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A TRANSNACIONALIDADE DA FRONTEIRA DA PAZ: O LÍQUIDO QUE VERTE MUITO ALÉM DA CARNE E DO VINHO

Atualizado: 5 de dez. de 2023


-João Paulo Rocha de Miranda-


Fronteira da Paz é uma denominação popular para a conurbação fronteiriça criada pelas cidades de Santana do Livramento, no estado do Rio Grande do Sul, Brasil e Rivera, cidade no norte do Uruguai. Atualmente é o segundo destino turístico do estado. Seus atrativos são as compras nos diversos freeshops e a gastronomia focada na boa carne, no churrasco gaúcho, na parrilla uruguaia e é claro nos bons vinhos produzidos no Uruguai e na campanha gaúcha. Localizada no paralelo 31, o mesmo meridiano das melhores vinícolas do mundo, o terroir da Fronteira da Paz tem se mostrado um grande indutor do turismo binacional e na conservação do bioma Pampa, mas isto é assunto para outro dia.


O termo Fronteira da Paz é resultado da cultura de integração surgida da convivência internacional pacífica de ambos os povos. A fronteira entre estas duas cidades é terrestre, estando elas culturalmente irmanadas, mas geograficamente separadas por uma linha divisória imaginária, mas materializada por 1.080 marcos de concreto, construídos com um intervalo médio de 260 metros entre marcos sucessivos e intervisíveis, ao longo de 262 quilômetros de fronteira. Um dos símbolos da união destes povos é o Parque Internacional, única praça binacional do mundo, inaugurada em 26 de fevereiro de 1943, que é compartilhada soberanamente em partes iguais.



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Talvez possamos atribuir a vocação transnacional da Fronteira da Paz ao seu processo de ocupação territorial. Os primeiros ocupantes conhecidos da região foram os índios charruas e minuanos, seguidos pelos jesuítas espanhóis, depois, ao longo do século XIX, vieram imigrantes portugueses e italianos, e no século XX uma leva de imigrantes árabes. Com a economia regional baseada tradicionalmente na pecuária, bovina e ovina, comércio e agricultura, e, mais recentemente, de meados do século XX em diante, na vitivinicultura, no turismo de compras, com diversos freeshops, e no enoturismo, estes diferentes povos, com culturas distintas, mas com objetivos fraternos comuns geraram nesta região do país um ambiente propício à transnacionalidade.

O termo Direito Transnacional foi desenvolvido pelo jurista americano Phillip Jessup, com base na sua aula magna na faculdade de Yale, nos Estados Unidos, que deu origem à obra intitulada Transnational Law, publicada em 1956. Nela o estadunidense definiu Direito Transnacional como “[...] todo direito que regula ações e eventos que transcendem as fronteiras nacionais”.


A palavra transnacional é composta pelo prefixo trans, de origem latina que significa além de, através, para trás, proporcionando a ideia de espaço que atravessa o nacional. Ultrapassa assim a concepção soberana do Estado e rompe com o maniqueísmo público e privado. Portanto, a transnacionalidade é caracterizada pela desterritorialização dos relacionamentos políticos-sociais e pela articulação do ordenamento jurídico planetário à margem das soberanias de cada Estado, mas sem desconsiderá-los.


E isto é o que não falta na Fronteira da Paz, ações e eventos que transcendem as fronteiras do Brasil e Uruguai. A transação de mercadorias e serviços além das fronteiras é notória. Contudo, se me permitem o trocadilho, há mais coisas entre o céu e a fronteira do que sonha a nossa vã filosofia. O uso de recursos, energia, meio ambiente, trabalho, saúde, segurança, serviços públicos, além de diversas outras questões transfronteiriças que envolvem brasileiros e uruguaios são desafios transnacionais.


Embora o Direito Internacional, tanto privado, quanto público, consiga dar respostas à parte destas questões, como ficam os direitos difusos? Aqueles pertencentes a todos, por serem transindividuais, indivisíveis e com titularidade indeterminada e ligada pela circunstância fática de necessitarmos do meio ambiente ecologicamente equilibrado para a sadia qualidade de vida? Embora não exista uma resposta pronta, mas em construção pelos países e pela doutrina jusambiental, parece que passa pela transnacionalidade.


Como o objetivo deste texto não é jurídico, nem tão pouco de encontrar respostas à problemas científicos, mas de provocar reflexões, vejamos o caso do Aquífero Guarani. Um imenso aquífero que abrange partes dos territórios do Uruguai, Argentina, Paraguai e Brasil, ocupando 1.200.000 km², na Bacia do Paraná e parte da Bacia do Chaco-Paraná. Se estende por oito estados brasileiros (GO, MT, MS, MG, PR, RS, SC, SP), além de cidades uruguaias, argentinas e paraguaias. Considerado um dos maiores aquíferos do mundo é capaz de abastecer a população brasileira durante 2.500 anos, sendo a principal reserva subterrânea de água da América do Sul.


