- Ibraim Rocha -
O Livro a República de Platão pode ser considerada a obra germinal da tradição do pensamento ocidental que simboliza o uso da razão como instrumento para contornar as nossas imperfeições individuais por meio de um modelo coletivo de bem viver, uma verdadeira utopia.
E a sua forma de exposição por diálogo longe de ser aleatória revela no seu método uma face da razão as vezes esquecida, é que o diálogo longe de ser algo que pode resultar na verdade de cada um, é instrumento válido para encontrar a verdade.
No livro I, (328, C – 331,B) o seu primeiro debate inicia com Céfalo, homem na soleira da velhice, e que justamente Sócrates indaga a este se tal condição é um fardo, pelo que este responde negativamente, mostrando, ainda, que mesmo sendo homem de posses, não é isto que lhe torna menos penosa a condição, mas sim saber aproveitar que esta lhe livra da tirania dos desejos do corpo, ou, seja, pode alçar a liberdade pelo uso das faculdades da razão.
E completa a sua resposta, dizendo que o mais importante para suportar a velhice, quando já nos aproximamos de saber se o Hades existe, não é a riqueza mas sim o fato de “Aquem a consciência nada acusa, esse sempre tem por companheira a doce Esperança, como bondosa guardiã da velhice”. E acrescente à resposta a primeira assertiva da obra, que permitirá a Sócrates introduzir o debate sobre o que é a Justiça, de que “a riqueza é de grande vantagem, porém não para todos; apenas para as pessoas equilibradas”.
É essencial compreender que na polis ideal platônica, a moral dos cidadãos, antes de mero reflexo, é constitutiva da República.
O diálogo antecede o debate sobre o que é a Justiça, mas, geralmente, os advogados só olham para a discussão em torno do brocardo de Simônides de que justo é dar a cada um o que lhe é devido, cuja atualidade mal compreendemos onde o refregar de ideias aponta que o homem justo não pode produzir injustiça. Se daquele enunciado originariamente tinha brotado a resposta de que ao homem de bem deve-se fazer o bem e ao homem injusto deve-se fazer o mal, ele certamente seria acolhido no momento atual, por sua paridade com o slogan da extrema direita de bandido bom é bandido morto. Certamente este ponto é essencial para se compreender que na polis ideal platônica, a moral dos cidadãos, antes de mero reflexo, é constitutiva da República, que tenha um bom governo.
Esse tipo de debate é essencial de ser retomado, pois o positivismo jurídico limita a função do estudo do direito que antes e sobretudo é o desvendar interpretativo da norma escrita, e dai vai m longo debate sobre se a norma teria um determinado ponto ou base que seria incontroverso, mas a questão embora importante, não é ou deveria ser a fundamental, e, assim, mesmo autores progressistas, inconscientemente, talvez, caem na armadilha do positivismo, que é centrar o debate sobre este aspecto, do desvelar da norma.
O debate envolve o aspecto interpretativo, mas quando se enfatiza o aspecto normativo e se deixa de compreender o locus histórico e demais elementos onde o próprio intérprete se situa, se perde o caráter fundamental que é entender porque é necessário justificar ou se demonstrar que existe uma escolha moral, sendo realizada, a questão então passa a ser o debate de que existe uma escolha certa, ainda que temporal e concretamente limitada.
Por isso um autor como Dworkin é mal compreendido pois a sua leitura se pregra no mais a discutir se há ou não limites a discricionariedade, quando a sua correta leitura deve ser focado no debate do resultado do uso da metodologia dos princípios que adota para obter a resposta certa, e como tal, o mais importante seria debater essas resposta, como Platão procedia, pois a própria noção de aplicação jurídica e a sua conexão com o ato de interpretar para obter a verdade, já revela a sua historicidade e do próprio ser que a revela, cuja complexidade a obra de Heidegger expressa no conceito de Dasein.[1]. Embora, ele não apresente na sua análise sob este foco filosófico especifico.
