MANIFESTO: O ESTADO PRECISA DO CAOS (OU MANUAL DE INSTRUÇÕES PARA MATAR COM LEGALIDADE)
- Revista Pub
- há 5 dias
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-Hermelindo Silvano Chico-
“O poder soberano é a capacidade de decidir quem pode viver e quem deve morrer.” — Achille Mbembe
O Estado brasileiro acorda cedo. Veste sua farda lavada de sangue, engole o café amargo da imprensa e recita sua ladainha diária: “Operação bem-sucedida. A lei foi cumprida. O crime foi combatido.” E pronto: o país se ajoelha. O cidadão de bem suspira: “pelo menos agora posso dormir tranquilo.” Mal sabe ele que a tranquilidade de sua noite é feita da insônia de outro.

Chamam de ordem o que é apenas barbárie uniformizada. Chamam de lei o que é o manual da violência com capa de Constituição. Chamam de civilização o que é o ritual diário de um Estado que precisa do caos para continuar existindo. Porque sem o caos, sem o medo, sem a favela, sem o “outro perigoso”, o Estado não tem a quem proteger. Sem inimigos, o Estado perde sentido. Sem o grito da polícia, ele é só mais um deus desempregado.
Não há improviso na barbárie. A violência é produto interno bruto. Ela tem orçamento, planejamento, gabinete. O mesmo governo que corta verba da escola financia o caveirão. O mesmo Estado que abandona o hospital celebra a eficiência do tiro. O mesmo poder que deixa o jovem sem futuro o transforma em alvo, e chama isso de “responsabilidade pública”.
A desigualdade não é falha; é projeto. A miséria não é descuido; é método. O caos não é colateral; é ferramenta. O Estado fabrica o caos como uma indústria discreta: reduz o salário, sucateia o transporte, destrói o SUS, desmonta a educação, e quando a revolta nasce, ele chega armado, dizendo: “vê o que vocês fizeram comigo?”. Ele cria o monstro e depois o caça em rede nacional. E a plateia aplaude, sem perceber que o verdadeiro assassino é quem assina o decreto, quem lucra com o medo, quem legisla sobre a morte vestindo terno e gravata.
Nada disso é novo. O massacre no Rio não começou em outubro de 2025, começou em 1500. O massacre tem DNA colonial. A cada século o Estado apenas muda de uniforme: já foi capataz, já foi capitão do mato, já foi sipaio do império, agora é tropa de elite. Mudam os nomes, mas a missão é a mesma: garantir que o negro continue servindo de aviso, o pobre continue servindo de espantalho, e o caos continue servindo de justificativa.
Os capatazes de hoje são treinados para obedecer sem perguntar. Marionetes de um Estado que ensina: “Mate primeiro, depois a gente escreve o boletim.” A morte, aqui, é burocrática. Tem protocolo, carimbo e nota oficial. O sangue escorre dentro das normas. E se alguém questiona, o Estado responde com a linguagem mais fria do mundo: “Foi um confronto.” Mas nunca há confronto quando só um lado tem helicóptero, só um lado tem farda, só um lado tem o privilégio de ser considerado gente.
O direito moderno é o romance favorito da civilização: fala de igualdade, mas é escrito com tinta de exclusão. Ele cria o “sujeito de direito”, esse personagem mítico, racional, proprietário, branco, e depois finge que todos podem ser como ele. Mas a periferia sabe que não é assim. A lei é um espelho que só reflete os rostos certos. A favela se olha e não se vê. O morador vira ruído, vira exceção, vira estatística.
O direito não protege: disciplina. Não liberta: domestica. Não reconhece: seleciona. E a cada bala “legal”, a cada morte “legítima”, ele reafirma sua função original: manter a hierarquia intacta. Porque o direito, aqui, não nasceu da justiça, nasceu da plantação. Ele é o contrato social dos senhores. A certidão de nascimento do privilégio. E o que chamamos de “Estado de Direito” é apenas o modo mais elegante de administrar a barbárie.
Achille Mbembe chamou de micropolítica o poder de decidir quem vive e quem morre. No Brasil, essa política virou cultura nacional. Aqui, a morte é repartida por CEP. É política pública não declarada, mas muito eficiente. A favela é o laboratório; a bala, o instrumento; o silêncio, o prêmio.
As chacinas se repetem como se fossem fenômenos naturais: “Choveu morte em Manguinhos”, “Tempestade de balas na Maré”. A meteorologia da barbárie virou rotina. E o que é mais perverso: há quem veja nisso segurança. Há quem veja nisso paz. Há quem diga: “melhor eles do que eu”.
A necropolítica, no Brasil, é uma pedagogia. Ensina o medo, forma o ódio, perpetua a obediência. E no final do dia, todos continuam servindo ao mesmo senhor invisível: o lucro, o controle, a branquitude do poder. A mão que mata não é a mesma que manda matar. A primeira é descartável; a segunda, vitalícia. O soldado é o peão da necropolítica, a carne que cumpre o script. Ele é treinado para acreditar que o inimigo é o pobre. Mas o verdadeiro inimigo está no ar-condicionado do gabinete.
