-MARIA LUIZA GRABNER-
Um voo longo São Paulo-Lisboa me levaria a um encontro para lá de inusitado. Eu pensava, e por isso não dormia, nas aulas a serem dadas no curso de Cooperação Jurídica entre Magistrados do Brasil e São Tomé e Príncipe, África insular, meu destino. A luz fraca do avião, a travessia escura sobre o Atlântico, não impediam que eu devorasse o livro da ambientalista Mary Robinson sobre Justiça Climática, tema importante a ser desenvolvido em nosso curso em São Tomé. Mesmo procurando apreender toda a complexidade da expressão “justiça climática”, a leitura corria solta, apesar do cansaço físico natural. A adrenalina que inundava meu corpo, antevendo a próxima etapa dessa longa viagem até o continente africano, me mantinha alerta, lúcida.
Nosso voo seguia sem sobressaltos. Ao meu redor o silêncio e a escuridão predominavam. A maioria dos passageiros dormia, com exceção de uma passageira sentada na mesma fileira: três poltronas vagas nos separavam. Em algum momento me dei conta de que ela não mais dormia. Nossos olhos se encontraram e ela, sorrindo, perguntou curiosa: o que está lendo? E eu lhe disse o nome do livro e da autora e o quanto estava apreciando aquela leitura. Justiça climática ou (In)justiça climática, falei com ironia para lhe dar uma ideia do tema tratado. Durante esse início de conversa tentei observar o seu sotaque. Não soube dizer num primeiro momento se era português de Portugal ou do Brasil. E não quis ser indelicada fazendo muitas perguntas. Nossa prosa correu com desenvoltura pois, além do gosto pela leitura, tínhamos vários outros em comum: viagens, história, poesia, arte, cultura, música, e a conexão Brasil-Portugal-África! Ela me disse ser apaixonada por Lisboa. Passa um tempo no Brasil e outro em Portugal. Na África me contou conhecer Angola, Guiné-Bissau. E São Tomé e Príncipe, perguntei eu? Não conhecia. Imperdível acrescentei, com a segurança de quem já estivera por duas vezes em território santomense e a caminho de terceira Missão de Cooperação naquele país. E rematei: “eles têm o melhor chocolate do mundo!” o que na minha opinião torna aquele país imbatível na minha escala de “melhores” para se visitar.
Mas ainda não sabia quem era minha interlocutora! Resolvemos nos apresentar. Ela, uma artista, com o dom da palavra e dos gestos, mas também compositora e diretora de teatro e musicais. Apresentara-se tanto no Brasil, quanto em Portugal e também em outros países. Uma cidadã do mundo, entusiasmada e curiosa para aprender até sobre Justiça Climática! Disse-me que procuraria o livro na Fenac de Lisboa tão logo chegássemos. Também me contou que foi a responsável pela prosódia das falas indígena e africana da série “Independências”, produzida por uma TV brasileira. Que maravilha! Ela gosta do Brasil e se interessa pela história e destino de seus povos originários e das comunidades quilombolas e outras comunidades tradicionais.
Naquele espaço-tempo de um voo intercontinental tivemos um encontro de almas. Foi tão bonito e é tão raro que resolvi contar essa história. Desfilaram também pela nossa galeria improvisada, Fernando Pessoa, Saramago, Carlos Drumond de Andrade, Manoel Bandeira, Walter Hugo Mãe, Mia Couto, Paulina Chiziane, e outros.
Mas um voo tão curto quanto o de São Paulo-Lisboa não permitiria o exaurimento de tantas pautas interessantes. E ainda havia a “justiça climática”, esquecida no meio do turbilhão de evocações e afinidades. Quando descobri o interesse da minha interlocutora pelas comunidades tradicionais, me aventurei a contar-lhe como os conhecimentos tradicionais podem apontar caminhos para o enfrentamento da emergência climática. Isso é sabido por quem interage com essas comunidades e seus modos de viver no Brasil. Mas o livro da Mary Robinson traz exemplos do mundo inteiro onde tais conhecimentos mostram-se essenciais para a adaptação a esse novo cenário ambiental mundial.
O retorno, pelos esquimós, ao modo tradicional de transporte sobre o gelo um trenó puxado por cães em substituição aos modernos trenós motorizados ou elétricos, é um exemplo desse resgate histórico em algumas regiões. Com a camada de gelo tornando-se mais fina em face do aquecimento global, os acidentes por mortes em decorrência do gelo que se quebra durante a passagem do trenó, passa a ser evitado pelos cães que conhecem e sabem por instinto o caminho mais seguro a percorrer.Surpreendente!
E o recorte de gênero, trazido pela autora, ao constatar a importância das mulheres ao redor do mundo e, em especial, nos países mais pobres, na luta pela preservação ambiental e pela adaptação às mudanças climáticas? Enfrentamento esse que se dá de foma organizada, por meio da formação de associações e comissões, num movimento potente de liderança e emancipação. No Brasil, pontuo, temos associações de mulheres indígenas bem como a liderança de mulheres quilombolas e de outras comunidades tradicionais em todo o país, que fazem a diferença na luta pela higidez de seus territórios ancestrais.
Enfim estávamos, após o relato desses casos, eu, empolgada pela confirmação da minha percepção resultante da experiência profissional com povos originários e comunidades tradicionais, e minha interlocutora encantada com o protagonismo das mulheres principalmente nos locais mais pobres e, não por acaso, os mais atingidos pelos eventos climáticos extremos em decorrência do aquecimento global. Ou seja, as condições extremas de clima atingem as pessoas de maneira desigual, especialmente os grupos mais vulneráveis, como as populações mais pobres, os grupos racializados, as mulheres e crianças, transcendendo a questão puramente ambiental para se enquadrar numa perspectiva política e ética. A Justiça climática busca assim superar a desigualdade estrutural violadora dos direitos humanos dessas coletividades por meio de uma divisão mais justa dos investimentos e das responsabilidades no enfrentamento da crise climática mundial.
Dito isso, a artista apressou-se a anotar o nome da autora e o título do livro. Aproveitamos para trocar nossos endereços de e-mails e números de celular e whatsapp. O comandante do avião anunciou a aproximação da cidade de Lisboa e os procedimentos para a aterrissagem. Fechei o livro e pensei: será que ela vai manter contato? Uma experiência tão significativa em plenos ares não poderia terminar assim. E não terminou. Passadas algumas semanas, enviou-me por whatsapp um vídeo lindo onde interpreta uma morna de Cabo Verde. Agora fiquei sabendo que ela voltou ao Brasil. Na verdade é brasileira e, proximamente vamos nos encontrar num Sarau em São Paulo onde a artista levará/revelará, como ela diz, Guimarães Rosa, Carlos Drumond de Andrade e Fernando Pessoa. E eu pretendo lhe dar de lembrança uma máscara de carnaval feita por um artesão nas ruas de Paraty, cidade que ela não conhece mas já estamos planejando um encontro na próxima FLIP. Como ela diria: Viva Vida! Vida Viva! Beijares e abraçares.
Maria Luiza Grabner - Procuradora Regional da República da 3a Região - MPF
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