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A PRIMEIRA FEMINISTA

  • Foto do escritor: Revista Pub
    Revista Pub
  • 30 de ago. de 2019
  • 4 min de leitura

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-CELSO AUGUSTO COCCARO FILHO-



A turba bradava, do lado de fora,


- Desça, rameira, prostituta do rei!


Marie de Gouze, que numa das mutações de sua existência passou a se chamar Olympe de Gouges, resolveu enfrentar aquela multidão, que costumava enforcar os desafetos nos postes de Paris e que acabava com a oposição pela raiz, que no caso de inimigos políticos eram as cabeças, o germe das ideias diferentes, espetadas em piques e patrioticamente desfiladas.


Um sans culotte versado na poda das opiniões salientes a puxou pelos cabelos, prendeu-a pelo pescoço e, com o facão já posicionado apregoou aos seus pares,


- 24 soldos pela cabeça da De Gouges, repito 24 soldos, quem vai querer, quem se apresenta?


Uma voz sufocada e reprimida se fez ouvir primeiro:


- cidadão, ofereço um lance de 30 soldos pela minha própria cabeça e peço prioridade...


- feito, cidadã, você venceu! Devolvo-lhe a cabeça, ainda presa à sua dona.


A arrematante da própria vida nascera em 1748, com dois possíveis pais: um açougueiro, burguês do tiers, ou o marquês poeta Franc de Pompignan, um dos muitos narradores da história de Dido, rainha de Cartago, e que se tornou conhecido por ter sido acusado de plágio e massacrado na academia francesa pelo implacável Voltaire.

É claro que Marie, casada desde a adolescência com outro açougueiro, preferia se imaginar filha do marquês trovador.


A viuvez aos dezoito anos quebrou as amarras da existência anônima e subordinada a algum amo do segundo ou do terceiro estado (do primeiro, o Clero, talvez, mas nunca oficialmente...).


Passou a se autodenominar Olympe e a escrever o sobrenome Gouze como o falava, com a influência do sotaque occitano de sua família materna: “Gouge”.


Com a mesma audácia com a qual manteve a cabeça sobre os ombros, lançou-se nos vários salões culturais da época, amigando-se com pessoas influentes, um amante aqui e outro acolá, uma social climber iluminista.


Inverteu a forte tendência a se transformar em comensal, ou a “preferida” de algum homem, com produção expressiva de peças teatrais e dos panfletos políticos, comuns na época, pregados nas paredes de Paris e das principais cidades francesas.


Lançou ideias interessantes, como o “imposto voluntário”, ou “imposto sobre o orgulho”, que visava convencer os franceses abastados a, em nome da salvação social, abdicarem do luxo e do supérfluo. Os contribuintes seriam identificados pelos adereços nobiliárquicos e da burguesia fidalga, como brasões, excesso de cavalos nos cabriolés, rococó nos trajes, e outros símbolos exteriores de conduta socialmente criticável, e convidados a contribuir para os caixas do Estado.


Também se lançou na defesa dos negros, tendo escrito a peça “A Escravidão dos Negros ou o Feliz Naufrágio”, que estreou no Teatro Francês em 28 de dezembro de 1789 e que, apesar do sucesso inicial, ou por conta dele, foi interrompida a pedido dos donos dos camarotes, na sua maioria colonialistas escravagistas.


Mas Olympe se tornou conhecida pela intransigente defesa de outra “minoria”, ou uma minoria que em geral representa a metade ou um pouco mais da população mundial, o seu próprio sexo.


Identificou a falácia do lema “igualdade, fraternidade e liberdade”.


Mesmo no auge do movimento revolucionário, após a extinção do calendário gregoriano, a transformação das igrejas em templos da “Deusa Razão” e a abolição da escravidão na colônias, as mulheres não eram iguais aos homens (sequer votavam ou poderiam ser votadas para a composição das assembleias revolucionárias), não caminhavam ao lado dos homens, como irmãos, na forja da nova sociedade e não eram livres para desfazer uniões conjugais desfavoráveis nem para traçar seu próprio destino e atingir a autorrealização, salvo pela maternidade ou pelos caminho dos esponsais.

Lançou a peça “O Convento, ou os Votos Forçados”, que revelava a falta de livre arbítrio feminino, ao narrar a estória de Julie, forçada pela família a se aproximar perpetuamente de Deus na clausura de um convento...


A defesa da igualdade se fez mais contundente, na “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, que lançou de forma panfletária, em vão.


Artigo 1º da Declaração: “A mulher nasce livre e é igual ao homem perante a lei. As distinções sociais só podem fundar-se na utilidade comum”.


O trecho mais conhecido é este: “... a mulher tem o direito de subir no cadafalso; deve ter igualmente o de subir à Tribuna...”.


E assim Olympe se lançava, sem notar, ao cruel destino. Uniu-se aos girondinos, a “Planície”, mais afáveis que os severos jacobinos, ou a “Montanha”, quando ainda ditavam as regras na Convenção.


Chegou a se voluntariar a defender Luís XVI, no processo que gerou a sua final execução, porque acreditava na monarquia constitucional.


E, de passo em passo, foi tragada pelo Terror.


Escreveu o panfleto “Três Urnas”, que defendia eleições gerais para definição do modelo político a ser adotado pelos franceses, e o fez quando a “Montanha” já dominava a “Planície” e guilhotinara a maioria e seus integrantes. Defendeu a escolha pelo voto entre a República Una e Indivisível, a República Federalista ou a Monarquia Constitucional.


Foi julgada, condenada à morte e executada pela guilhotina, logo no dia seguinte, sem nem ao menos ter tempo para alguma reflexão ou um argumento espontâneo para tentar, outra vez, salvar a própria cabeça.


Embora polêmica, no seu próprio País, é inegável sua contribuição para a causa da igualdade, da fraternidade e da liberdade, em sua acepção efetiva.


Outras mulheres do período contribuíram, com seu talento e sabedoria, mas segundo as regras do jogo social e político, como a Madame de Stael (filha do famoso financista Necker), Sophie de Condorcet (esposa do famoso Condorcet), Manon Roland (esposa do famoso Roland) e Marie Lavoisier (esposa do famoso químico Lavoisier), que, apesar dos talentos superiores aos de “seus homens”, viveram à sombra deles, e os usaram como máscaras ou personas de seus próprios eus.


Olympe se desgarrou e perdeu a própria cabeça, que é homenageada nesta pequena lembrança de sua existência.

Celso Augusto Coccaro Filho escreve todo dia 30 de cada mês na Revista Pub - Diálogos Interdisciplinares. É escritos e procurador do município de São Paulo, além de sócio fundador do IBAP.


 
 
 

1件のコメント


Madeleine Hutyra
Madeleine Hutyra
2019年9月02日

Belo texto, Celso, sobre essa corajosa mulher, precursora de nossos direitos femininos.

Aprendi muito conhecendo seu pioneirismo.

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