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Dois séculos

Atualizado: há 5 dias

- Ercilene Vita -

License: CC0 Public Domain John Davis has released this “Late 19th Century Family” image under Public Domain license.

“Me enterre longe de seu pai.” A voz suave se fazia ouvir na memória do homem que tinha aprendido ao longo da vida a confiar mais nessa voz do que em qualquer outra coisa nesse mundo.

 Chovia. Uma chuva forte e densa, que tinha derrubado a ponte que dava passagem para a cidade vizinha. “Me enterre longe de seu pai.” Não bastava a dor de ter visto a dona da voz estendida em um caixão, não bastava. Estendida no caixão a voz em que ele mais confiava. Perdida para sempre. Não. Ele ainda teria que transportá-la imóvel para sempre, para longe. Ao menos a ponto de o corpo dela nunca mais ficar perto do corpo de seu pai. Mas não bastava. Estava sozinho, sob a chuva, um caixão amarrado na charrete, o pequeno rio, a ponte arrebentada e a voz.

Lembrou dos olhos dela. Abertos. Explicando a ele o que fazer com suas roupas quando tinha ido para São Paulo pela primeira vez estudar, como guardá-las na mala, dobrá-las, depois passá-las. Explicando a ele como olhar para as plantas do quintal, qual usar para as dores de uma noite de insônia, para as dores do fígado, para um corte. Desde pequeno via o mundo pelos olhos dela, as cores, os cobertores que ela tecia tão coloridos, os carneiros que ela tosava, de que tirava a lã que depois ia ser tingida e tecida nos cobertores. Ela o esquentava. Sempre o esquentou e ele agora, diante do mandamento materno, sentia-se dilacerado pelo frio da noite. Chovia e chorava. Ela sempre o havia acolhido em seu choro ainda que ele o dissimulasse várias vezes:

— Venha, Alcides. Eu lhe conheço mais que qualquer ser nessa terra. Venha.

Onde agora? Onde agora seria acolhido? “Longe de seu pai”. Sua mãe era forte como o carvalho que algum ancestral havia plantado. Era o que ele achava, menino.  “Sou eu que vou lhe passar o mundo, eu sei”. E era assim. Agora ainda estranhamente assim, no meio do breu ele não tinha medo de fantasmas, de ladrões, de assassinos. Ela estava lá ainda. Ao menos era o que preferia crer. Pensou em voltar atrás. Não conseguiu. Talvez alguém passasse por lá, e não se assustasse com a visão da charrete. Talvez uma pequena embarcação. No meio do escuro, tentou ver alguma canoa. Nenhuma. Talvez de manhã, alguém passasse e o ajudasse. De cansaço, pois não havia dormido na noite anterior, dormiu uma hora ao lado do corpo. Sonhou. A sensação de ter dois corações, o da mãe também dentro de seu peito. Não respirava direito. Acordou.

