Novas formas de resistência democrática
- Patricia Bianchi -
O inferno descrito por Dante Alighieri em a Divina Comédia escrita no século XIV me veio à memória no início deste trabalho, não propriamente pelo inferno lá descrito, mas pela beleza encontrada na narrativa, pela forma como é construído o poema de contornos épicos, cujas alegorias e simbolismos tornaram o enredo e o estilo atemporal.
No inferno de Dante, há um personagem chamado Caronte, o barqueiro, que faz a travessia das almas pelo rio Aqueronte. Na história, Dante, por estar vivo, foi advertido por Caronte de estar muito pesado para fazer a travessia. Contudo, Virgílio, o grande poeta romano que surge em cena para guiar Dante do inferno ao paraíso, diz ao barqueiro que a travessia é determinada por uma ordem celeste. Em razão deste argumento, Caronte então conduz Virgílio e Dante na travessia do rio.
Essa passagem em especial remeteu-me ao atual cenário sócio-político brasileiro que vem sofrendo alterações significativas em diversas áreas, mas aqui tratar-se-á especialmente, ainda que não exclusivamente, da área ambiental. Como essa área está sendo alvo de reformas consideradas desfavoráveis ao ambiente e à qualidade de vida das pessoas e demais seres, senti-me confortável em fazer uma analogia ao inferno retratado pelo poeta.
O atual cenário sócio-político brasileiro pode ser ilustrado com vários exemplos, por meio de publicações de Medidas Provisórias e Decretos que modificaram significativamente a estrutura e atribuições dos ministérios, atingindo profundamente, e de forma negativa, as políticas socioambientais brasileiras, construídas e sedimentadas há mais de 30 anos. O ponto-chave dessa desestruturação está na perda do poder político pelo Ministério do Meio Ambiente – MMA e, sobretudo a subordinação clara das questões ambientais aos interesses econômicos e a outras áreas da Administração.
A travessia de Virgílio e Dante para o inferno nos remete ao atual cenário político ambiental
São alguns exemplos de enfraquecimento das políticas ambientais ou desestruturação institucional: o desaparecimento da competência do MMA no combate ao desmatamento e programas para populações indígenas e tradicionais; a supressão do tema “mudanças climáticas”, cujo tratamento migrou para as pastas da Agricultura, Economia e Comunicação, Ciência e Tecnologia. E o que dizer da transferência do Cadastro Ambiental Rural - CAR do MMA para o Ministério da Agricultura?
O CAR foi criado para registrar as áreas que podem ou não ser desmatadas, e que precisam ser recuperadas em cada propriedade e posse rural, viabilizando a fiscalização e punição de irregularidades. Hoje, são ironicamente os ruralistas que controlam as duas pastas, bancada que historicamente defendeu o afrouxamento da fiscalização, e se opôs à publicidade dos dados do cadastro, considerada fundamental para conter a devastação florestal. Outro ponto importante: quem irá conduzir a política nacional e as negociações internacionais sobre mudanças climáticas, antiga atribuição do MMA? O Itamaraty? Sob a condução do atual chanceler Ernesto Araújo, figura que coloca em dúvida o aquecimento global?
Mas o que talvez melhor revele as cores do novo governo seja a extinção da Secretaria de Articulação Institucional e Cidadania Ambiental do MMA, o que indicaria, no mínino, uma dificuldade do mesmo em lidar com a sociedade civil, rechaçando esta via de diálogo, numa manobra que revela o enfraquecimento da democracia no período. Nesses termos, nossa democracia segue “escrita” na Constituição da República, mas as portas estão sendo fechadas para que ela não seja exercida. Combinamos assim, então.
Nesse contexto, a democracia transmuda-se em outras formas. Segue novos caminhos, conduzidos por uma estratégia que se articula normalmente mediante a manipulação eleitoral cujo principal veículo são as redes sociais, e através da exploração de setores que se consideram afetados negativamente pela globalização. Aí vem o ponto crucial, que é o fato de que a política se mostra necessária e se presta a liberar (ainda mais) o andamento de uma economia mais agressiva, com o fim de se remover os obstáculos para a sua reprodução. Exemplo disso é a liberação de terras indígenas para a expansão da mineração e do agronegócio.
Esse projeto norteado pelo neoliberalismo implica a remoção de conquistas sociais que foram adquiridas nas últimas décadas. Há a necessidade de uma movimentação cada vez mais livre de capitais, num cenário onde os custos sócio-ambientais normalmente são ignorados. E nesse cenário, certamente você já ouviu dizer que “com a riqueza que o neoliberalismo/mercado trará, todos vão se beneficiar no longo prazo.” Lamento dizer que isso ainda não se viu em parte alguma, e é improvável que se veja. Para que esse sistema “progrida”, o capital precisa intensificar a exploração, e isso implica na tão propagada, “normal” e “necessária” remoção de direitos. Ah, mas não estamos longe disso? Hum, estamos apenas no início do mandato e você já ouviu falar na “necessidade” de flexibilização das leis trabalhistas; na supressão da Justiça do Trabalho; na diminuição de terras protegidas, indígenas ou demais áreas de proteção ambiental; tudo isso em favor do “mercado”, da exploração mineral e agropecuária.