Do Sistema Aquífero Guarani o Brasil detém uma área de 737.084 km² (68%), a Argentina possui 225.118 km² (20,8%), enquanto o Paraguai tem 87.521 km² (8,1%), e por sua vez o Uruguai detém apenas 34.341 km² (3,1%). Sua área de abrangência comporta mais de 500 municípios, onde vivem cerca de 24 milhões de pessoas e outras 70 milhões estão em áreas diretamente influenciadas pelas águas do Guarani. Sua área equivale a dos países da Inglaterra, França e Espanha, juntos. O volume total de água do manancial é de cerca de 37 trilhões de metros cúbicos, em grande parte de boa qualidade.


As formações geológicas que constituem o Guarani se deram há aproximadamente 245 e 144 milhões de anos. A espessura das camadas varia de 50 a 800 metros, em profundidades que podem atingir 1,8 mil metros. Os poços mais profundos encontram águas com temperaturas de até 85ºC. Logo, é formado por camadas de rochas arenosas que possuem grande porosidade. Assim a rocha age como um filtro natural, mas não é capaz de reter substâncias químicas, como aquelas proveniente de defensivos agrícolas, por exemplo. Formado por um tipo de rocha esponjosa armazena grandes volumes de águas provenientes da chuva, entretanto leva décadas para percorrer algumas centenas de metros.


Parte do Aquífero Guarani encontra-se na Fronteira da Paz, sob as cidades de Santana do Livramento, BR e Rivera, UY. Região localizada em uma zona de recarga e descarga do aquífero em questão, e, portanto, com expressivo grau de vulnerabilidade natural à contaminação. Nesta região fronteiriça, em um perímetro de 650 km2, a recarga do Sistema Aquífero Guarani ocorre de forma direta e indireta. Pesquisas apontam volumes médios de recarga indireta de 1,3 mm/ano, através das fraturas de basalto, e 140,2 mm/ano nas áreas de afloramento dos arenitos, equivalendo, respectivamente, a 0,08% e 8,55% da média anual de 1.639 mm estimada para a cidade de Rivera.


Diante disso surgem várias questões. Seria moralmente justo países diferentes imprimirem graus de proteção distintos a este bem ambiental transnacional de natureza finita? E um país poderia “privatizar”, ainda que como concessão, este recurso? Ou, ainda, um destes países teria o direito de permitir a contaminação desta água?


Creio que a maioria dos leitores tenha respondido não a boa parte destas perguntas ou pelo menos à última. Pois bem, pasmem! Isto está ocorrendo na Fronteira da Paz. Conforme noticiado pelo Grupo Aplatéia[1], em 24 de abril de 2019, um relatório do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano (Sisagua), o qual é vinculado ao Ministério da Saúde, demonstrou que entre os anos 2014 e 2017 foram detectados em quatorze municípios gaúchos, entre eles Santana do Livramento, a presença de agrotóxicos, acima do permitido por lei, na água que é distribuída à população.


O Grupo Zero Hora[2] também relatou em 4 de janeiro de 2019 que resíduos do herbicida 2,4-D, aplicado em lavouras de soja, foram encontrados na zona urbana de Santana do Livramento, na Fronteira. Teria sido detectado resquício de 0,01 miligrama por quilo na amostra realizada em um cinamomo da Praça Oriovaldo Grecelle, em frente ao Hospital Santa Casa, região central da cidade.


Desta maneira, o Aquífero Guarani, uma das maiores reservas mundiais de água doce, subjacente aos territórios de Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, está ameaçado. Este fenômeno não é exclusivo do Brasil, nem muito menos suas conseqüências. Assim, as águas do Guarani podem vir a ficar impróprias para o consumo humano se medidas urgentes e transnacionais não forem tomadas para frear a poluição dos rios, lagos, arroios, bem como o uso indiscriminado de agrotóxicos e pesticidas.


 

João Paulo Rocha de Miranda- É articulista da Revista PUB e escreve regularmente todo dia 28 de cada mês. Professor de Direito Ambiental da Universidade Federal do Pampa, Campus Santana do Livramento-RS. Advogado. Doutor em Direitos Humanos e Meio Ambiente. Mestre em Direito Agroambiental.


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1 Comment


Elizabeth Harkot De LaTaille
Elizabeth Harkot De LaTaille
Jun 29, 2019

Aprendi muito com seu texto, João Paulo Rocha de Miranda. Não é possível permitirmos que a ganância do imediatismo comprometa a sobrevivência humana. Obrigada pelo alerta!

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