No dia da morte dela, precisou brigar com o padre, com o prefeito da pequena cidade, com as beatas. Todos eles conformes às leis do mais cômodo. Como era o único filho, sua vontade prevaleceu. Ameaçou-os, acusando-os de não respeitar a vontade da morta. Amaldiçoou-os. Mas depois das rezas, da verificação do médico, do não-lugar que para ele se abria, precisava sair da cidade o mais cedo possível. “Me enterre longe”. Ela é a voz que move o mundo. Ela fazia vir livros de longe, de além-mar. Lia melhor que o padre, que o prefeito, que o marido. Sabia mais. Fazia seus cordiais com que curava Alcides. Sua busca por remédios começou quando perdeu o gêmeo de seu agora único filho. Nunca mais iam tirá-lo dela, como fizeram com o outro.  O médico que não sabia das dores do corpo, o marido que não sabia das dores do parto, o padre que não sabia das dores da alma, o prefeito que não sabia de cidadania. Ela também não sabia, mas era capaz de intui-la, apesar de seu casamento quase que infantil, com um homem bem mais velho, incapaz de entendê-la, apesar do casamento arranjado entre as famílias com um primo mal conhecido, apesar de não ter podido ser médica porque era mulher naquele Brasil de longa data, de matos, engatado em ré de onde vinha e tinha vivido sua infância de menina prometida. Apesar de. Tinha conseguido brigar com o padre e esconjurá-lo, cuidar dos escravos abandonados que via pelas ruas da cidade, salvar a perna de um sobrinho que ia ser amputada pelo médico. “Deixem esse menino seis meses comigo, se eu não der jeito, podem amputar”. Deixaram. Com seus cordiais, o seu cuidado, salvou-o. Também tinha conseguido ficar longe do marido, indo para uma casa antiga da família, abandonada. Tinha conseguido criar seu filho, carregado nas costas, quando trabalhava, ele que agora a carregava. Os pensamentos de Alcides pesavam na noite tanto quanto um corpo. Alcides tinha agora duas cargas. Que sempre o constituíram. Que paradoxais o levantavam.  Dava-se conta delas, de modo súbito. Um colo e um desamparo. O que fazer para realizar seu último desejo? Era o discurso dela que seguia. Um norte. Um caminho, um carinho, uma vida. Ninguém soube lhe dar tanta vida quanto ela, quase tão alta quanto ele, os olhos negros refletindo o escuro, o breu em que ele agora se via. Ele era o discurso dela em pé. Suas palavras e seus dias. Seguia. Tendo brigado com o padre, com o resto não tão próximo da família, com o prefeito, com as beatas. Seguia. Seguiu altivo até o rio. E amaldiçoou os deuses quando viu a ponte quebrada. Conhecia bem o rio. Tinha que enterrá-la do outro lado, o cemitério da cidade vizinha, não aquele em estava o corpo de seu pai morto há uns vinte anos. Não aquele.

Fez cálculos, a parte mais baixa do rio, conhecia. Depois de ter pensando em voltar, em desistir, em consertar a ponte, sozinho, depois de esperar alguém chegar, depois de tanto esperar, pensou em se arriscar e atravessar a nado, com o cavalo, a charrete, o caixão. Pensou em um acidente, pensou em perdê-la como um barco que parte. Não suportaria. Decidiu esperar o dia amanhecer. Dormiu mais uma vez, abraçado.

Acordou de manhã aos sobressaltos. Olhos e um rosto escuro o fixavam de perto. Sentiu a respiração próxima, acre. Que depois veio com um sorriso. Era um liberto, o velho Julião, que havia sido cuidado por sua mãe quando ainda vivia na rua, abandonado. Desde então, havia se enfurnado no mato. Sozinho. Sem querer a proximidade daqueles que o haviam escravizado. Havia escutado o choro no meio da noite, mas não quis se aproximar. Com a luz do dia, teve mais coragem. Viu o homem, já conhecido e percebeu a tragédia. Alcides lhe contou o que havia acontecido. O grande medo da mãe de passar, assim seria?, o  resto da eternidade ao lado de quem não queria. Imediatamente se puseram a tentar encontrar uma forma de atravessar o rio. Caminharam até uma margem mais estreita. O dia dava ideias e uma certa esperança.

“Sou eu que lhe mostro o mundo”. Seu pai mandava, fazia absurdos, desperdiçava dinheiro, bebia, era cruel e despertava medo. Mas seu discurso não ficava entranhado em sua pele como o dela. “Sou eu que lhe mostro o mundo”.

Acharam o mais estreito do rio, e a parte mais rasa. Finalmente chegados lá, apressaram-se em desatrelar o cavalo, desceram o caixão da charrete e conduziram os dois pelo rio. Nas ondas da correnteza, na diagonal, o caixão atrelado ao cavalo, apoiado pelos homens que quase caíram, engoliram água, se embarrearam. O cavalo andando devagar, guiado pelo dono. Julião atrás, de vigia, impedindo a queda. Preciso.

Quando chegaram ao outro lado da margem, desatrelaram o caixão do cavalo. Quase  não mais se equilibrava. Decidiram levá-lo nos ombros pela estrada, o cavalo ao lado. O peso quase não existia. Seguiam. Altivos, irmanados. Eram dois homens livres dando vez à liberdade.

 

Ercilene Vita é professora, tradutora e autora do livro "Mar de palavras-chave: domínio e estranhamento em Língua Portuguesa", que será publicado ainda neste ano (2024) pela Editora Mercado de Letras. Também é doutora em Linguagem e Educação pela FEUSP. Seu conto "Dois séculos" foi inicialmente publicado em 2020, em uma edição especial da Revista Fluxo, dedicada ao feminismo.

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