Mas o que explicaria o apoio de parte da população no que concerne a essas políticas? Normalmente se atribui a uma adesão à ideologia do populismo, associada com as perdas que setores da classe média, e mesmo de setores dos trabalhadores, que vêm sentindo com as mudanças estruturais que estão ocorrendo na economia mundial nas últimas décadas, e que terminaram por prejudicar algumas profissões/setores. O fato é que o desenvolvimento da economia de mercado, no mundo inteiro, vem trazendo, nos últimos tempos, mudanças não inclusivas, processo semelhante ao que ocorreu nas Revoluções Industriais dos séculos XVIII e XIX. Assim, se antigamente quem viesse do interior conseguia emprego nas fábricas, hoje o mundo industrial é restrito, assumiu um viés tecnológico que dispensa grande parte da mão-de-obra que antes era absorvida. E é nesse cenário que o populismo de direita avança, com base nesse ressentimento, alicerçado em discursos e políticas pautadas no “medo” e na necessidade criada de um “salvador”.
Nesse processo, perdemos todos. Ganham apenas alguns pequenos grupos minoritários. E como escreveu Eduardo Gudynas, recordando a teoria crítica de Frankfurt, “Há circunstâncias nas quais parece que a esperança some e ficamos presos em uma estagnação onde ‘tudo o que vive está sob condenação”. Essa advertência foi feita pelos filósofos Max Horkheimer e Theodor Adorno, nas últimas linhas da obra “Dialética do Iluminismo”, no contexto da Segunda Guerra mundial e da revelação do holocausto.
Numa crítica ao Iluminismo, os dois filósofos de Frankfurt alertaram que a Humanidade que abraçou a ciência e a razão (instrumental), posicionou o homem, e não Deus, no centro do mundo (antropocentrismo), perdendo, com isso, sua identificação com a Natureza, passando a transformá-la e utilizá-la para fins lucrativos, caminhando para a barbárie e destruição. Aqui, a crítica não era à ciência e à razão propriamente ditas, mas à sua exacerbação. Tratava-se, de fato, de uma crítica ao racionalismo kantiano que assumia valores Iluministas que separava o homem da Natureza, o sujeito do objeto.
Semelhante àquela época, hoje somos testemunhas de uma crise social e ambiental em todas as escalas: há pobreza, alimentos impregnados de química, alterações genéticas, águas contaminadas, ar tóxico. Somos sujeitos a um mar de impactos deletérios, uns pequenos outros maiores, mas quase todos persistentes e repetidos. Nesse campo somos conscientes: há estudos científicos, experimentações, tudo já foi exposto, descrito, publicado, na nossa e em várias outras línguas. Mas tudo isso ainda se mostra insuficiente para promover uma mudança significativa no curso da História. E é difícil sustentar a esperança sob estas circunstâncias. Aqui, na análise de Horkheimer e Adorno, o congelamento da esperança é enquadrado na estupidez. Para os autores há tanta estupidez que levará à condenação de tudo o que está vivo.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988, estabelece em seu art. 225, que: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” Aqui, ambiente ecologicamente equilibrado é considerado um direito fundamental, e assume uma posição de destaque no ordenamento jurídico brasileiro em face da sua extrema relevância para a vida dos seres.
Em termos ambientais, alguns juristas falam no princípio da proibição de retrocesso ambiental como uma defesa do meio ambiente ecologicamente equilibrado no país. Isso porque o meio ambiente sadio é condição essencial para que possamos viver de forma saudável. Mas as ameaças de regressão desse direito são muitas. Em cenários de crise econômica quase sempre aparecem discursos que reclamam menos obrigações jurídicas com relação ao meio ambiente, costuma-se propagar que essas obrigações seriam um freio ao desenvolvimento e à luta contra a pobreza. Além disso, as normas ambientais apresentam-se como um conjunto complexo, dificilmente acessível aos não especialistas, o que favorece o discurso em favor de uma “simplificação”, que no fundo, na maioria das vezes, reflete-se num prejuízo à qualidade de vida das pessoas e demais seres.
