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A crise climática e o Parecer Consultivo nº 32/2025 da CIDH – um marco jurídico para a América Latina

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    Revista Pub
  • 3 de ago.
  • 7 min de leitura

-Renata Fabiana Santos Silva-


“Você nos deu esta terra / florescente e brilhante... / mas o ser humano, sem olhos e sem coração, / só pensa em viver bem com os produtos da terra." Com esses versos, o poema “Arawi Pachamama” (Mãe Terra), de Toribio Rocabado Castro, expressa, com a sabedoria dos ancestrais andinos, a relação entre o ser humano e a natureza, reconhecendo a generosidade da Mãe Terra e a postura egoísta do ser humano. A deterioração do planeta perpetrada pelos seres humanos é descrita poeticamente como esquecimento, mas também consiste em uma tragédia jurídica, política, econômica, social e ética que se materializa na crise climática do nosso tempo.


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A emergência climática constitui uma das mais severas ameaças globais à estabilidade do planeta, exigindo da sociedade contemporânea uma profunda reflexão sobre seus modelos de desenvolvimento e governança. O documento final da Conferência Rio +20, “o futuro que queremos”, já evidenciava esta preocupação, na medida que constatava que as mudanças climáticas seriam “um dos maiores desafios do nosso tempo”[1].


Os impactos das mudanças climáticas — como inundações, secas, incêndios, escassez hídrica e deslocamentos forçados — atingem com maior severidade os grupos mais vulneráveis, acentuando desigualdades históricas. Relatórios recentes, como os publicados pela ONU – Panorama Regional de Segurança Alimentar e Nutrição 2024[2] – e pela Organização Meteorológica Mundial (OMM) –  Estado do Clima na América Latina e no Caribe 2024[3]  , demonstram que a América Latina é uma das regiões mais afetadas por esses fenômenos, ainda que seja uma das menos responsáveis pelas emissões globais de gases de efeito estufa.


Cabe destacar que os dados do relatório Estado do Clima na América Latina e no Caribe 2024, da OMM, registram que o ano de 2024 foi marcado por grandes incêndios no Chile, com 134 mortes registradas. Também indica que na bacia amazônica, neste mesmo ano, a seca foi uma das mais intensas da história, na qual o rio Negro atingiu em outubro o nível recorde de apenas 12,11 metros. Além disso, o relatório não deixa de citar o maior desastre meteorológico da América do Sul, as inundações provocadas pelas chuvas excepcionais no Estado do Rio Grande do Sul, no Brasil, que deixaram um saldo de 182 mortos e mais de 420 mil pessoas desalojadas. O ano de 2025 não foi muito diferente, revelando o agravamento da crise climática, com novas enchentes no Rio Grande do Sul[4] e as cheias históricas nos rios amazônicos[5], por exemplo. Estes fatos, que não isolados, demonstram a fragilidade estrutural dos sistemas institucionais de resposta a desastres e evidencia a insuficiência das estratégias de enfrentamento atualmente adotadas.


Este é um cenário desafiador para a América Latina, considerando os problemas já enfrentados pelos países da região, como as desigualdades sociais, violência urbana, desemprego, pobreza extrema etc. A crise climática agrava estas questões, exigindo dos Estados uma abordagem mais equitativa e alicerçada em estândares de direito internacional humano.


Nesse contexto de urgência, o Parecer Consultivo nº 32/2025 da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)[6] representa um marco interpretativo importante no Sistema Interamericano, ao reconhecer, com base no Direito Internacional dos Direitos Humanos, as obrigações específicas dos Estados frente à emergência climática. Segundo a Corte, “los desastres climáticos pueden derivar en consecuencias como los daños a la infraestructura, la suspensión de servicios básicos, la destrucción de viviendas y la pérdida de empleos e ingresos; también pueden conducir a la interrupción de los modos de vida y a la migración y el desplazamiento involuntarios”.


