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Ódio e Crueldade de Machado(s) no Carnaval

-FABÍOLA A CABOCLA-




Imagem - Wikipedia - Jacques Etienne Arago - Castigo de Escravos- Domínio Público

No Conto Pai Contra a Mãe uma escravizada foge. Da verdade aterradora, desesperada, ela foge. Com Machado de Assis, nos perguntamos: se a mulher que é odiada pelo seu senhor e pela sociedade esclavagista pode ser amada. O que fundamenta nossa reflexão é o seguinte: a mulher fêmea como caça, objeto a (de todos os desejos), desejará até quando apenas fugir? Essa mulher-caçada, geradora de tantas emoções, roubada, sequestrada, estuprada, aterrorizada e torturada: o que ela pode querer, além de fugir, afinal?

   

Em outro conto do Machado, outra mulata foge. Arrebitada, ela desdenha do protagonista. Cito: “Chamava-se Genoveva, caboclinha de vinte anos, esperta, olho negro e atrevido” (Noites de Almirante, 2012, p. 193). Neste outro conto, há outra espécie de fuga. Ao invés de um desejo mortífero, aparece até um desejo amoroso, além do ressentimento do almirante. Trocado por outro, esse protagonista das Noites…, na contemporaneidade, talvez tivesse matado essa que foge de um casmurro ciúme. Raros são os críticos que acham justa a fuga da cabocla. A maioria ainda a considera, como o almirante, “uma atrevida”. Assim, permanece sendo uma questão: quando a tortura acaba? Quando o natimorto bebê da caboclinha pode aparecer vivo? Apenas no espetáculo machadiano onde uma caboclinha despeitada deseja? A caboclinha sendo, não o vértice nem o porquê da beatitude, mas as tetas túrgidas. Perfeitamente — a Quenga. O último berro de uma sociedade esclavagista, machista, e colonialista. E já o colostro jorrando. Os mamilos, não obstante, bem sossegados. Repito o que a negra personagem machadiana quer: o colostro jorrando. Os mamilos bem sossegados, e, não obstante, a grande saúde.

   

Qual a diferença entre as mulheres dos dois contos onde à machadadas destrói-se o colonialismo? A primeira negra permanece escravizada; já a segunda, alforriada, pôde se dar ao luxo de escolher seus pretendentes. Mas isso significará liberdade? A caboclinha o que deseja? O colostro jorrando. Não obstante, os mamilos bem sossegados. E ela tem o seu desejo atendido? No caso do Conto escrito em 1906, não. E isto porque todos desejam se não a escravizada punida por seu desejo de gravidez.

   

Mais de cem anos nos separam dos dois contos (Noites…: 1884/ Pai Contra a Mãe: 1906). Entre eles, vinte e dois anos: neles, a obra machadiana dá a ver a sua magnitude. Além da ardente crueldade colonial à brasileira, a despeitada virtude da caboclinha: não ter virtude alguma. Apenas a physis túrgida. Em 1906, mais nítida a nossa realidade: o feminicídio autorizado e incentivado pelo Estado senhorial. O senhor que dá direito apenas à branquitude, tanto colonizadora quanto colonizada, dar à luz, a tem protegida, mas desgraçada, fêmea do patriarca. Ilha domesticada, mas talvez disposta à selvageria.

   

No segundo Conto, a história se inverte: a caboclinha, a princípio, não deixa de interessar-se pelos homens que, se não abusam dela, é porque não conseguem. Ela não espera nem o almirante! Interessado, não em suas virtudes, mas em seu atrevimento, ou em sua capacidade de evadir-se. E ela? Aparentemente, ela deseja os homens que se interessam por ela, e não o almirante que a deixa esperando. Quanto mais se ausenta, mais a morena cativa o outro?

   

As mulheres de Machado experimentam esta verdade desgraçada: que os homens não deixam de odiá-las quando permanecem. É preciso morrer, ou se ausentar, para sobreviver. Também para suscitar algum desejo amoroso, essas mulheres precisam ignorá-los, mas também não os destituir de sua aparente, e frequentemente real autoridade. Trata-se de um lógica pérfida, onde essa que vive para ser odiada e caçada, mesmo quando deseja, não tem o seu desejo sequer ouvido. Vide Capitú. Mas a caboclinha que não foi do almirante teria conseguido ser diferente? Ela teria afinal se dado o direito à majestade?

   

A estrutura da sociedade brasileira parece permitir que, no Carnaval, tudo se inverta. Parece que tudo ‘de ruim’ de repente possa soar como um bem, ou algo bom, ou seja, que mesmo a escritura da moral soe amoral, e vice-versa. Mas a democracia racial permanece a maior falácia de nossa mátria. Aí, também as caboclas negras teriam o seu momento de glória? Fora isso, tão somente quando mortas, elas permitem aos homens algum entendimento acerca de suas próprias naturezas mortíferas?

