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De Jinga de Angola a Conceição Evaristo: os desafios ainda existentes para a mulheres no terceiro milênio

Atualizado: 22 de abr.

- Renata Fabiana Santos Silva - [1]


“A voz de minha filha

recolhe todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato.

O ontem – o hoje – o agora.

Na voz de minha filha

se fará ouvir a ressonância

O eco da vida-liberdade”.

Conceição Evaristo

(Trecho de Vozes-Mulheres no livro

“Poemas da recordação e outros movimentos”.

Belo Horizonte: Nandyala, 2008).

 

Jinga de Angola foi a soberana dos reinos de Matomba e Ndongo (África Central), no período de 1624 a 1663. Foi a primeira mulher a governar sobre aqueles domínios, além de ter sido o símbolo de força e resistência frente a ocupação portuguesa na África no século XVII. Segundo Renato Drumond Tapioca Neto, “Jinga não fez só da guerra um ofício, como também usou a religião e a arte da diplomacia para proteger seu povo” [01].


Não obstante, Jinga, em uma visão eurocentrada, foi descrita como uma “selvagem e degenerada”. A biógrafa de Jinga, Linda M. Heyhood, destaca que “apesar de seus feitos extraordinários e de seu reinado de décadas, comparável ao de Elizabeth I da Inglaterra, ela foi difamada por contemporâneos europeus e escritores posteriores que a acusaram de ser uma selvagem incivilizada que encarnava o pior do gênero feminino” [02].  


Portanto, seus méritos e conquistas foram invisibilizados e pouco notabilizados na história contada pelos colonizadores. Sob Jinga pendiam dois aspectos fundamentais: ser mulher em um mundo masculinizado e envolto em guerras e disputas; e ser negra em um sistema que marginalizava e subjugava o povo africano, considerando-o inferior e incivilizado. Neste cenário, Jinga jamais seria reconhecida como a líder e soberana que foi a sua época. 


Mas será que esta é apenas a história de uma mulher africana do século XVII? As dificuldades e resistências enfrentadas por Jinga ainda são uma realidade para as mulheres do terceiro milênio? De fato, de Jinga para os dias de hoje, avançamos muito em relação ao reconhecimento de direitos e liberdades para as mulheres, mas obstáculos ainda existem.


No dia 24 de fevereiro, por exemplo, completamos 92 anos da instituição do voto das mulheres, bem como da possibilidade de elas serem eleitas no Brasil [03]. Este foi um passo importante para a inserção da mulher no exercício dos direitos políticos, que até então era de gozo exclusivo dos homens em nosso país. Os direitos políticos não se exaurem apenas na oportunidade de escolha dos representantes, mas também insertam a possibilidade de ocupação dos espaços de representação política. E a representação política constitui hoje um dos grandes desafios para as mulheres.


É certo que temos diplomas legais que buscam assegurar a equidade de gênero na política, a exemplo da Lei Federal nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, que estabeleceu que cada partido ou coligação deve preencher no mínimo 30% e no máximo 70% para candidaturas de cada sexo. Não obstante, a sub-representação das mulheres persiste, como se verifica no estudo realizado pela ONU Mulheres referente as eleições municipais do ano de 2020 [04].


Em 2021, como mais uma forma de garantir o exercício dos direitos políticos das mulheres, foi editada a Lei Federal nº 14.192, de 04 de agosto, que além de buscar assegurar a participação de mulheres em debates eleitorais proporcionalmente ao número de candidatas às eleições proporcionais, também busca prevenir, reprimir e combater a violência po lítica contra a mulher. No mesmo ano foi promulgada a Emenda Constitucional nº 111, de 21 de setembro que estabelece em seu art. 2º: Para fins de distribuição entre os partidos políticos dos recursos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), os votos dados a candidatos mulheres ou candidatos negros para a Câmara dos Deputados nas eleições realizadas de 2022 a 2030 serão contados em dobro”. Esta alteração constitucional busca ampliar a participação de mulheres e negros nos pleitos eleitorais e por consequência viabilizar o aumento da representação destas categorias.


Diversos são os fatores que podem levar a esta baixa representatividade [05], mas a violência política, relacionada ao gênero, pode ser apontada como um dos principais motivos para o afastamento da mulher da representação política em nosso país. A situação torna-se mais aguda, quando se adiciona outros marcadores sociais, como a raça, classe social e sexualidade [06].


Portanto, o pleno exercício dos direitos políticos ainda é um desafio enorme para as mulheres brasileiras no terceiro milênio.


A violência, em suas diversas formas, tão presente no universo de Jinga, não deixou de ser uma realidade para as mulheres da contemporaneidade. A Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas que busca criar um plano de ação para as pessoas e o planeta até 2030, traz como um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável a igualdade de gênero (ODS 5).


