-Miguel Gustavo Carvalho Brasil Cunha-
A história começa assim: Uma senhora, chefe de família, ao se deparar com o pagamento do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) do ano, cobrado já em janeiro no valor de mil reais, resolve não pagar. Não porque não quer, mas, hipoteticamente, por não ter dinheiro suficiente sobrando, talvez pelo fato de ter perdido o emprego formal, por ter tido que ajudar um parente doente, enfrentado problemas financeiros de toda as ordens, enfim.... como o imposto da Prefeitura não é retido, como o Imposto de Renda, o ICMS e outros, como não vai ficar impedida de transitar com o seu veículo, como ocorre com o IPVA, resolve não pagar o carnê que chegou em sua casa.
Vai esperar, se for o caso, a carta de justiça ou torcer para passar os cincos anos da prescrição.
No ano seguinte, aquela dívida de mil reais, que na ocasião poderia ter sido paga com descontos de cota única e por ser adimplente até então, o que seria, em muitos casos reduzida em uns 30%, ou seja, seria 700 reais, agora, um ano depois, é cobrada via inscrição do débito em dívida ativa, juntamente com multas, juros, correção, sendo ainda objeto de protesto junto ao cartório, ou seja, mais custas do cartório e honorários. Continuou a não pagar, agora o crédito foi ajuizado, o que irá gerar mais ônus, com as custas judiciais. Certamente, aqueles 700 reais aproximados, atualmente se transformaria em cerca de dois mil reais. Resultado, não vai pagar, novamente.
Vamos imaginar ainda, que essa contribuinte seja beneficiada do programa “Minha Casa, Minha Vida”, nos termos da Lei Federal nº 14.620, de 13 de julho de 2023, onde contratos e os registros efetivados no âmbito do citado programa serão formalizados, prioritariamente, no nome da mulher chefe de família, independentemente da concordância do cônjuge, mas que prevê ainda, que deve ser honrado o pagamento do IPTU (art. 11, IX, “c”).
Temos assim uma munícipe, uma cidadã, com casa própria, mas agora negativada, processada e devedora de aproximadamente dois mil reais. Seu nome foi também para o SERASA.
Ficará difícil retornar ao mercado formal de trabalho, e não terá mais como gerar crédito bancário. Aquela residência, que gera o microcrédito local, na rua, no seu bairro, hoje é um domicílio devedor, passível inclusive de perder a moradia, pois não assegurada pela impenhorabilidade, pois a dívida trata de cobrança de imposto decorrente do próprio imóvel familiar.
Irá pagar pelo IPTU dos próximos anos? Certamente não, gerando assim mais dívidas.
Situação como a narrada, mesmo que imaginária, para quem trabalha com a recuperação de crédito fiscal municipal é certamente mera coincidência com diversos, milhares de casos que ocorrem todos os dias, anos, em todas as cidades do Brasil.
A cobrança fiscal pela Lei 6.830/80 é bem simples, não pagou, é inscrito em dívida ativa e a ação é proposta. Depois o juiz despacha e chega na casa a pessoa a citação postal para pagar em 30 dias. Não pagando, chega com algum tempo o oficial de justiça para penhorar a casa, ou o que lhe guarnece. Tudo isso rápido? Não! Isto porque não é somente este caso, são muitos, milhares, milhões....
No entanto, como diz a música Um Novo Tempo de Marcos Valle, “Hoje é um novo dia de um novo tempo que começou”, o cenário mudou, mesmo sem reforma legislativa, temos novidades de uma nova forma de tratamento da dívida fiscal.
O Código de Processo Civil, em seu artigo 3º, parágrafo 2º, impõe ao Estado a obrigação de buscar soluções consensuais para os conflitos, sempre que viável, em observância ao princípio da consensualidade. Essa abordagem, quando aplicada à cobrança de créditos tributários, como o IPTU, pode otimizar a recuperação de recursos públicos e, simultaneamente, promover uma cobrança tributária mais justa.
Dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indicam que das muitas ações pendentes, grande parte delas estão relacionadas à cobrança do IPTU.
Além disso, chamou a atenção o fato de que o IPTU, que é um imposto teoricamente simples, incidente sobre a propriedade territorial urbana, é responsável por quase 25% dos processos fiscais do acervo analisado. Faz-se necessária investigação minuciosa acerca das razões para a grande litigância em relação a este tributo. (CNJ. Sistematização do diagnóstico do contencioso judicial tributário: aportes iniciais. p. 3)
Destaca-se, ainda, o fato de que o IPTU é o tributo com maior volume no contencioso. Tal cenário é um indicativo de que há muita irresignação dos contribuintes em relação aos lançamentos realizados nesse imposto, o que desemboca em um grande número de ações antiexacionais em curso, tais como mandado de segurança e ações declaratórias ou anulatórias, fazendo com que, em muitos casos, execuções fiscais nem sequer existam.