Dworkin na sua exposição sobre o Poder Judiciário procura estabelecer limites para avaliar o exercício concreto da discricionariedade judicial, mas sem ignorar o papel do legislador e da política no contexto da Teoria do Direito como Integridade, o que se permite avaliar o resultado da prática interpretativa. Nesta linha, ele apresenta três princípios morais práticos, e, que nunca deveriam ser ignorados.
O primeiro é o princípio da Integridade na Legislação, o qual exige que o legislador, ao criar as normas, mantenha-se coerente com os princípios, o segundo é o princípio da Integridade nos processos judiciais, que exige dos juízes que as normas sejam analisadas e decididas de forma coerente com os princípios.
Tal princípio explica como e por que deve ser permitido o poder especial como próprio das cortes, explicando por que os juízes devem compreender o corpo do direito que administram como um todo, em vez de um conjunto de decisões desconectadas que seriam livres para fazer ou alterar uma por uma[2].
E o terceiro princípio prático, é o princípio da Integridade Política que revela a personificação da Comunidade ou do Estado que se dirige segundo princípios de equidade, justiça e devido processo legal. Assemelha-se ao caminho de entrega particular que as pessoas adotam determinadas convicções, ideais ou projetos, o que pode parecer uma forma de metafísica de má qualidade, mas que tomado como um princípio, impõe reconhecer que os agentes públicos autuam em nome de todos os membros da comunidade e a necessidade de tratar a responsabilidade coletiva como anterior à responsabilidade de cada uma das autoridades[3].
Segundo estes princípios é que se pode não só limitar como avaliar as decisões judiciais sob o aspecto do controle da discricionariedade, que tomados em conjunto criam uma organicidade das normas públicas que podem expandir e contrair, conforme as necessidades. Essa sofisticação da comunidade a torna capaz de sentir e explorar o que esses princípios demandam em circunstâncias novas, sem necessidade de alteração legislativa ou jurisprudencial a cada ponto de conflito. O Direito como Integridade promove a fusão das circunstâncias políticas e privadas, uma como espírito da outra, promovendo o benefício de ambas[4].
A partir desta exposição, pode-se entender que, de acordo com o Direito como Integridade, as proposições jurídicas são verdadeiras se elas se apresentam ou derivam de princípios de Justiça, equidade e devido processo legal, que promovem a melhor interpretação construtiva da prática legal da Comunidade, e que tal concepção do direito somente faz sentido entre pessoas que também desejam equidade e justiça[5].
Portanto, logo se vê que Dworkin retoma por outro caminho, os princípios de análise da República Platônica, onde o cidadão de bem não é definido a partir de uma escolha politica aleatória, mas segundo uma concepção e debate racional, sobre quais os melhores princípios que devem conduzir a polis.
Mesmo países de longa tradição liberal, não se pode negar o reconhecimento positivo de práticas estatais que permitem aos seus cidadãos livremente proceder escolhas, onde porém o Estado possui um importante papel em promover politicas públicas que induzam que essas escolhas promovam maior bem estar dos seus cidadãos, o, chamado soft paternalism, ou, paternalismo libertário, cuja obra principal deste modelo foi escrita por Richard H. Thaller e Cass R. Sustein, segundo a concepção de NUDGE.[6]. A grosso modo, seria favorecer por meio de arranjos organizacionais, ou incentivos diversos, que a escolha dos cidadãos se concretize naquela que opção que promove maior bem estar individual e coletivo, o que pressupõe uma escolha e avaliação racional prévia de qual é a escolha certa. Portanto, envolve uma escolha moral.
se há alguma politica publica de direcionamento é para uma situação de caos
Quando se aproxima estes três aspectos, logo fica claro que a sociedade brasileira se encontra no pior cenário para uma democracia saudável. Não temos um debate racional sobre os princípios que a regem, no plano politico, legislativo ou judiciário. Se há alguma politica publica de direcionamento, é para uma situação de caos, pois os valores morais que inspiram o governo Bolsonaro nunca foram claros no período eleitoral, ainda, que se pudesse já se visualizar o trailler de um verdadeiro filme de terror, que agora vai se concretizando aos poucos, em menos de 1 mês de governo. De fato, a sua comunicação sempre foi dúbia naquele período, favorecendo o discurso de que os espectros de oposição eram exagerados, ou, que estes é que, ironicamente, seriam fake, apesar de no final do processo eleitoral ter estourado o escândalo do WhatsApp e Fake News como algo profissional, e que, pelo que se vislumbra, será solenemente ignorado pelo TSE.
