- Adriana Abelhão -

O nome já espanta o povo. Audiência Pública tem nome de encrenca na justiça. Para o cidadão comum já parece algo com presença de juiz, tribunal, culpados, algo que eu não vou dar conta de entender, ou pior, que não tem nada a ver comigo. Só pode ter um monte de políticos falando difícil, “gente besta” querendo aparecer e poderosos com os quais não me meto, porque pode “sobrar para mim”. O nome já blinda a participação popular, mas leva em seu bojo a lei que determina que diante de uma intervenção importante na geografia social, como a construção de uma estrada, de uma creche, de um hospital, de um piscinão, uma praça, seja lá o que for que vai influenciar a minha vida, que seja discutida com a população que será beneficiada ou atingida. O que dizer então da importância desses esclarecimentos e discussões diante de empreendimentos que vão, nada mais nada menos, atingir nossa capacidade de sobreviver neste planeta, das questões ligadas ao meio ambiente?
Mas, não fomos convidados...
Em dezembro de 2017, estavam reunidos representantes da população da cidade de Itapecerica da Serra - SP para a posse do Conselho Municipal do Meio Ambiente, depois de dois anos sem atividade e da insistência por parte das ONGs ali representadas. O Presidente do Conselho e obrigatoriamente Secretário do Meio Ambiente, cargo não eletivo, imposto por um Regimento Interno truculento, abre a reunião e retira-se. Dias depois, ficamos sabendo por um dos conselheiros que em três dias ocorreria a Audiência Pública da Expansão da Pedreira da Votorantim no bairro de Itaquaciara, dentro da Reserva da Biosfera do Cinturão Verde da Cidade de São Paulo. Ficou claro que o Secretário do Meio Ambiente não queria os conselheiros presentes e omitiu a informação. A população não era benvinda. A divulgação foi parca e acanhada e é risível a justificativa da Votorantim em seus documentos apresentados à Promotoria Pública, diante de nossos questionamentos: cartazes e inserções em rádio dias antes da audiência, marcada para 14 de dezembro, quando todos estavam zanzando pela cidade, em seus últimos dias de trabalho, com sacolas nas mãos, aproveitando as ofertas de última hora para a festa de Natal. Hora, era isso que se esperava. A data foi escolhia a dedo.
Não fomos convidados, mas estávamos lá!
Corremos à Biblioteca Municipal onde estavam os relatórios de impacto ambiental do projeto de expansão da pedreira, o EIA-RIMA. Topamos com três pilhas de papel de 30 centímetros cada, conseguimos o arquivo digital e passamos três dias debruçados sobre aquela papelada toda. Em suma, tratava-se de um desmatamento de 19 hectares em local conhecido por nós, coalhado de mananciais e nascentes, há mais de setenta anos recuperando-se de desmatamento anterior (a tal da mata secundária citada no relatório) e recheado de Mata Atlântica Nativa, em plena Bacia do Guarapiranga. Confesso que meu coração foi perpassado por uma flecha. O relatório detalhava o que sabíamos: a existência de uma fauna fantástica, animais de grande porte em extinção ou em vias de extinção, como a onça parda, o veado mateiro, o caititu, o preguiça e o macaco bugio, para falar só dos maiores, uma riquíssima fauna e flora e aves raras como o Urutau e a Araponga. A proposta era dobrar a produção e gerar... 20 empregos. O plano de desmatamento detalha minuciosamente como seria destruída a Mata Atlântica, arrancadas caneleiras, manacás, paineiras, araucárias, jangadas bravas, cedros rosa e juçaras e de como seriam empilhadas ao largo do buraco imenso, para posterior “encaminhamento”. Para a fauna, perdas irreversíveis, “taxa de atropelamento de animais”, os quais seriam “afugentados” (sic) por biólogos.
Quanto à população do entorno? Segundo o relatório estaria muito bem, obrigada, feliz com as explosões, com as rachaduras de suas casas, com o assoreamento de seus rios e lagos, com o pó branco adentrando em suas casas e seus pulmões. Na verdade a população de nada sabia, nem mesmo um operador de máquinas da pedreira que consultei tinha informações sobre a expansão, ou, por medo de represálias por parte da empresa, não quis falar. Segundo determinação do CONSEMA – Conselho Estadual do Meio Ambiente, a Audiência Pública deveria, além de ser amplamente divulgada, ser realizada no bairro de Itaquaciara, onde está a população diretamente afetada, onde não foi afixado sequer um mísero cartaz. A audiência era para ser um cocktail comemorativo nas dependências da Prefeitura de Itapecerica da Serra, e nós estragamos a festa.
