-LÚCIA REISEWITZ-
O dia 17 de agosto foi cunhado, em 1998, como dia Nacional do Patrimônio Cultural Brasileiro. A data foi escolhida em razão do dia de nascimento de Rodrigo Melo Franco de Andrade (em 1898), historiador e jornalista que, com o auxílio luxuoso de Mario de Andrade, pensa a criação de um serviço público de preservação do patrimônio cultural. Sob o olhar moderno do então ministro da Educação, Gustavo Capanema, Mario de Andrade redige o anteprojeto da norma que será transformada no Decreto Lei n. 25/37, e que cria o SPHAN, Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, para implementar a política patrimonial. Rodrigo Melo Franco de Andrade é escolhido para a presidência do órgão e nela permanece até 1967.
Se, por um lado, é preciso sempre conservar a memória histórica da institucionalização de institutos de preservação (como o tombamento) e das ilustres personalidades que viabilizaram estes processos, por outro, importantíssimo observar como a tutela deste tema pelo Estado evoluiu a partir desses alicerces. Muito embora o Decreto Lei n. 25/37 siga em vigor (até pela forma primorosa como foi pensado por Mário), após o advento da Constituição de 1988, o olhar sobre a riqueza da cultura a ser preservada fez justiça a todos os povos formadores de nossa sociedade.
Inicialmente a tutela jurídico-institucional colocou no foco da preservação os bens culturais materiais e as paisagens notáveis, escolhidos por especialistas. Hoje, a Constituição Federal declara como patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. A evolução não é pouca. Reconhece-se que o patrimônio cultural não está refletido apenas pelos bens materiais. As práticas culturais, formas de expressão, modos de criar, fazer e viver, passam a ser objeto da tutela preservacionista. Assim como a representatividade daquilo que receberá o apoio institucional deixa o olhar da elite colonizadora, para ir de encontro à infinita diversidade de um país pluricultural.
O tombamento não é mais o instrumento que reina hegemônico. Para fazer fluir a preservação institucional sobre tantas riquezas, muitos instrumentos ganharam corpo. O Decreto 3.551, de quatro de agosto de 2000 cria o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial. A atuação do Estado nessa seara também se faz sentir pela via jurisdicional, quando, atendendo a pedido, o Poder Judiciário determina a preservação de elementos de nossa cultura.
Entre muitos avanços e alguns retrocessos, o Estado Brasileiro ainda engatinha na valorização da cultura dos povos originários. As escolhas sobre aquilo que nos identifica como Nação ainda sofrem com a influência de quem não compreende a riqueza da diversidade. As nossas riquezas arqueológicas e paleontológicas não encontram estruturas adequadas para estarem acessíveis ao olhar das pessoas. Os sítios remanescentes de quilombos, apesar de declarados tombados pela Lei Maior, padecem diante da intrincada legislação fundiária brasileira, que acaba favorecendo aqueles que possuem mais recursos e melhor acesso à justiça para reivindicar direitos.
Em tempos como os atuais, onde temos visto todo o tipo de retrocesso no direito da preservação do patrimônio cultural e ambiental, algo que foi conquistado com o trabalho de tantos, ao longo de tanto tempo, é essencial lembrarmos como chegamos nas conquistas da atual Constituição Federal. É imperioso pensar que nossa democracia é jovem e precisa de atenção e muito exercício de memória. Afinal, o que não está registrado não existiu.
No dia de hoje, saúdo a todos os grandes pensadores e articuladores do patrimônio cultural brasileiro, em nome do saudoso Prof. José Eduardo Ramos Rodrigues, que nos deixou prematuramente. E seguimos.
LÚCIA REISEWITZ - Advogada e Consultora de Direito Ambiental e Patrimônio Cultural
Excelente artigo. Uma pena que certos políticos façam uso da legislação referenciada para elevar à preservação, como patrimônio imaterial de nossa cidade , bens destituidos de qualquer valor.
Nenhuma homenagem será demasiada ao José Eduardo Ramos Rodrigues, um dos indivíduos mais preocupados em que o retorno às cavernas não se tornasse uma possibilidade real e que tanto contribuiu nos estudos sobre o patrimônio cultural brasileiro. O amigo querido recebeu, neste texto, uma bela dedicatória.
Muito bem lembrada a importância do patrimônio cultural, também, imaterial, tantas vezes relegado nas ações governamentais. Parabéns, Lúcia, pelo texto !!!