Dois atos diretamente vinculados a caneta do chefe do executivo simbolizam bem o pouco a preço ao princípios reconhecidos no Art. 1º da Constituição Federal da dignidade da pessoa humana e valor social do trabalho:
aquele primeiro ao ampliar a possibilidade de posse de armas, que sem debate com a sociedade, concretamente aumenta o risco de mortes violentas, por maior exposição de armas de fogo em ambientes domésticos, podendo o cidadão de bem ter até 4 armas;
reduzir mediante decreto, o valor do salário mínimo, já aprovado pela câmara, apesar da iniciativa partir do executivo, e com base na Lei 13.152/2015, aumentando a sensação de letra morta do artigo 7º, inciso IV, da CRFB que define o salário mínimo como direito dos trabalhadores, para atender as suas necessidades vitais e de sua família, preservado o seu poder aquisitivo.
A resposta neste cenário é promover uma contra hegemonia que alcance as massas, com diálogos multidisciplinares em blogs de acesso comum
A única resposta neste cenário é a construção de uma ação concentrada em promover uma contra hegemonia de princípios que alcance as massas sociais, daí que fundamental diálogos mais abertos, multidisciplinares, e ocupação de espaços que permitam mais facilmente defender e difundir valores morais que favoreçam o bem estar comum, respeitando as liberdades individuais.
É hora de produzir mais para os blogs e sites de acesso comum, do que revistas especializadas A1, que nem mesmo os doutos acabam tendo tempo para Ler, sem a indispensável ação de formação de lideranças comunitárias.
Um belo exemplo, é o Curso de Capacitação de Promotoras Legais Populares, promovido pelo IBAP em conjunto com a União de Mulheres de São Paulo, já com 22 anos de existência, e cerca de 5 mil lideranças formadas, retomar relações entre a academia e sociedade civil, privilegiando as minorias, como mulheres, negros, sem esquecer os espaços comunitários e sindicais.
Por fim, um outro campo essencial é disputar os espaços nos tribunais, mas como as linhas no verdadeiro NUDGE do CAOS se apresenta.
É preciso que a defesa nos tribunais apontem uma argumentação que consolide determinadas decisões do passado, que a pouco nos pareciam verdadeiros retrocessos, agora, podem ser um bom caminho para se manter um mínimo patamar civilizatório.
É preciso induzir os tribunais a manter conquistas, pelo delineamento dos princípios firmados em julgamentos históricos, como raposa serra do sol e ADI 3239, ainda, que se deva apresentar argumentos que possam ampliar o aspecto positivo, de aspectos que a princípio seriam negativos num quadro de normalidade democrática.
Estas são as linhas gerais para iniciar o debate.
[1]Benedito Nunes, profundo interprete da obra de Heidegger, assim explica o Dasein: ”O Dasein continua sendo o lugar da verdade originária, só que agora a abertura pertence ao ser e não a ele; dir-se-ia que a iniciativa vem do ser e não do homem. Dir-se-ia também que o projeto só é mundo-formativo (weltbilden) porque o homem já se expõe ao ente em sua disposição, e, por conseguinte, na assinalada condição de sua facticidade, como um ai, onde o ser se projeta. Cfr. NUNES, Benedito. Do primeiro ao ultimo começo.In. Crivo de Papel. São Pailo: Edições Loyla, 2014, p. 49.
[2]DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 167.
[3]DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 167, 175.
[4]DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 188, 190.
[5]DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986. p. 225-263.
[6]THALLER, Richard H.; SUSTEIN, Cass R. Nudge: improving decisions, about Health,Whealth and Happines: Pengui, 2009.
Ibraim Rocha, doutor em Direito (UFPA), é Procurador do Estado do Pará.
Que análise incrível! Aprendi muito! Obrigado, Ibraim!