Por meio do ODS 5 busca-se “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas” e para isso é estabelecido um conjunto de metas que se espera alcançar até 2030. Uma das metas estabelecidas para este ODS é justamente a eliminação todas as formas de violência contra meninas e mulheres. Dados da OMS indicam que quase um terço das mulheres de todo o planeta que estiveram em um relacionamento sofreram violência física ou sexual por parte de seu parceiro [07]. Além da violência perpetrada pelo parceiro, ainda segundo a OMS, 7% das mulheres do mundo relatam terem sido assediadas sexualmente por terceiros [08].


No Brasil, os dados referentes a violência contra a mulher também são alarmantes. Mesmo após dezessete anos de vigência da Lei Maria da Penha (Lei Federal nº 11.340, de 07 de agosto de 2006), a violência contra a mulher é uma realidade dura e cruel. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública – 2023 aponta o aumento de todos os indicadores de violência doméstica, bem como das demais modalidades de violência contra a mulher [09]. Estas cifras são mais duras ao considerar o marcador raça/cor das mulheres vítimas de violência letal. O percentual de mulheres negras vitimadas chega a 68,9% dos casos.  


No ano de 2023 foram editadas algumas normas que buscam debelar esta triste realidade, a exemplo da Lei Federal nº 14.540, de 03 de abril de 2023, que institui o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual e demais crimes contra a dignidade sexual e a violência sexual no âmbito da administração pública, direta e indireta, federal, estadual e municipal; e da Lei Federal nº 14.786, de 28 de dezembro de 2023, que cria o Protocolo “Não é Não”. 


Estas iniciativas legislativas podem contribuir para a redução da violência contra mulher, mas precisam ser acompanhadas de políticas públicas consistentes que as efetivem. A simples edição de normas não é capaz de mudar uma estrutura social que ainda possui fortes bases no patriarcado. O Estado e a sociedade precisam investir em educação e informação para que de fato tenhamos a sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, conforme dispõe o preâmbulo da Constituição Federal de 1988.


A invisibilidade dos feitos de Jinga, perpetrada pela história contada pelos colonizadores, é algo que também alcança diversos capítulos da história brasileira, sobretudo no que se refere às mulheres negras, mestiças e indígenas. Maria Felipa de Oliveira [10], por exemplo, mulher negra, pescadora e heroína da Independência da Bahia, é uma destas personagens invisibilizadas em nossa história. É certo que hoje existe um esforço para comunicar o protagonismo de Maria Felipa na luta pela consolidação da Independência.


O reconhecimento é algo que ainda custa às mulheres nos dias atuais, sobretudo para aquelas que ostentam outros marcadores sociais. Determinados espaços na sociedade brasileira são quase que inalcançáveis a esta categoria. Podemos citar dois episódios emblemáticos, que ilustram esta dificuldade. O primeiro deles foi a sucessão da Ministra Rosa Weber, em que se clamou pela indicação de uma mulher e negra [11]. Desafortunadamente, as mulheres assistiram a redução da sua representação na Suprema Corte Nacional, o que impacta diretamente no oferecimento de uma perspectiva feminina na apreciação dos casos submetidos a Corte Constitucional. Cabe lembrar das pautas que alcançam as mulheres, como a descriminalização do aborto, que estão pendentes de julgamento e serão definidas por homens. O segundo foi vivenciado pela escritora e poetisa brasileira Conceição Evaristo, ganhadora do Prêmio Jabuti de 2015, com a obra “Olhos D’água”. A campanha promovida pelas redes sociais e pela mídia, bem como a sua trajetória literária não foram suficientes para torná-la imortal da Academia Brasileira de Letras [12].


Infelizmente, a história de Jinga, de certo modo, é repetida com o transpassar dos séculos, com matizes e alegorias diferentes, mas trazem à tona a contínua luta das mulheres por direitos, liberdades e, também, por reconhecimento. Em Angola, a figura de Jinga ressurge na segunda metade do século XX, no contexto do movimento independentista, como heroína nacional que personificava a luta anticolonial. Segundo Linda M. Heyhood, a história de Jinga “revela temas maiores de gênero, poder, religião, liderança, colonialismo e resistência” [13].


Que a força e a referência ancestral de mulheres como Jinga, Maria Felipa, Nésia Floresta, Joana Angélica, Maria Quitéria, Conceição Evaristo e tantas outras nos conduza ao transpasso dos desafios aqui apresentados. Oxalá que muito brevemente possamos celebrar os novos avanços e a efetiva promoção da equidade de gênero nos diversos âmbitos.