Outro detalhe curioso é que o IPTU é um imposto real, de modo que, ao menos em tese, sua arrecadação se dá de modo mais simples do que diversos outros, que incidem sobre o consumo e produção.
A satisfação do crédito tributário pela via da execução fiscal também é mais simples, em princípio, uma vez que o próprio bem que ensejou a incidência do imposto pode ser penhorado para a satisfação do crédito tributário, o que também pode impactar no fato de o referido tributo possuir o maior percentual entre os processos judiciais. (CNJ, Sistematização do diagnóstico do contencioso tributário nacional: contencioso judicial tributário, p. 49)
A Resolução nº 547, de 22.02.2024 do CNJ, instituiu “medidas de tratamento racional e eficiente na tramitação das execuções fiscais pendentes no Poder Judiciário, a partir do julgamento do tema 1184 da repercussão geral pelo STF”, onde decidiu que “É legítima a extinção de execução fiscal de baixo valor, pela ausência de interesse de agir, tendo em vista o princípio da eficiência administrativa”. (RE 1355208, Relatora Min, Cármen Lúcia).
Conforme as novas diretrizes, o ajuizamento de ações de execução fiscal somente será admitido após a comprovação de tentativa prévia de conciliação ou adoção de solução administrativa, segundo texto da referida resolução:
Art. 2º O ajuizamento de execução fiscal dependerá de prévia tentativa de conciliação ou adoção de solução administrativa.
§ 1º A tentativa de conciliação pode ser satisfeita, exemplificativamente, pela existência de lei geral de parcelamento ou oferecimento de algum tipo de vantagem na via administrativa, como redução ou extinção de juros ou multas, ou oportunidade concreta de transação na qual o executado, em tese, se enquadre.
§ 2º A notificação do executado para pagamento antes do ajuizamento da execução fiscal configura adoção de solução administrativa.
§ 3º Presume-se cumprido o disposto nos §§ 1º e 2º quando a providência estiver prevista em ato normativo do ente exequente.
Art. 3º O ajuizamento da execução fiscal dependerá, ainda, de prévio protesto do título, salvo por motivo de eficiência administrativa, comprovando-se a inadequação da medida.
Parágrafo único. Pode ser dispensada a exigência do protesto nas seguintes hipóteses, sem prejuízo de outras, conforme análise do juiz no caso concreto:
I – comunicação da inscrição em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros relativos a consumidores e aos serviços de proteção ao crédito e congêneres (Lei nº 10.522/2002, art. 20-B, § 3º, I);
II – existência da averbação, inclusive por meio eletrônico, da certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora (Lei nº 10.522/2002, art. 20-B, § 3º, II); ou
III – indicação, no ato de ajuizamento da execução fiscal, de bens ou direitos penhoráveis de titularidade do executado.
É inegável que a cobrança fiscal necessita de aperfeiçoamento, não sendo mais tolerável que a dívida do imposto incidente sobre um bem imóvel, muitas vezes a residência do cidadão, somente seja tratada por meio de uma demanda judicial que visa, caso não pago o imposto, a constrição do patrimônio com sua possível perda para saldar o débito mediante um procedimento forçado.
Logo, a “regra” atual é somente propor a demanda judicial caso frustrada a conciliação, que ainda dependerá da “existência de lei geral de parcelamento ou oferecimento de algum tipo de vantagem na via administrativa, como redução ou extinção de juros ou multas” (Art. 2º, § 1º).
Contudo frustrada a conciliação o “ajuizamento da execução fiscal dependerá, ainda, de prévio protesto do título”, além da “comunicação da inscrição em dívida ativa aos órgãos que operam bancos de dados e cadastros relativos a consumidores e aos serviços de proteção ao crédito e congêneres” e a “averbação, inclusive por meio eletrônico, da certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora” (Art. 3º).
