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DEVER SER E CORTE CONSTITUCIONAL

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-PAULO TORELLY-


A Constituição do Brasil tem força normativa e regula as relações econômicas, políticas e sociais? O Estado de Direito é ficção ou realidade? O Brasil precisa de uma Corte Constitucional? Perguntas que faço neste instigante espaço de reflexão da Revista PUB há alguns dias de o povo brasileiro escolher um novo governo para o Brasil e a ampla maioria da sociedade civil anunciar um necessário manifesto em defesa do Estado de Direito.


Dentre tantas inquietações ainda agrego outras perguntas nestes tempos em que no plano do ser tudo parece sempre poder piorar. A era do espetáculo superou definitivamente a realidade dos fatos? A humanidade – e nela o povo brasileiro – é capaz de aprender com o passado? Indignação seletiva com a corrupção é sentimento republicano? Governo e bem comum não devem andar juntos?

Para entrar no tema posto no título, e que remete para muitas reflexões diante da distinção kantiana entre ser (fato) e dever ser (norma), é necessário dar alguns passos atrás. A ideia de direito pressupõe decisões com base em critérios jurídicos que antecedem fatos e condutas sob julgamento, marca da metodologia jurídica lastreada na centralidade da subsunção na aplicação da lei e do direito. Mas a dicotomia entre princípios e valores universais (dever ser) e realidades e interesses particulares (ser) sempre foi alvo da teoria crítica, pois a realidade é sabiamente mais complexa do que qualquer fórmula ou modelo. O problema toma vulto quando o sentimento colonial e o arrivismo de quem quer se dar bem ou no mínimo “ficar bem na foto” encontram terreno fértil para “operadores do direito” – descrição adequada pra quem faz o que quer com o direito – que não mais se importam em “jogar a criança fora junto com a água suja.”

A literatura jurídica tudo permite? Afinal, será que jurista, no Brasil, é apenas quem vive de juros, vendendo pareceres pra “livrar a cara” de racistas e grileiros de terras indígenas? Lembro da prosa de Fernando Pessoa e de um clássico da publicística, Georg Jellinek. Foi em sua prosa que o poeta disse: “O homem supõe que é um animal racional. Pode ser que o seja e pode ser que não o seja; a psicologia científica contesta a importância e a preponderância da razão na vida individual.” Diante de instintos, hábitos, sentimentos e emoções que nos guiam, Fernando Pessoa observa que para a psicologia “a razão não serve senão de interpretar para a vontade esses impulsos sub-racionais,” mas “a própria circunstância de o homem se considerar um ente essencialmente racional faz com que, ainda que de um modo indireto, a razão assuma, na vida dele, uma importância verdadeira.” Pelo que conclui: “um dos empregos abstratos da razão é o de formar preceitos, máximas, ou normas intelectuais, para a condução, geral ou particular, da vida.” (PESSOA, 1995, p. 648). Assim, tendo presente que o texto legal e a norma jurídica não podem abstrair a realidade, o que Jellinek já apontou em 1900 ao referir, na primeira edição de sua Teoria Geral do Estado (Allgemeine Staatslehre), que “el Estado, sin duda alguna, está llamado a mantener una relación con los interesses solidarios humanos” (JELLINEK, 2005, Cap. 8, n. 6, p. 345), a tarefa de afastar o arbítrio e a irracionalidade em defesa da solidariedade social (Constituição, art. 3º, inciso I) não pode ser delegada para declarados desafetos da obra de Ulysses Guimarães e seus pares.


No ponto extremo dos limites entre os planos do ser e do dever ser encontramos a tensão entre as razões de Estado e a autodeterminação moral de cada pessoa em face do dever político de obedecer às leis, ainda que injustas. Tema presente na tragédia de Sócrates (470-399 a.C.), quando o filósofo grego, mesmo podendo fugir diante de falsas acusações, aceitou voluntariamente a pena de morte, com o que na prática denunciou a injustiça dos juízes que o condenaram sem fundamento. A questão, portanto, é se em um Estado Democrático de Direito, com supostas garantias constitucionais, se faz necessária a desobediência civil e a resistência contra o arbítrio e a violência oficiais e até mesmo se “razões de Estado” podem ter algum protagonismo ou relevância. A resposta deveria ser negativa, mas a desobediência civil surgiu justamente para assegurar a efetividade do Estado de Direito.

