- Denis Alvarez Vaz -
Finalmente chegou ao tribunal. Já estava cansado de tanta burocracia. Foi tanta papelada para preencher. E depois todo aquele tempo de espera. Para início de conversa, nem sabia porque estava ali. Fora retirado de sua cama, às sete da manhã de uma segunda feira. Esperou em cárcere por oito dias, e em nenhum momento lhe informaram o motivo de sua prisão.
Teve um advogado de defesa providenciado pelo Estado. Entrou no tribunal acompanhado de dois oficiais, seguido do jurista. Tinha uma jaqueta cinza surrada cobrindo sua cabeça e algemas prendendo suas mãos. Para sua surpresa o tribunal estava repleto de repórteres, dos mais diversos meios midiáticos. Portais de internet, jornais digitais, programas de televisão. Inclusive um único radialista, cada vez mais raros. Luzes o cegavam e os flashes das câmeras o desnorteava. O burburinho era ensurdecedor. Como podia aquele ser um caso tão importante, tinha acabado de chegar na cidade.
Após alguns minutos o barulho diminuiu. A corte se silenciou por completo quando um oficial entrou. Reparou que não haviam jurados. Ou mesmo um advogado de acusação. Se dirigiu a frente da grande mesa do juiz. Achei que ela pareceria menor em pessoa, mas essa mesa é realmente enorme, pensou o acusado.
- Levantem todos. - disse o oficial. Todos assistindo o julgamento o fizeram. O réu foi levantado a força por um dos policiais ao seu lado. - Vocês estão na presença de Vossas Excelência Excelência Meritíssimo: o Triunvirato.
O silêncio foi cortado por sons mecânicos. Algo como engrenagens rodando. O chão tremia sob seus pés. Câmeras começaram a explodir em luzes brancas, conforme a figura entrava no recinto. O corpo da figura roçava o topo do salão. O som de seus movimentos abafava a exaltação dos repórteres. Nunca havia visto nada como aquilo. Seu semblante parecia calmo, ponderado e enfurecido.
O Triunvirato se sentou detrás da mesa colossal. O punho direito acertou a mesa da espessura de um carvalho, ecoando pela sala, uma ordem de silêncio. O burburinho agora era interno. De certo modo. O juiz discutia com “si mesmo” enquanto os repórteres tiravam fotos do rosto do réu. Fora forçado a se sentar novamente.
- A nova sessão da Tribunal Regional de Justiça está começando. Um dos repórteres se arriscou, começando sua transmissão ao vivo. - O Triunvirato finalmente chegou, para julgar o réu primário com o maior número de delitos já registrado no país.
Maior número de delitos? Como assim? Pensou.
- Olha… - começou, puxando a manga do advogado de defesa. - Eles pegaram a pessoa errada. Eu não fiz nada.
- Claro que não. - retrucou o jurista. Não soube dizer se estava sendo irônico ou não.
- É sério. Eu cheguei na cidade semana passada... - sua voz foi abafada por uma segunda batida do colosso.
- Estamos aqui reunidos para julgar o caso de… - começou o primeiro.
- Não interessa! Ele é culpado! - interrompeu o segundo.
- Espera um pouco, Rector. Devemos permitir que ele tenha um julgamento justo. - disse o terceiro, em um tentativa, falha, de acalmar o outro.
- Não custava tentar. - Rector deu de ombros.
- … que está sendo julgado por 46 crimes. - continuou o primeiro, sem pestanejar.
O réu quis protestar. Mas o advogado de defesa o puxou de volta a cadeira. O Triunvirato passou então a listar seus aparentes delitos, desde sonegação fiscal, a uma série de multas, entre elas: “fazer barulho demais em uma quarta-feira”, “erros gramaticais em um documento oficial” e uma outra série de infrações absurdas, das quais nunca tinha ouvido falar.
- Isso de nada importa, Arbitratus. Vamos direto para o conteúdo mais… suculento. - retrucou Rector, com um sorriso maldoso. - Preciso voltar ao trabalho logo. Não entendo porque temos que vir juntos a cada um desses casos.
- Ora, além do motivo físico, você quer dizer? - indagou o segundo - Além do mais, Rector, você não fica empolgado vendo as leis sendo executadas?
