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ANTES DAS OITO

- Marília Gonçalves -


Ilustração: (c) Marina de Bonis (2019)

Heitor vê, no fundo do túnel, a luz do vagão que se aproxima com o ruído previsível. Agora olha para os próprios pés encostados junto à linha amarela e depois para o vão por onde corre o trem. O buraco tem um aspecto de ferrugem e pó e um arrepio corre os pelos do seu braço. Ele pensa em Ana, os pelinhos claros no braço fino, a mão com dedos longos e a aliança de noivado, ainda faltam 8 prestações.


Ontem à noite tiveram uma discussão horrorosa. Ele gostaria de apenas concordar com ela e pôr fim ao falatório que acelera o coração e esquenta suas orelhas. Não tem jeito, Ana não quer apenas concordância, faz questão de olho no olho, quer ver sua certeza estremecer pálpebras, repuxar sobrancelhas.


Daí Heitor ficou naquele pisca que pisca repetido, passou a mão pela testa esticando as linhas fundas de expressão que formam uma valeta sobre os olhos. E disse que sim, ia pedir aumento praquele chefezinho de merda que se escondia atrás do trabalho dele, disse que sim ele podia se comprometer mais, sim ele podia mandar a irmã folgada que vivia às suas custas ir cuidar da vida, e sim eles podiam procurar um apartamento decente pra morar. Tudo pareceu tão lógico e fácil, mas agora, menos de doze horas depois, parecia uma missão impossível.


Jonatas tentou segurar a palavra mas sua boca já foi gritando, vai tomar no cu! Escutou a si mesmo, foi sua boca que disse. Não tinha mais jeito. Foi demitido e teve chance de dizer de novo, com mais vontade, vai tomar no cu! Agora ia ter de contar pra mãe e pro médico de toda quarta feira que ouvia tudo o que ele dizia e também dizia coisas e uma das coisas que ele sempre dizia era que Jonatas não devia deixar de vir e falar, que ele ia ouvir e também falar e o que foi que tudo isso resultou, pensa agora, o que foi?

Não conseguiu ir direto pra casa, ia ter que responder perguntas demais. Não ia dar conta. Encostou ali no bar do Raimundo, uma cadeira bamba numa mesa branca de lata com os cantos já descascando e enferrujados. Ficou ali, remoendo as merdas que o supervisor lhe disse, que você se esforça pouco, que você se esconde do trabalho no banheiro, que demora muito pra resolver um chamado simples. Empilha os pequenos copos vazios, a cachaça já amolece as raivas e a língua.


O emprego, quem arrumou foi a mãe, indicação do pastor. Jonatas fez o que pode e aguentou quatro meses, mas só ele sabe o que passou. Chefe escroto. Nunca o tratou como gente. Nem ele nem ninguém. As mulheres do departamento desviavam o olho quando ele entrava na sala, se faziam de invisível, o escroto atacando com olhar de sacana e mãos de visgo. E a mãe dizendo dia sim e outro também que o emprego era uma dádiva de Jesus Cristo, que era uma salvação, que era o lugar dele fazer diferença.

Jonatas quer mesmo fazer diferença. Agora empilha a segunda fileira de copos. A leseira do álcool virou urgência, vontade de sair correndo. Pra onde?


Heitor já tentou ser atendido pelo chefe, faz uns seis meses. A secretária foi simpática, disse que ia encaixar na agenda, mas nunca. Ficou incomodado? Não, foi mais um sentimento de alívio. Pedir o que? Pra ele parecia tudo bom. Chegava às oito e meia, passava pela copa, cumprimentava a moça que acabava de coar o café, enchia sua caneca, pegava o caderno de esportes do jornal sobre a mesa da recepção, subia pra sala e tinha ao menos uma hora pra ler o jornal. bebericar o café, depois fazer cocô e tomar mais um café. Tudo antes de chegar o chefe. Daí era pegar a lista de pedidos, emitir as notas e despachar. Meio dia e meia descer pra almoçar no boteco da esquina. Virado na segunda, ele pedia o ovo com a gema mole, panqueca de carne na terça, feijoada na quarta, macarrão com frango assado na quinta e pescada doré com molho tártaro na sexta. Isso tudo não era uma vida feliz? Ana não concordava. A felicidade dela tinha viagens para lugares que ele desconhecia, paredes lotadas de quadros que não se podia tocar, silêncios quando ele queria gargalhar, muitas palavras quando ele precisava calar. Talvez fosse mais fácil se demitir da vida com Ana. Mas não, estar com ela também era felicidade.


