amarelo, é uma exceção em todos os sentidos: mulher, culta, respeitosa com as percepções dos netos, avessa ao emprego da violência. O que, contudo, não faz com que deixe de reproduzir as relações de hierarquia derivadas da escravidão, ao manter empregada a Tia Nastácia, como bem referido pelo Prof. Alfredo Portinari Maranca no painel realizado no 25º Congresso do IBAP em 12 de agosto de 2021, em que se discutiram os temas relacionados aos incêndios do Museu Nacional, da Cinemateca e da Estátua de Borba Gato[veja aqui].


Já cheguei a ver textos que o opuseram aos abolicionistas, como se fosse ele um saudoso da escravatura. O diálogo entre D. Benta e seus netos em Geografia de D. Benta que fale por si:


“ - Nem queiram saber, meus filhos, o que foi o célebre ‘tráfico de escravos africanos’...virou a maior tragédia da História. A crueldade dos brancos, a cupidez dos civilizados excedeu a tudo quanto se possa imaginar. Pegar negros na África para exportá-los para a América tornou-se o grande negócio dos tempos. [...]

“A tragédia foi longa, mas passou. Os países da América foram libertando os escravos, primeiro este, depois aquele. A Argentina libertou-os em 1813 – foi um dos primeiros e, por isso, está agora gozando a recompensa. O México libertou-os em 1829. Os Estados Unidos, em 1863, e o Brasil em 1888...

“- Por último, heim? Que vergonha para nós! – comentou o menino.

“- Sim. Fomos o último povo no mundo a libertar os escravos. Realmente, essa demora em nada nos honra...” [LOBATO, José Renato Monteiro. Geografia de Dona Benta. São Paulo: Brasiliense, 1960, p. 213-5].


Veja-se: ao contrário de Carlos Maximiliano, que nos seus Comentários à Constituição de 1946 se condoeu dos escravocratas expropriados (!), na Geografia de D. Benta, Lobato considera um absurdo que o Brasil tenha sido o último país a abolir a escravatura. E refere a aventura colonial como uma monstruosidade, seja neste livro, seja na História do mundo para as crianças, seja em Hans Staden. Tudo isto não me faz deixar de criticar certas expressões que são realmente muito graves e ofensivas, como chamar à Tia Nastácia de "negra de estimação", nas Reinações de Narizinho, ou dizer que, quando, assustada, cria asas para subir nas pernas de pau para não ser atacada pelas onças em Caçadas de Pedrinho, tê-lo-ia feito "como se fosse uma macaca de carvão", ou, quando vai referir elogiosamente um negro que resolve entregar parte de suas economias para capitalizar uma companhia de petróleo no conto "Quero ajudar o Brasil", que integra a coletânea Negrinha, chama-o "negro de alma branca". Por mais contextualizadas no tempo que sejam, devem ser criticadas, por associarem negatividade ao negro. Mas não ao ponto de se reduzir a sua obra apenas a esta dimensão.


A posição de Lobato ante o III Reich aparece em A chave do tamanho, escrito em 1942, quando o Estado Novo, sob a influência de Góes Monteiro, ainda flertava com o Eixo, livro no qual Emília interrompe o curso do conflito ao destruir do tamanho de todas as pessoas (tomo como parâmetro a edição de 1960):


‘Aqui morava o ditador que levou o mundo inteiro à maior das guerras, e destruía cidades e mais cidades com os seus aviões, e destruía cidades e mais cidades com os seus aviões, e afundava os navios com os seus submarinos, e matava milhares e milhares de homens com os seus canhões e as suas metralhadoras. O homem mais poderoso que já existiu. Tudo isso por quê? Porque tinha oito palmos e meio de altura. Assim que foi reduzido a quatro centímetros, todo o seu poder evaporou-se’ (p. 158).

‘O Tamanho morreu. E quem acabou com o Tamanho eu sei quem foi, e sei também que essa pessoa é a única que pode restituir aos homens o antigo e querido Tamanho – aquele tamanho malvado, porque se não fosse ele, os homens não teriam sido maus como foram, fazedores de guerras, incendiadores de cidades, afundadores de navios, judiadores de judeus’ (p. 161).


Veja-se, no mesmo livro, a fala que põe nos lábios de D. Benta:

A humanidade forma um corpo só. Cada país é um membro desse corpo, como cada dedo, cada unha, cada mão, cada braço ou cada perna faz parte do nosso corpo. Uma bomba que cai numa casa de Londres e mata uma vovó de lá, como eu, e fere uma netinha, como você, ou deixa aleijado um Pedrinho de lá, me dói tanto como se caísse aqui. É uma perversidade tão monstruosa, isso de bombardear inocentes, que tenho medo de não suportar por muito tempo o horror desta guerra’ (p. 6-7).


Claro que se poderá objetar que a passagem se refere a Londres, cidade de brancos que atrairia naturalmente a simpatia do autor. Mas, não fosse o dado de que a Tia Nastácia e tantos outros personagens negros tivessem sido atingidos pela perda do tamanho, restrita à Humanidade, a quem achar que isto não seria uma mensagem suficientemente clara, vejamos as suas palavras:


‘No mesmo instante, em todos os continentes, em todas as cidades, em todas as casas e ruas, em todos os navios e trens, os seres humanos derreteram-se como sorvete, dentro das roupas, mas de modo instantâneo, e as roupas ficaram no lugar, em `montinhos largados´, quase sempre com um chapéu em cima. E em substituição de cada criatura apareceu dentro de cada montinho de roupa um inseto bípede de várias cores – uns cor de rosa, outros amarelos, outros cor de cobre, outros pretos como carvão’ (p. 156).


Vale, também, lembrar que, mesmo sendo efetivamente racista, Lobato, como editor, publicou obras de Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), afrodescendente que marcava muito mais esta condição que o próprio Machado de Assis (1839-1908), sofria discriminação por ser mestiço, não era autor consagrado que assegurasse retorno à editora, algo que, sob o ponto de vista da empresa editorial, seria uma temeridade.


Repito, isto não arreda a necessidade de criticar e mesmo condenar o racismo em Lobato, mas reduzir-lhe a obra à mera propaganda racialista, longe de auxiliar no combate aos aspectos racistas de seus escritos, faz um profundo desserviço no que toca à retomada de perigos em relação aos quais ele com lucidez alertava e que foram o foco principal de sua atuação. Assim como a obra de denúncia de Euclides da Cunha, seja quanto a Canudos, seja quanto às relações de trabalho na Amazônia, não deixou de exprimir-lhe os preconceitos, e a crítica de Carlos Maximiliano à abolição da escravatura "sem indenizar os agricultores" (!) não lhe descaracteriza a obra valiosa no âmbito da hermenêutica. Criticar, sempre. Apagar da fotografia, jamais.


O presente texto foi a base do pronunciamento do autor no 25º Congresso do IBAP em 2021, em Mesa intitulada “Literatura paulista – existe isso?”, mediada pelo Dr. Rui Guimarães Vianna, composta, ainda, pela Profa. Adriana Iozzi Klein e pelo Dr. Manuel Herzog, realizada em 13 de agosto de 2021, acessível no elo https://youtu.be/DKIq6pR_dvw.

 

Ricardo Antonio Lucas Camargo é professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.



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