- Meu caro Legatus, Execução é o que vem depois disto. - respondeu, abrindo um sorriso maldoso, que fez o réu suar frio.
- Você sabe que esse não é a função do Executivo, não é? - Legatus disse, olhando torto para sua contraparte.
- Não. Mas é um bom bônus.
- Olha aqui. - o réu cutucou seu advogado de defesa, aproveitando a discussão. - Como é possível que eu tenha cometido tantas infrações em uma semana?
- Bom, o Triunvirato é muito bom no que faz. E ele faz tudo. Cria as leis, as aplica e as julga. Você é só o mais recente da lista, por isso todo o alarde.
- E por conta disso eu me tornei a pessoa com o maior número de infrações do país. Isso não o torna meio parcial? Um deles em especial me parece meio instável.
O advogado deu de ombros. Enquanto isso, Arbitratus continuava a listar suas infrações, ignorando completamente qualquer discussão.
- Isso não é problemático? - disse o réu, pensativo.
- Como assim?
- O trabalho não é difícil para um advogado de defesa, com tantas alegações?
- Talvez, mas desde que o Triunvirato assumiu, nunca tive tantos clientes.
- Como você se julga? - Arbitratus perguntou, automaticamente, assim que terminou a lista, para o espanto de todos.
- Bom… - o réu se colocou de pé. Não havia prestado atenção em nada. - … inocente?
- Certo. Analisemos caso a caso, então. - concluiu Arbitratus. Legatus sorriu, satisfeito. Rector bufou.
- Começaremos, então, a análise, pelos crimes de maior gravidade. - Concluiu Arbitratus. Rector abriu o sorriso mais uma vez. - Analisaremos agora a prova 72-b.
Uma projeção se abriu a frente do Triunvirato, exibindo uma cena, onde se via o réu conversando com uma senhora. Levantando o braço, apontando em certa direção, e a mulher, então, seguia seu rumo. O vídeo não continha som.
- Não entendo. O que aconteceu de irregular nessa cena? - contestou o réu.
- Você está sendo acusado de crime de racismo. - respondeu Arbitratus, deixando o suspeito boquiaberto. - Claramente podemos ver que estava rechaçando a pobre senhora.
- Mas… - o réu estava atônito - … Ela estava perdida, pedindo por direções. Eu estava apenas apontando o caminho do terminal de ônibus.
- É a sua palavra contra nossas provas. - retrucou Rector. Legatus estava imóvel.
O advogado colocou a mão em seu ombro, e ele se sentou atônito. O advogado se levantou com um sorriso de satisfação no rosto. O outro sacudiu a cabeça.
- O meu cliente não pode ser culpado de um crime de racismo, Vossas Excelência, Excelência, Meritíssimo. - Pela primeira vez, parecia um advogado de verdade.
- E por que não? - resmungou Rector.
- Ele não pode ser culpado de um crime de injuria racial, pois ele é negro.
O Triunvirato se entreolhou. Olhou para o réu. Se entreolhou novamente. Começou uma discussão entre suas três facetas. O advogado parecia satisfeito. Se sentou e cruzou os braços, enquanto seu cliente o olhava sem reação. Lhe deu um tapinha no ombro e uma piscada.
- Uma curiosidade. - se voltou ao advogado, ainda se recuperando do choque. - Quem era o recordista anterior?
- A pessoa com o maior número de acusações antes de você? Foi uma senhora de setenta e cinco anos, na semana passada, com 45 infrações. Parecia uma boa pessoa. Pegou 372 anos de prisão.
- Sei...
- O réu foi declarado inocente deste um delito, por dois votos contra um. - declarou Arbitratus. Rector deu um sonoro estalo com a língua, em claro desagrado.
O réu agora possuía apenas quarenta e cinco alegações a seu nome. Mesmo número que a senhora da semana anterior. Tendo em vista essa mudança na situação, muitos dos repórteres se desanimaram e começaram a deixar o recinto. Havia tido uma ideia.
- Ei, a gente não pode fazer nada a respeito? - Rector sussurrou, da melhor maneira que pôde, na direção de sua outra parte.
- É lógico que não, isso seria ilegal. - respondeu Legatus. - O que seria de nós sem leis?
- Mas desse jeito não vamos poder executar esse aqui.