De pé na estação Luz às 7:45, Heitor aguarda o vagão que vai levá-lo à Vila Madalena. Escolheu vestir uma camiseta polo preta com listras cinzas e uma calça jeans escura. No espelho, achou boa sua imagem. De hoje não passa, ou pede aumento ou demissão. Estar com Ana também é felicidade, o pensamento dança na cabeça.


Jonatas pede mais uma dose mas o dono do bar acha que ele já bebeu o suficiente. Não, o dono do bar acha que ele já bebeu todo o dinheiro que tinha no bolso. Vai pra casa, homem, já chega. Ele vai, bem que precisava sair andando mesmo, e se dá conta de que não precisa ir pro trabalho. Pra onde? Caminha zonzo até a estação do metrô, ainda fechada, encontra um canto pra se encostar ao lado da porta, senta e abraça os joelhos. Acorda com um sol ardendo a zoeira da cabeça que dói. À sua volta, pares de pernas caminham rápido em todas as direções. O cheiro do milho verde desperta seu estômago que dói. Mas dor pior está esparramada pelo corpo. É o peito que aperta, as mãos que tremem, essa gente toda que sussurra e fala e grita na sua cabeça. Tanto ruído.


Levanta o corpo que pesa toneladas e entra na estação, o relógio marca 7:40. Ontem ele estava chegando e hoje está indo. Jonatas vê os olhares reprovadores sobre si. Sua aparência não deve ser boa, o cheiro do desodorante vencido misturado ao álcool que evapora pelos poros. A vontade é de gargalhar. Não gostou, prende a respiração, hahaha.


Desce a escada rolante, passa o bilhete na catraca, confere o saldo, ainda tem umas cinco viagens pela frente. A estação está lotada, como sempre nessa hora. Caminha até o final, sempre usa o último vagão. Não há um bom motivo pra isso, mas gosta de fazer as coisas com algum método, ter algum controle na vida incontrolável. A imagem do chefe e sua voz insuportável voltam a assombrar seus pensamentos, um azedo sobe pelo estômago, ele suga forte o ar pelo nariz.


À sua frente, um homem baixo vestido com camiseta polo listrada e calça jeans. Carrega uma mochila pendurada nas costas que puxa para trás um par de espáduas tão desanimadas, não fosse o peso, desabariam, revelando o total fracasso de espírito do sujeito. Um homem fraco, era isso que Jonatas via, um completo derrotado. Não um homem que teria a sua coragem, xingar o chefe, mandar tudo às favas. Uma pessoa sem condições de fazer diferença, mãe, imagine isso, se ele fosse seu filho, estaria agradecida ao seu Jesus Cristo? É assim que eu devia ficar, doutor, se eu tivesse assim os ombros caídos e a boca calada, eu podia parar de tomar esses remédios que não me ajudam em nada?


Heitor sentiu o empurrão, e que caía, muito rápido, quase um sonho. Enquanto seu corpo voava para o vão do trem, não sentiu nada. Sua vida inteira não passou como um filme pela sua mente, os filmes mentem. Também não teve medo, não foi nada além do tapa metálico que espatifou seu corpo as 7:54.


Jonatas, agarrado por quatro seguranças vestidos de negro, não ofereceu qualquer resistência. E aí mãe, fiz ou não fiz diferença?


 

Marília Gonçalves é escritora e cozinheira.



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2 commenti


Elizabeth Harkot De LaTaille
Elizabeth Harkot De LaTaille
22 mar 2019

Lindíssimo, quanta sensibilidade! Parabéns, Marília!

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Guilherme José Purvin de Figueiredo
Guilherme José Purvin de Figueiredo
21 mar 2019

Parabéns, Marília! É uma nova leitura de um tema clássico! As imagens remetem a Leon Tolstoi e Mikhail Bulgakhov, mas com um quê de Clarice Lispector. Como em seus poemas, você é sempre sensível e precisa em seus contos!

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