No dia, em horário que o trabalhador está na labuta, conseguiram comparecer eu, dois biólogos, professores da rede estadual, o vice-presidente do Conselho Municipal do Meio Ambiente, que já foi à reunião com uma proposta de trocar nossa Mata Atlântica por qualquer esmola, como são as oferecidas pela empresa à comunidade de Itaquaciara: aulas sobre Meio Ambiente dentro de quatro paredes com cartazes feitos com o poluente EVA e visitas das crianças do bairro à mina da pedreira para aspergir pó de sílica e ver aquele cenário dantesco que é uma cava de pedreira de granito. Estavam presentes também mais dois conselheiros e o Secretário do Meio Ambiente, literalmente enfiado numa cadeira da assistência, calado.
A apresentação seguiu no formato power point, fluxogramas e tabelas abarrotadas de taxas, números e percentuais. Dentre nós, economistas e engenheiros, ok, mas estava difícil de entender aquela enxurrada de informações tudo de uma só vez. Ué? Mas não era uma audiência para “esclarecer a população?” Definitivamente a Audiência não levava em conta uma linguagem para explicar o projeto às comunidades atingidas. Ahhh, mas para isso tem o RIMA – Relatório de Impacto Ambiental que é, por lei, documento em linguagem acessível para que a população possa saber como o empreendimento pode afetar a vida das comunidades. Então foi apresentado o RIMA. Resumindo, a área afetaria a Bacia da Guarapiranga, uma área de 19 campos de futebol, destruindo pelo menos cinco nascentes, dois lagos e incontáveis cursos d’água, onde vivem os animais citados acima. Seria desviada uma estrada e como a produção anual de granito passaria de 1,5 milhão de toneladas ano para 3 milhões ano e seriam criados... 20 empregos diretos. Só que não...
Por sorte, três de nós inscreveram-se e tiveram direito à palavra. Entre questionamentos sobre as pesquisas de campo, que só acharam três répteis; sobre a inexistência do plano de compensações ambientais; sobre a morte de animais... questionamos a criação de apenas 20 empregos diante de tanta destruição. Tivemos cinco minutos cada um para falar, mas foi o bastante para irritar os executivos da empresa que elaborou o EIA-RIMA, a Prominer, que também vende consultoria de negócios para prospecção na área da mineração. Aberração made in Brazil? Cadê a isenção? Nenhuma. Eles se mostraram visivelmente irritados, caíram do salto de suas posições de executivos com planilhas ensaiadas e a partir dali, foi apresentado um plano totalmente diferente, agora de improviso, nas falas dos executivos visivelmente incomodados. Disse o executivo da Prominer: “não serão criados novos empregos...” Como? E ainda: “a produção continuará em 1,5 milhões ano... só que estenderemos a exploração por mais 30 anos...” Hã? Como assim? E o que estava no RIMA?
Tudo por água abaixo em dez minutos. Não permitiram que fosse feita nossa réplica. Tentamos falar de onde estávamos, ouve bate-boca, o Secretario Municipal do Meio Ambiente continuou calado e o representante do CONSEMA encerrou a Audiência dizendo que teríamos cinco dias úteis para fazer questionamentos formalmente. Mas o que não disseram é que essa “mudança de planos” já fora apresentada à CETESB – Companhia Ambiental do Estado de São Paulo, seis meses antes da Audiência, invalidando totalmente o RIMA. A mudança se deu por exigência das restrições da Lei da Guarapiranga, o projeto explodiria agora do outro lado, a Bacia do Alto Ribeira, ainda sem lei de proteção a esses mananciais, legitimando o assoreamento e a destruição de rios, córregos e nascentes que abastecem o Rio São Lourenço, rio que foi violentamente transposto para que suas águas abastecessem São Paulo, pós crise hídrica. Se a expansão for à frente, com certeza, novas crises virão.
Foi vergonhosa a Audiência Pública da Expansão da Pedreira da Votorantim. Vergonhosa por apresentar dados desatualizados, por mentir quanto à geração de empregos, por não ter havido divulgação, por não promover a participação da população, por não dar direito de resposta aos cidadãos e por nos ofender, quando o que deveria ser um momento de esclarecimento aos moradores de nossa cidade, na verdade era um cocktail de comemoração entre os funcionários da empresa e os servidores públicos presentes. E eu pergunto: por que essa audiência só para inglês ver ainda não foi cancelada? Por que os poderes públicos insistem em consentir a exploração de granito em área de mananciais, fábrica das águas?
Brasil mostra a tua cara!
Adriana Abelhão - Itaquaciara, desde o Cinturão Verde da Reserva da Biosfera da Cidade de São Paulo.
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