   

Em Pai contra a Mãe, a verdade fica nítida não apenas no feto natimorto, mas na necessidade do Senhor cruel de maltratar a negra. Essa verdade sádica parece ter fundamento sexual; e volta a ser evidente a cada vez que os homens precisam se ausentar para enxergar o cuidado necessário a todo Ser. Porque no Brasil a violência não se volta apenas contra as mulheres negras. A violência se volta contra as brancas, contra a natureza, contra os bebês, contra si, a cidade, e suas desventuras.

   

Até a selva que já era o ‘barato’ (palavra de Lélia Gonzalez para designar a louca diversão dos brancos com os negros) de José de Alencar, tinha a sua majestade. Essa selva, agora, como está? O pensamento selvagem, termo anti-colonial de Ailton Krenak[1], não se funda em uma experiência extrínseca à colonização. A nobreza de nossa natureza cabocla (indígena, e negra), é selvagem porque, nas frestas da colonização é onde mais precisamos aprender a ser, e também a não-ser. Não podemos bater de frente: temos de aprender a ser nas frestas para não ser caça nas festas dos brancos.

  

Nas tarefas das que ficam (onde me incluo), forçosamente costuma nascer um ódio que vira morte. A misoginia, aí, aparece. Desconhecendo os modos de fuga machadianos, todo e qualquer projeto de libertação, que, em nosso caso, seria o do império da rainha-cabocla, soçobra.

   

Os que odeiam “A Mulher” desejam a nossa morte. Precisamos nos livrar do ódio para deixar de ser alvo. E como faremos isso? Precisamos parar de evocar a angústia nos homens? Para tanto, alguns silenciam os próprios desejos. Silenciar não é uma opção aqui. Nas desumanidades onde soçobrarmos somos todos alvo de cosmofobia (termo de Nêgo Bispo[2]); alvo da destruição planetária. A verdade a muito se volta contra o feitiço colonial: urge nos unir combatendo aqueles que nos maltratam, a nós selvagens da terra.

   

No Brasil, a babá-preta deixa até de ter nome. Se eroticamente ativa, não presta nem para a madame, nem para ser madame. Caso se case com o rei pelado, espécie de Macunaíma carioca, não prestará para nada nem para ninguém! Nas palavras de Lélia Gonzalez:


“E o corpo do rei é preto e o rei é Escravo” ([3]Racismos…, p. 239). No caso do escravizado virar rei, então, se passa um “aparente” milagre…

“a gente sai das colunas policiais e é promovida a capa de revista, (…) falo do encanto especial do povo dessa terra chamada Brasil. É nesse momento que Oropa (sic), França e Bahia são muito mais Bahia do que outra coisa. (…) A negrada vai prá rua viver o seu gozo e fazer a sua gozação. Expressões como: botá o bloco na rua, botá prá frevê (que virou nome de dança nas fervuras do carnaval nordestino), botá prá derretê, deixa sangrá, dá um suó, etc são prova disso. (…) os não-negros saúdam e abrem passagem para o Mestre-Escravo.” (Idem.)[4]

   

Em bom ‘pretuguês’ (conceito de Lélia): Seja nos bundalelês, seja ‘nas coxas’, como na Antiga Grécia, o imperativo do gozar-se faz de suditos subjugados à verdade recalcada e liberta pelos negros-reis. Todos desejam ser livres. Mas apenas os negros podem plenamente sê-lo. Em virtude da dialética do desejo, onde apenas a falta gera poder, aqueles que mais sofrem são também os que aparentemente mais gozam o retorno do recalcado. Em outras palavras, apenas quem não tem liberdade e prestígio pode, no Carnaval, por exemplo, virar plenamente um rei, ou uma rainha. Não-negros plebeus suditos passam a invejar a ponto de desejar a morte da cabocla, e sua suada, por vezes, póstuma, liberdade. O povo negro, de perseguido, no Carnaval, é convidado a gozar, e perseguir madames ou aparentes ‘bons-moços’. Mas quem goza a majestade nos dias de Carnaval deixará, de fato, as ‘colunas policiais’?

   

Os mestres da Encantaria nos ensinam a ser pacíficos mas não pacificados. Junto a esses reis dos mistérios, não há espaço para uma linguagem violadora. Porque não morremos quando queremos, preciso é aprender a navegar. Se quem me navega é o mar, símile a Sócrates, morremos quando nós nos deixamos levar, e isso para nos deixarmos ser divinamente. No Fédon, Sócrates fala em phármakon, veneno mas também remédio. Aqui, nós falamos em macumba.

   

Nas Oropa (sic), o pai que castra é também odiado. Aqui, ele pode ser odiado, e isso, sobretudo, quando se ausenta. Via de regra, no Carnaval, o homem é amado. É o rei-Escravo que, de escravizado, passa a Senhor por uma circunstância digamos Macunaímica, isto é, pela mímica do indígena que rouba a cena em razão de sua maior autenticidade.