- Já te disse que não é essa a função do Executivo. - Legatus respondeu, mas o outro já não estava mais escutando.
- Ele mentiu! - exclamou Rector. - Eu o acuso de perjúrio!
- Mas o meu cliente não disse nada. - retrucou o advogado de defesa, se levantando.
- Não é assim que funciona o tribunal, Rector. - apontou Arbitratus.
- Você não pode simplesmente adicionar mais acusações. - concordou Legatus.
- Não importa! - Rector tentou se levantar, mas os outros dois não permitiram. Viu que os repórteres que haviam deixado o recinto começavam a voltar. - E digo mais! Pelo que sabemos ele pode até ser culpado de algum homicídio!
- Chega Rector. - disse o primeiro dos três, com um tom de desaprovação. Mas o estrago já estava feito. Os repórteres estavam em cima do réu.
- Vossas Excelência, Excelência, Meritíssimo. - o advogado tentou contornar a situação, mas sentiu uma mão em seu ombro. Viu o seu cliente de pé a seu lado.
- Está tudo bem. - disse o réu. - Ele tem razão. Eu menti.
O tribunal se silenciou. O advogado olhou para ele, perplexo. O Triunvirato parou, processando a informação. Os repórteres foram os primeiros a se recuperar. Começaram a tirar fotos e a relatar a situação ao vivo. Arbitratus bateu a mão sobre a mesa pedindo ordem.
- Explique-se. - perguntou o Juiz. Suas contrapartes continuaram caladas.
- É muito simples Vossas Excelência. Excelência. Meritíssimo. - disse o réu. A cabeça elevada. Pleno. - Eu menti.
- Eu sabia! - o Executor se recuperou. - Eu… Sabia?
- Mas mentiu sobre o que? - o Legislador se recuperou do choque. - Apenas mentir não é diretamente ilegal.
- Pois deveria! - retrucou Rector, ainda sem pensar direito. - Mas… Só de curiosidade… Sobre o que você mentiu?
- Sobre tudo, oras! - disse o acusado. Estavam sem reação - Eu minto o tempo todo.
- Como assim “mentiu sobre tudo”? - perguntou Arbitratus
- Você está assumindo a culpa de tudo? - indagou Rector.
- Não. Estou apenas fazendo uma afirmação. Eu minto. Assim como todos mentem. O brasileiro mente o tempo todo. - disse, sereno. - Inclusive, estou mentindo agora mesmo.
- Mentir por si só não denota crime. - disse o Legislador.
- Mas se ele está assumindo a acusação, é. - disse o Executor.
- Porém, se todos estão mentindo, então a mentira se torna verdade? - disse o Juiz. Algo de estranho estava acontecendo com Eles.
O Triunvirato começou a discutir entre si. Após alguns momentos ele se fechou. Mais alguns minutos se passaram e nada aconteceu. Depois de meio hora os presentes começaram a sentir um cheiro estranho. Um odor de queimado. Fumaça começou a se levantar dos Três.
- Nós - Chegamos - A uma conclusão. - o Triunvirato respondeu, em uníssono, cerca de três horas após terem se fechado. O acusado e seu advogado comiam um pote de macarrão instantâneo. Os repórteres estavam praticamente dormindo.
- O veredito é o seguinte:
- Culpado.
- Inocente.
- …
- Por que está em silêncio?
- Ele é culpado!
- A ação não constitui crime.
- Mas…
- Mas…
Se silenciou outra vez. Um dia se passara. E uma semana. Os casos tratados pelo Triunvirato, assim como os trabalhos legislativos e executivos, começaram a se acumular. Semanas tornaram-se meses. Meses tornaram-se anos. Tiveram que fazer do tribunal sua morada, pois sem o decreto do Juiz, não podiam adiar o julgamento. Os veículos de imprensa rotacionavam os repórteres nos primeiros anos, sempre tendo alguém pronto para outra súbita reativação. Porém, nas décadas seguintes passou a ser uma espécie de brincadeira, um rito de passagem para os estagiários.
O réu acordava todas as manhãs, olhava para suas mãos enrugadas e pensava se todos aqueles processos, se toda aquela burocracia, um dia lhe dariam sua liberdade.
Denis Alvarez Vaz é professor de inglês, tradutor e revisor. Bacharel em Língua Inglesa pela FFLCH-USP.
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