Voltando à questão da democracia e da luta pela manutenção de direitos historicamente conquistados, atenta-se para a importância do trabalho da classe científica e acadêmica, que desenvolve exaustivos estudos e pesquisas (teóricas e empíricas), e que costumam embasar as ações dos melhores governos. Assim, quando, em dado momento, numa sociedade, há indícios e fatos que evidenciam a diminuição da importância da classe científica e acadêmica para o real embasamento de ações no âmbito da gestão, e quando os usuais procedimentos democráticos começam a ser cerceados, seja de forma clara ou velada, é o momento daquelas classes (científica e acadêmica) se despirem dos seus rigores e formalidades, e lançarem mão de seus conhecimentos para o esclarecimento do grande público. Isso representaria um antídoto contra governos populistas, independentemente de partidos, que utilizam frases de efeito e contos distorcidos para deliberadamente manipular a opinião pública que confia em seu discurso, em seus serviços.
Em face das ameaças de regressão no plano dos direitos conquistados, os juristas ambientais devem reagir sistematicamente, com fundamento em argumentos jurídicos inquestionáveis, expondo-os de forma clara e concisa, a fim de que a opinião pública seja esclarecida e alertada sobre os perigos e engodos a que é submetida. Uma classe que trabalha redigindo papers, artigos, realizando pesquisas, muitas vezes resultado de décadas de experimentos e averiguações, deve agora assumir nova estratégia.
Quando os procedimentos democráticos são cerceados, é o momento das classes científica e acadêmica se despirem de formalidades e esclarecerem o público
Em face da complexidade e multidisciplinaridade da matéria ambiental, a figura do barqueiro de Dante Alighieri, que possibilita a travessia do rio, deve ser encampada pelos juristas nesse atual cenário de “inferno”. Trata-se de condição primordial de sobrevivência e de reação a um retrocesso anunciado que se precisa enfrentar, esclarecendo o público em geral (não especializado na área ambiental), com o propósito de que o processo democrático seja cada vez mais consciente e efetivo.
É natural que pessoas de outras áreas não sejam especialistas ou profundas conhecedoras de políticas ambientais: especialistas em biodiversidade, em matéria climática, e nem têm a obrigação de ser. A maioria, e isso é absolutamente normal, transfere para os políticos o enfrentamento de tais temas. Espera-se, deste modo, que os eleitos, políticos, legisladores, magistrados etc., se articulem com o que há de melhor na academia, nas ciências, naqueles que estudam os temas específicos e, assim, transformem esse conhecimento em políticas públicas voltadas ao bem comum, da sociedade em geral. Mas isso seria o ideal. Na atual conjuntura, os fatos contrariam as piores expectativas.
Por isso, a sociedade civil, organizada ou não, precisa se mobilizar, se reinventar e agir em outras frentes. Devemos ficar atentos às ilegalidades e nos indignarmos além das conversas cotidianas, além das postagens nas redes sociais e whatsapps. Ilegalidades e engodos à população precisam ser denunciados. O papel da Defensoria Pública e Ministério Público é fundamental nesse processo, já que são constitucionalmente legitimados a fazer valer direitos, realizar os direitos afetos ao bem comum. Num cenário onde prevalece o populismo nacionalista, que historicamente sempre levou à intensificação de conflitos à guerra, há que se reavaliar as armas para o seu enfrentamento, já que na atualidade uma guerra mundial tem potencial para ser a última.
Por fim, chama-se atenção para a irreversibilidade de alguns fenômenos. E quando se trata de Natureza, muitos danos nela perpetrados não podem ser revertidos. Uma morte de um rio; a destruição de uma floresta com árvores nativas; um ente querido que se foi em razão da poluição, envenenamento das terras e águas pelos químicos etc. Ou seja: não existe reparação, compensação ou remediação possível para a morte, seja a da natureza seja a dos humanos, e esses fatos são interdependentes, não há como separá-los.
Voltando à Divina Comédia, esta curiosamente foi escrita não em latim - o que era usual na época para se conferir aos textos um caráter mais nobre e formal - mas em dialeto local, o florentino, uma língua reputada vulgar, mas que posteriormente foi considerada uma notável forma de expressão no âmbito comunicativo, estabelecendo-se, posteriormente, como a matriz do italiano atual. Fazendo um paralelo com a atualidade, os problemas contemporâneos são complexos. Exigem o conhecimento do alcance dessa complexidade, mas, ainda mais, exigem simplicidade e clareza para elevar a consciência social. Este é o papel dos juristas, cientistas e acadêmicos. O processo demanda intervenções sofisticadas, e não rústicas, como muros, torturas, invasões e fechamento de espaços para a sociedade civil. Devemos ser o Caronte, o barqueiro que faz a travessia. É tempo de reagir.
Patricia Nunes Lima Bianchi, pós-doutora pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), é professora e pesquisadora no programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Salesiano de São Paulo - Unisal. Conselheira no Conselho de Meio Ambiente do Estado de São Paulo - CONSEMA.
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