Na publicação “RESOLUÇÃO CNJ 547/2004 EM LINGUAGEM SIMPLES” foi editado quadro explicativo bem didático sobre as condições para o ajuizamento das ações de execução fiscal no Brasil:

Resumidamente para se propor uma execução fiscal no Poder Judiciário o fisco Municipal deverá e tem a sua disposição, o seguinte:
- Notificação do contribuinte e propor conciliação com base em norma geral do parcelamento ou desconto;
- Realizar o Protesto da dívida representa pela Certidão de Dívida Ativa (CDA);
- Comunicação aos serviços de proteção ao crédito;
- Averbação da CDA em cartórios de registro de propriedade do bem;
- Indicar na ação judicial bens ou direitos penhoráveis.
Temos ainda mais novidades em vigor. A Lei Federal 9492/97, com a modificação do seu art. 11-A, permite ao tabelião de protesto, na recepção do título da dívida ativa tributária, com a recomendação da Fazenda Pública credora, realize proposta de solução negocial prévia ao protesto, inclusive tendo sido a matéria objeto do Provimento Nº 168, de 27/05/2024 do Corregedor nacional de justiça.
Já a recente Lei Complementar nº 214 trouxe, além do princípio da neutralidade, segundo o qual os tributos devem evitar distorcer as decisões de consumo e de organização da atividade econômica, a obrigação das pessoas físicas e jurídicas proprietárias de imóveis rurais e urbanos a se registrarem ao Cadastro Imobiliário Brasileiro (CIB), que deverá integrar “em ambiente nacional de dados entre as administrações tributárias federal, estaduais, distrital e municipais” (Art. 59).
Em futuro próximo, em paralelo aos esforços do Poder Judiciário para tornar a cobrança do crédito tributário mais eficiente e menos judicializada, o Poder Legislativo deve deliberar sobre o Projeto de Lei Ordinária nº 2488/2022 e o Projeto de Lei Complementar nº 124, de 2022.
Ambos em tramitação avançada, o primeiro (PL nº 2488/2022), subsistirá a Lei Federal 6.830/80, propondo a execução fiscal extrajudicial de dívidas ativas de pequeno valor (inferior a 60 salários-mínimos) por meio de uma plataforma eletrônica nacional. Essa modalidade prevê a penhora de bens via tabeliões, antes mesmo da notificação do contribuinte. Apesar de estimular a autocomposição e a consensualidade antes da execução fiscal, o PL também possibilita a expropriação de bens, incluindo a adjudicação e a averbação da dívida em seus registros. O segundo projeto (PLP nº 124/2022), que altera o Código Tributário Nacional Brasileiro, traz a configuração do contribuinte com “bons antecedentes fiscais”, da arbitragem fiscal para promoção de soluções de controvérsias, prevenção e resolução do contencioso tributário. Além disso, prevê expressamente que a transação, a mediação e a arbitragem “não caracterizam renúncia de receita”, estabelecendo ainda, que a administração tributária deverá ter programas de prevenção de conflitos.
O exemplo inicial de texto demonstra que hoje o contribuinte devedor deve ter assegurado a possibilidade de instrumentos de consensualidade, e não tão somente uma cobrança distante de realidade do cidadão. O modelo tradicional de cobrança anterior a implementação dos novos fluxos se tornou superado, não havendo mais outro caminho que não seja do estímulo das soluções administrativas de resolução de conflitos.
Deverá sempre o contribuinte, ao ser notificado para efetuar o pagamento, ter o oferecimento de negociações, previstas em norma local, de modo perene para que, mesmo a qualquer tempo, possa haver a adoção mecanismos de solução de conflitos, evitando assim a judicialização desnecessária e o distanciamento do fisco para com o cidadão local.
As Procuradorias terão que abrir suas portas, atender o público, falar frente a frente com o contribuinte local, ouvir os motivos de sua inadimplência e propor soluções. A contribuinte inicialmente citada deverá ser recebida no órgão de cobrança fiscal, ter disponível planos de acordo, descontos e parcelamentos, com facilidade de acesso aos meios de pagamento.
O litígio e a cobrança fiscal coercitiva pelo Estado não são mais a regra. Hoje não mais impera o litígio, este tempo ficou para trás. A época do negociar, do ajustar, do conciliar veio para ficar. Portanto, é necessário que a Fazenda Pública, com destaque para a função privativa da advocacia pública na inscrição e cobrança da dívida ativa, estruture e promova uma mudança de pensamento para a realização de negócios jurídicos processuais de autocomposição fiscal, incentivando os métodos consensuais e a recuperação de crédito via administrativa antes da propositura da execução fiscal.
Miguel Gustavo Carvalho Brasil Cunha, Advogado, procurador do município de Belém, delegado da Associação Nacional das Procuradoras e dos Procuradores Municipais no Estado do Pará, mestre em Direito e Desenvolvimento na Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA)
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