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PROCURA-SE

Atualizado: 15 de mai. de 2019


Ilustração de Marina de Bonis

- MARÍLIA GONÇALVES-


A porta bateu. Estava difícil respirar. Muito. E respirar é uma coisa automática, não devia chamar a atenção de ninguém. Mas o peito enferrujado puxava o ar meio raspando. Antes da porta bater reparou no aparelho de ar condicionado silencioso. Ao lado da máquina de café expresso havia cápsulas douradas e roxas e verdes e negras. Gostaria que ele tivesse lhe oferecido um café. Seria gentil.


Às nove da manhã, quando chegou ao trabalho, estava com o convencimento todo pronto, foram horas de ensaio no espelho. Que estava na empresa há três anos, acumulava funções, fazia já o trabalho de duas pessoas. Precisava funcionar. O pedido de aumento era pequeno mas seria suficiente para quitar as dívidas num máximo de dois anos, o cálculo feito e refeito anotado na caderneta com duas cores de caneta.


O discurso não chegou a ser dito por inteiro. Que a empresa está em dificuldades e precisa quem faça o serviço de três e não de dois. Despedida. Nenhuma amenidade ou café.


Dois dias escorreram. Ela fingindo de morta, as janelas fechadas, o quarto no breu, invisível e imóvel na cama. No terceiro ela chorou um pouquinho debaixo de um longo banho quente, vestiu-se como quem tem aonde ir e começou a vasculhar por soluções. Das nove às onze comunicou à sua rede de contatos que estava disponível para novos desafios. Das onze ao meio dia investigou as redes sociais do ex chefe em busca de um deslize, uma infelicidade. Não achou nada, mas que diabos, isso não quer dizer nadinha mesmo.


Juntou os restos da geladeira e esquentou na panela uns bocados de yakisoba com um pedaço de omelete de cebolinha e ramos de brócolis meio ressecados. Concluiu que não estava de todo mal enquanto o jornal da TV repetia notícias a cada cinco minutos. O mundo se repete a cada quantos minutos mesmo?


Um primo indicou e ela bem tentou por uma semana, mas não foi capaz de intermediar a oferta e a procura de óvulos sadios para fertilização. Há menos de um ano conformara-se em não ser mãe. Não assim, sozinha e no limite da pobreza, mãe não seria. Mas havia algo de poético na coisa toda e aquele comércio imperativo parecia muito diverso. Demitiu-se.


Aceitou uma quantia suficiente para pagar uma conta de luz e fazer uma compra de feira para dormir na rua em frente ao estádio, o pé escapando pela colcha fina, um medo do frio pela madrugada. Caprichou em cobrir o rosto, resquício de orgulho. Cuidado desnecessário, a longa fila estava coalhada de adolescentes desconhecidos e só. Nem doeu tanto mas eram raros os pedidos de guardadora de fila, precisava de alguma coisa mais consistente.


Uma amiga chegou com uma proposta, veio junto uma explicação envergonhada. A empresa multinacional precisava de testadores para os seus desodorantes. Não, não era para usar o produto. Era para cheirar quem usava. Marina aceitou de pronto. Era trabalho honesto, era agora, em tempo de pagar as contas. Apresentou-se no dia seguinte, seguiu as instruções. Banho tomado, sem creme nem perfumes, as narinas livres e frescas. A fileira de gente ia erguendo os braços, os olhos postos em lugar imaginário, que não se queria contato visual. Marina cheirou uma pele que tinha sal e desejo. Cheirou um sovaco que era o perfume do desodorante e nada mais, nem podia ser uma pele viva. Foi cheirando e anotando, mais um, mais um. Agora um cheiro de falta de ar, cheiro de caverna escura, cheiro de me larguem e quem sabe eu morro assim. Podia ter aguentado aquilo por mais tempo, começava a encontrar poesia na diversidade de odores, mas os analistas acharam suas observações muito subjetivas. Se soubesse, podia ter dito cheiro de queijo e não sal e desejo. Demitida.

Passeou cachorros. De quadra em quadra a pausa para recolher bolinhas de cocô. Um boxer, dois Golden Retrievers e um labrador. Cagões, todos eles. Melhor seria ensinar os bichos a surfar. Leu numa revista. Pra isso tinha que morar na praia. E saber surfar.


Agora cansou, diz de boca cheia a quem ouse perguntar. Canseira, humilhação, por uns poucos dinheiros. Ainda aceita ser Personal Dancer, o clube de idosos do bairro está sempre precisado de pares. Tantas mulheres avulsas. Os homens são minoria, sempre arranjam parceira. Também pode se virar fazendo manicure ou desenhando sobrancelhas, faz até faxina se precisar. Mas profissão mesmo é outra coisa. É vocação, pede um desejo da alma. Ainda que o dinheiro venha minguado. Nem cheiradora nem corretora, nada disso. Sou escritora, a voz animada de quem descobriu um segredo. Diz que a aguardem, está cheia de histórias pra contar.


 

Marilia Gonçalves - escritora e cozinheira


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