- Ricardo Antonio Lucas Camargo-
Vimos, nos últimos dias, a polêmica em torno da determinação presidencial acerca das comemorações do dia 31 de março como a data dos 55 anos do impedimento da ascensão comunista no Brasil. Diante das reações provenientes das mais variadas fontes, houve recuo em relação ao verbo, que passou a ser “rememorar”.
Foram propostas ações populares e ações civis públicas, uma delas da lavra da Defensoria Pública da União, em que foi concedida liminar, cassada pela Corregedora da Justiça Federal junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região ao fundamento de se tratar de matéria discricionária.
Alguns fervorosos defensores da prerrogativa de dar como defensável até mesmo a despersonalização do adversário manifestaram um desejo de que fosse aquela instituição condenada por litigância de má fé, porque ser contra tal decisão seria o desvio dela para fins político-partidários. Como se fosse possível comemorar o golpe de 64 sem o fazer em relação a tudo o que ele tornou admissível, como o revelou mesmo a CIA.
Mesmo assim, houve uma repercussão internacional, inclusive junto à ONU, extremamente negativa, como se sabe, já que aquela organização internacional, situada em território norte-americano, qualificou como imoral a comemoração de um regime baseado na censura prévia e na exclusão de direitos fundamentais herdados do próprio constitucionalismo ocidental que ele dizia proteger, como, por exemplo, o habeas corpus e o acesso ao Judiciário. Os artigos 10 e 11 do Ato Institucional n. 5, de 1968, não têm como se conciliarem com qualquer tradição liberal ou democrata. Recordemos que dentre os atingidos estiveram, além de JK, Edgar de Godoi da Mata-Machado, militares legalistas como Ruy Moreira Lima e Henrique Teixeira Lott, Ministros do STF como Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes Lima, e também os articuladores e apoiadores do movimento Carlos Lacerda e Adhemar de Barros.
Foi publicizado, ainda, um filme pelo twitter do Palácio do Planalto defendendo a tese de que a atuação civil-militar de 1964 – os civis que o próprio Marechal Humberto de Alencar Castello Branco chamava de “vivandeiras” – teria sido a defesa dos valores sagrados que a subversão comunista pretendia destruir. Um particular veio assumir a autoria respectiva, as fontes do Planalto vieram dizer que não tinham conhecimento de quem o divulgou e coisas do gênero.
Qual o problema, neste caso?
É que as mesmas razões que serviriam para justificar a condenação da ex-Prefeita de São Paulo por ter utilizado veículos oficiais para se solidarizar a uma greve – o caráter de promoção de um ideário partidário, sem caráter educativo, informativo ou de orientação social (Constituição Federal, artigo 37, § 1º) – não teriam, em princípio, como ser superadas em relação ao vídeo do Planalto.
A tese foi adotada pelo Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário 208114/SP, relatado pelo Min. Octavio Gallotti, publicado o acórdão no Diário de Justiça da União do dia 25 de agosto de 2000.
A menos que se tenha de considerar o inciso VIII do artigo 5º da Constituição Federal, proveniente da tradição norte-americana, como não escrito, as convicções políticas não podem ser utilizadas como critério para se reconhecerem prerrogativas ou para se negarem direitos.
A menos que, como na fábula escrita em versos por La Fontaine e contada em prosa por Monteiro Lobato, se entenda defensável que o lobo devore pastores e ovelhas e condenável que o burro paste a couve do sacerdote, para que Deus castigue os animais com a peste...
Ricardo Antonio Lucas Camargo é Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Professor visitante da Università degli Studi di Firenze – Ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública.
Uma bela leitura de como falta unidade e coerência da atuação institucional, perdemos todos nós. Parabéns Professor Ricardo.
Tanto sob o ponto de vista legal quanto pelo institucional, uma afronta intolerável.