   

Quando ambas, a cena privada e a pública, ficam sendo amadas e odiadas, o público é privatizado para poder ser odiado. O macho que aterroriza, assim o faz,  porque antes se sente aterrorizado. O desconhecedor dos mistérios concluirá o seguinte: “Estes que eu odeio porque não me pertencem não servem.” Caso em público seja ‘A Mulher’, no privado será apenas ‘uma mulher’ que não lhe pertence nem merece, e que ele deve maltratar para poder ser reconhecido como homem. Friedrich Nietzsche, filósofo alemão, fala: o Bebê é um sedutor (em Assim Falava o Zaratustra, ele aparece como o terceiro animal, depois do Camelo, e do Leão). Basta um riso maroto, e o bebê a todos seduz.

   

Compreende-se que o retorno do recalcado, noção psicanalítica para designar o incontrolável da pulsão (Trieb), vem à tona sob a égide do machismo. Como um eterno recalcado à espera de retorno em cada mulher. Neste caso, os relacionamentos tóxicos abundam. Para analisar esse retorno precisamos da argúcia da psicanálise: não podemos sobreviver apenas, mas devemos poder nos utilizar de nosso lado selvagem (Id) para combater o retorno dos machistas. O retorno ao/desde o Complexo de Édipo é chave para podermos, não entender porque isso talvez seja impossível, mas combater os machismos. Mas o selvagem que em nós habita pode estar à serviço da justiça?

   

Não apenas não sendo machistas, mas sim sendo antissexistas poderemos descobrir mais a esse respeito. A natureza selvagem recalcada vir à tona apenas no Carnaval é pouco. Precisamos da nobreza dos povos originários sempre.

 

Referências

Assis, M. d. (1906/ 2020). “Pai Contra Mãe”. In: “Relíquias da Casa Velha”. “Contos (quase) esquecidos”. (2 ed.). Filocalia.

Assis, M. d. (1884/ 2012). “Noites de Almirante”. In: “Histórias sem Data”. “Contos escolhidos”. Martin Claret.

Freud, S. (2006). O eu e o id. In S. Freud, Escritos sobre a psicologia do inconsciente (L. A. Hanns, Trad., Vol. 3, pp. 13-92). Imago. (Trabalho original publicado em 1923)    

Gonzalez, L. (2020). “Por um feminismo afro-latino-americano”. Companhia das Letras.

____. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Revista Ciências Sociais Hoje, Brasília, Anpocs, p. 223-244, 1984. Disponível em Disponível em <VEJA AQUI Acesso em 10/05/2020. »https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4584956/mod_resource/content/1/06%20-%20GONZALES%2C%20L%C3%A9lia%20-%20Racismo_e_Sexismo_na_Cultura_Brasileira%20%281%29.pdf>. Acesso em 15/02/2024.

Krenak, A. (2022). “Futuro ancestral”. Companhia das Letras.

 

Nietzsche, F. “Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém.” Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

 

Platão. “Fédon”. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Editora Universidade Federal do Pará, 2011.

 

Santos, A. B. dos. (Nêgo Bispo, 2023). “A terra dá, a terra quer”. Ubu.


[1] Krenak, A. (2022). Futuro ancestral. Companhia das Letras.

[2] Santos, A. B. dos. (2023). A terra dá, a terra quer. Ubu.

 

[3] GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira”. Revista Ciências Sociais Hoje, Brasília, Anpocs, p. 223-244, 1984. Disponível em Disponível em (AQUI) Acesso em 10/05/2020. (VEJA AQUI)

 

 

[4] A seguir trago a citação inteira: “Não é por acaso que nesse momento, a gente sai das colunas policiais e é promovida a capa de revista, a principal focalizada pela tevê, pelo cinema e por aí afora. De repente, a gente deixa de ser marginal prá se transformar no símbolo da alegria, da descontração, do encanto especial do povo dessa terra chamada Brasil. É nesse momento que Oropa, França e Bahia são muito mais Bahia do que outra coisa. É nesse momento que a negrada vai prá rua viver o seu gozo e fazer a sua gozação. Expressões como: botá o bloco na rua, botá prá frevê (que virou nome de dança nas fervuras do carnaval nordestino), botá prá derretê, deixa sangrá, dá um suó, etc são prova disso. É também nesse momento que os não-negros saúdam e abrem passagem para o Mestre-Escravo, para o senhor, no reconhecimento manifesto de sua realeza. É nesse momento que a exaltação da cultura americana se dá através da mulata, desse “produto de exportação” (o que nos remete a reconhecimento internacional, a um assentimento que está para além dos interesses econômicos, sociais, etc. embora com eles se articule).”

 

 

Fabíola Menezes de Araújo, Professora do Estado do Rio de Janeiro. Possui graduação e mestrado em Filosofia pela UERJ, doutorado em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Atualmente se dedica à construção de um Canal de Filosofia no YouTube intitulado "a Cabocla". É integrante do grupo de criação literária "Laboratório Alfabético".

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