Referências


Notas:


  • [Nota 1] Cfr. NETO TAPIOCA, Renato Drummond. Jinga de Angola: a história da rainha guerreira que lutou contra a colonização – Parte I. In: Rainhas Trágicas. Iaçu: 26 de julho de 2020. Disponível em: https://rainhastragicas.com/2020/07/26/jinga-de-angola-a-historia-da-rainha-guerreira-que-conseguiu-deter-a-colonizacao-parte-i/. Acesso em: 26 de fevereiro de 2024.

  • [Nota 2] Cfr. HEYHOOD, Linda M. Jinga de Angola: A rainha guerreira da África. MAIA SOARES, Pedro (trad.). São Paulo: Editora Todavia, 2019, p.6.

  • [Nota 3] A instituição do voto das mulheres no Brasil ocorreu com a edição do Código Eleitoral de 1932, Decreto nº 21.076 de 24 de fevereiro de 1932.

  • [Nota 4] ONU MULHERES. #Violência Não. Pelos direitos políticos das Mulheres. ONU MULHERES BRASIL. Março/Abril 2021. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/125711-onu-mulheres-publica%C3%A7%C3%A3o-analisa-participa%C3%A7%C3%A3o-e-obst%C3%A1culos-das-mulheres-nas-elei%C3%A7%C3%B5es. Acesso em: 26 de fevereiro de 2024. 

  • [Nota 5] Sobre o tema vide: OLIVEIRA, Adna Gomes. Representação política e mulheres no Brasil: sub-representação feminina e a efetividade da cota eleitoral da lei 9.504/97.  Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano. 07, Ed. 06, Vol. 05, pp. 102-142. Junho de 2022. ISSN: 2448-0959, Link de acesso:  https://www.nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-sociais/mulheres-no-brasil, DOI: 10.32749/nucleodoconhecimento.com.br/ciencias-sociais/mulheres-no-brasil.

  • [Nota 6] A combinação das distintas identidades pode ocasionar em desigualdades e reforçar os processos de discriminação e exclusão, daí a necessidade de se abordar a interseccionalidade. Segundo CRENSHAW, “a interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação”. Significa dizer que a sobreposição de formas de subordinação implicam em uma nova configuração social, não apenas em um somatório de discriminação e exclusão. Cfr. CRENSHAW, Kimberle W. Documento para o Encontro de Especialistas em Aspectos da Discriminação Racial Relativos ao Gênero. In:   Estudos Feministas, ano 10, n° 1, 2002, p. 177.  

  • [Nota 7] Vid. OPAS. Violência contra as mulheres. Organização Pan-Americana da Saúde – Organização Mundial da Saúde. Disponível em: https://www.paho.org/pt/topics/violence-against-women. Acesso em 27 de fevereiro de 2024.   

  • [Nota 8] Vid. OPAS. Violência contra as mulheres. Organização Pan-Americana da Saúde – Organização Mundial da Saúde. Disponível em: https://www.paho.org/pt/topics/violence-against-women. Acesso em 27 de fevereiro de 2024. 

  • [Nota 9] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em: 25 de fevereiro de 2024.

  • [Nota 10] BRASIL. Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. Maria Felipa de Oliveira – Uma heroína da Independência. Brasília: MAST, 2022. Disponível em: https://www.gov.br/mast/pt-br/assuntos/noticias/2022/maio/maria-felipa-de-oliveira-uma-heroina-da-independencia. Acesso em: 27 de fevereiro de 2024.

  • [Nota 11] BRAUN, Júlia. Sem nova ministra mulher, STF brasileiro se tornará segundo mais desigual da América Latina. 03 de outubro de 2023. São Paulo: BBC NEWS BRASIL. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy71l5lnelgo. Acesso em: 27 de fevereiro de 2024.

  • [Nota 12] CAMPOS, Mateus; BIANCHI, Paula. Conceição Evaristo: Ela seria a primeira escritora negra da Academia Brasileira de Letras. Mesmo com a maior campanha popular da história, perdeu. 30 de agosto de 2018. INTERCEPT BRASIL. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2018/08/30/conceicao-evaristo-escritora-negra-eleicao-abl/. Acesso em: 27 de fevereiro de 2024.

  • [Nota 13] Cfr. HEYHOOD, Linda M. Jinga de Angola: A rainha guerreira da África. MAIA SOARES, Pedro (trad.). São Paulo: Editora Todavia, 2019, p.6.


 

Renata Fabiana Santos Silva é Procuradora do Estado da Bahia. Doutora em Direito pela Universidade de Sevilha (Espanha). Mestra em Direito Público pela Universidade de Sevilha (Espanha). Pós-graduada em Fundamentos de Direito Público Global pela Universidade Da Corunha. Membro do IBAP.


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