No lamentável – e hoje comprovadamente ilegal e arbitrário – episódio da prisão do ex-presidente Lula o Brasil testemunhou em tempo real um presidente de Tribunal Regional Federal invocar a função administrativa que ocupava para dar ordens para a Polícia Federal descumprir uma decisão judicial que lhe desagradava. Mas muito mais ocorreu nos insondáveis escaninhos da hermenêutica à brasileira antes de o STF – alinhando-se tardiamente com a ONU – admitir o óbvio e anular um processo conduzido por um manifesto adversário político, que apenas formalmente se apresentava como juiz. A derradeira questão é: como assegurar a força normativa da Constituição quando o Poder Judiciário, primeira e maior instituição de garantia em um Estado de Direito, ordinariamente desconhece a distinção entre os planos do ser e do dever ser?

A escola da exegese, ainda sob o calor da Revolução Francesa, pretendeu reduzir o direito aos limites da gramática e logo revelou os seus próprios limites, mas a interpretação gramatical ainda é o necessário ponto de partida para a interpretação dos textos legais no esforço de identificar as normas que integram o ordenamento jurídico. Uma realidade que aponta para a urgência de um debate consistente e vigoroso na sociedade sobre a necessidade de uma Corte Constitucional no Brasil. Um Tribunal da Lei, que apenas em abstrato julgue a validade das leis editadas pelo legislador democrático (Congresso Nacional, Assembleias Legislativas e Câmaras de Vereadores). Este é o caminho que a Europa continental adotou após derrotar o fascismo no pós-guerra, com o que preservou a autoridade e a legitimidade dos parlamentos para editar direito novo mediante a primeira e maior fonte do direito nas democracias representativas, ou seja, a edição de atos legislativos primários: A LEI!

Exatamente neste sentido andou o Poder Constituinte alemão, pois cumpriu a tarefa de institucionalmente suplantar o nazismo com um texto que desde 1949 rege democraticamente a vida política, social e cultural na Alemanha com uma Corte Constitucional que não integra o Poder Judiciário e foi didático na redação da Lei Fundamental :


Art. 20 (Princípios constitucionais – Direito de resistência)

(1) A República Federal da Alemanha é um Estado Federal, democrático e social.

(2) Todo o poder estatal dimana do povo. É exercido pelo povo por meio de eleições e votações e através de órgãos especiais dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

(3) O Poder Legislativo está vinculado à ordem constitucional; os Poderes Executivo e Judiciário obedecem à lei e ao direito.

(4) Não havendo outra alternativa, todos os alemães têm o direito de resistência contra quem tentar subverter essa ordem.

(Constituição da República Federal da Alemanha) –destacamos

A instituição de uma Corte Constitucional no Brasil pode ser concretizada por Emenda Constitucional com um amplo debate com a sociedade e não impossibilita a continuidade da evolução – e a própria inovação – do direito pela jurisprudência, mas constitui medida urgente diante da inefetividade e mesmo do aberto descumprimento do texto constitucional e de suas normas. Trata-se da atualidade da lição de Mauro Cappelletti em seu Juízes legisladores?, pois mesmo que “legislador e juiz sejam, conscientemente, criadores do direito, fazendo-se assim reconhecer abertamente pelos cidadãos, o modo de formação legislativa do direito é (e deve ser) reconhecidamente como fundamentalmente diverso daquele da formação jurisdicional” (CAPPELLETTI, 1993, p. 130). O juiz deve conhecer e aplicar o ordenamento jurídico na solução de litígios em um ato de cognição do direito, pois em uma democracia apenas ao legislador é dada a manifesta e explícita edição de atos de vontade na reforma e na instituição de direito novo, enquanto que cabe ao administrador público democraticamente eleito governar e definir políticas públicas.


Passados mais de 30 anos da sua promulgação, é urgente tirar do papel e colocar na plenitude da vida o texto constitucional democrático e social de 1988!


 

PAULO TORELLY, Advogado, Procurador do Estado do RS, associado do IBAP e Doutor pela Faculdade de Direito da USP.


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