Enquanto o policial arrisca a vida, o ministro janta com banqueiros. Enquanto o caveirão invade a favela, o deputado discursa sobre “defesa da família”. Enquanto a mãe chora sobre o corpo do filho, o governador fala em “estatísticas positivas”. A morte tem CNPJ, mas o luto é sem CPF. E o mais cruel é a liturgia do espetáculo: a cada massacre, o governo promete “investigação rigorosa”, o apresentador diz: “mais uma operação necessária”, e a cidade segue o baile, porque ninguém quer saber demais sobre o sangue que sustenta a paz.
O Estado precisa do caos como o corpo precisa do coração. Ele bate por dentro, invisível, mantendo tudo pulsando. Sem caos, não há controle. Sem inimigo, não há autoridade. Sem o medo do crime, não há justificativa para o aparato armado. O Estado é o criador e o exterminador do próprio monstro. Ele semeia a miséria, depois diz que a colheita é criminosa. Ele abandona as escolas e depois culpa a juventude. Ele destrói o emprego e depois chama o desempregado de marginal. É um ciclo de autodefesa cínica: o Estado mata para se proteger do que ele mesmo gerou. E quando a periferia reage, ele diz: “Viu? Eu tinha razão em temer”. Essa é a teologia do poder: criar o inferno para vender o paraíso. Produzir o caos para justificar a ordem. Inventar o inimigo para justificar o exército.
Chamam o Brasil de país cordial. Cordial vem de cordis, coração. Mas o nosso coração é uma bomba-relógio. Somos cordiais na morte, abraçamos o cadáver e tiramos selfie. Cuidamos da tragédia com decoro. Matamos com afeto. O país que batiza ruas com nomes de generais e ditadores aprendeu a transformar o assassinato em patriotismo. A cada morte na favela, alguém grita “bandido bom é bandido morto” e acha que acabou o problema. Mas o problema nunca acaba, porque ele é o combustível do Estado. Sem o bandido, não há policial herói. Sem a favela, não há programa de segurança. Sem a pobreza, não há campanha eleitoral. O caos é o produto mais exportado da política brasileira. E o consumidor mais fiel é o eleitor médio, esse sujeito que acha que vive em perigo, mas é o perigo que vive dentro dele.
Mesmo assim, algo resiste. Porque a morte nunca consegue apagar completamente a vida que ela fere. A mãe que grita o nome do filho na calçada está reescrevendo a história. Ela faz do luto uma denúncia. Faz da dor uma prova. Faz da lágrima um testemunho. Cada corpo nomeado é um ato de desobediência. Cada foto nas redes, cada cartaz na rua, é uma ferida aberta na narrativa oficial. O Estado tenta apagar, mas a favela lembra. E a lembrança é insuportável para quem vive de apagar rastros. A memória é o único tribunal que o Estado não consegue invadir. É o espaço onde a justiça ainda tem chance de nascer.
No fim, tudo volta ao início. O Estado moderno é apenas a colônia com diploma. A lei é o novo chicote. A política é o novo engenho. O sistema penal é a senzala reinventada. A diferença é que agora o castigo vem com justificativa técnica, com PowerPoint e coletiva de imprensa. Mas o cheiro é o mesmo. O som é o mesmo. A lógica é a mesma. O que muda é o marketing. E talvez o maior ato de revolução seja este: recusar o vocabulário do opressor. Chamar as coisas pelo nome certo. Dizer que o massacre não é exceção, é política. Dizer que o Estado não protege, controla. Dizer que a lei não emancipa, domestica. Dizer que o caos não é o oposto da ordem, é o seu alimento.
Um dia, talvez, entenderemos que o Brasil não é um país em guerra, é uma guerra que decidiu se disfarçar de país. E talvez nesse dia, quando a favela for tratada como parte da cidade, quando a morte não for pauta, mas memória, quando a justiça não for luxo, mas base, talvez então possamos dizer que o Estado encontrou a paz.
Mas até lá, que o grito ecoe. Que a ironia denuncie. Que a palavra rasgue o verniz. Porque enquanto houver corpo negro tombando e manchete dizendo “confronto”, não haverá ordem, não haverá lei, não haverá civilização. Apenas uma máquina velha, colonial e disfarçada, funcionando com sangue e silêncio. E nós, que escrevemos, falamos, lembramos, somos a ferrugem que começa a corroer essa engrenagem.
“A história não perdoa os que escolhem o conforto da neutralidade diante da morte alheia.” — inspirado em Frantz Fanon
Hermelindo Silvano Chico - Doutor e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e bacharel em Ciências Criminais pelo Instituto Superior Poli. de Ciências e Tecnologia - INSUTEC (Angola). Desenvolve pesquisas interdisciplinares sobre Direito, sociedades tradicionais e meio ambiente, com ênfase em epistemologias jurídicas africanas, indígenas e quilombolas. É escritor e pesquisador associado do CEPEDIS.