Podemos indicar três eixos fundamentais do parecer: (I) as obrigações estatais frente à emergência climática; (II) o reconhecimento dos direitos ao ambiente e ao clima saudáveis; e (III) o fortalecimento dos direitos de acesso e do dever de combate à desinformação climática.


No que diz respeito às obrigações dos Estados, a Corte aponta o dever de respeito aos direitos humanos, que exige abstenção de atos que provoquem retrocessos ou dificultem a proteção desses direitos em contexto climático. Conectada a essa obrigação está a de garantia, que impõe aos Estados o dever de adotar todas as medidas necessárias para reduzir os riscos derivados da degradação do sistema climático, com base nos princípios de prevenção e precaução. Há também a obrigação de adequação normativa, que exige não apenas a revogação de normas incompatíveis com os direitos humanos, mas também a expedição de normas e o fomento de práticas que assegurem esses direitos neste contexto de emergência climática. A recente aprovação do chamado “PL da Devastação” [7] pelo Congresso Nacional brasileiro, nesse aspecto, caminha na direção oposta ao que preconiza a Corte.


Outro ponto de destaque é o dever de cooperação, pilar da Organização dos Estados Americanos (OEA) e previsto na Declaração do Rio de 1992. A Corte salienta que a cooperação internacional, no enfrentamento da crise climática, deve levar em conta as responsabilidades comuns, porém diferenciadas, como já consagrado no Acordo de Paris.


No segundo eixo, o parecer reconhece, no âmbito do Sistema Interamericano, os direitos ao ambiente e ao clima saudáveis como autônomos e protegidos pelo artigo 26 da Convenção Americana. Um “clima sano” — afirma a Corte — é aquele “libre de interferencias antropogénicas peligrosas para los seres humanos y para la Naturaleza como un todo”. Tal compreensão expande a noção de proteção ambiental para abarcar os sistemas que integram o ambiente, como o sistema climático, evidenciando que sua preservação é condição prévia para o exercício dos demais direitos humanos.


A Corte ainda ressalta que os efeitos negativos da crise climática recaem com intensidade desproporcional sobre os países e pessoas mais pobres. Portanto, aqueles que estão em um contexto de exclusão social e econômica são os que mais sofrem com os efeitos das mudanças climáticas e possuem menor capacidade de adaptação a estas mudanças extremas. A pobreza, nesse contexto, é tanto causa quanto consequência do agravamento climático, exigindo dos Estados uma abordagem mais equitativa e comprometida com a erradicação das desigualdades estruturais.


O terceiro eixo do parecer aborda os direitos de acesso — à informação, à participação e à justiça — como instrumentos fundamentais da democracia ambiental. Sobre o acesso à justiça climática, este precisa ser compreendido não apenas como meio para a reparação de danos aos diretamente afetados, mas também como um mecanismo hábil para exigir a implementação de medidas de governança climática por governos e empresas, protegendo direitos fundamentais das gerações presentes e futuras. Os direitos de acesso à informação e participação em assuntos climáticos são apontados como instrumentos indispensáveis para a exigibilidade de direitos e a consolidação de políticas climáticas efetivas, com destaque para a necessidade de atuação coordenada entre poder público e sociedade civil. A Corte enfatiza que a desinformação climática é um “de los desafíos más graves que enfrenta actualmente la comunidad internacional” e destaca, ainda, a importância de valorizar os saberes dos povos originários e tradicionais, cuja experiência e conexão com a natureza são essenciais à construção de respostas eficazes.


O Parecer Consultivo nº 32/2025 da CIDH constitui, em definitiva, um marco normativo relevante e estratégico para a promoção da justiça climática na América Latina, fornecendo parâmetros jurídicos robustos para orientar políticas públicas, decisões judiciais e reformas legislativas, como também contribui para a atuação da Sociedade Civil. Sua força interpretativa se soma a outras manifestações internacionais, como os pareceres recentes da Corte Internacional de Justiça (CIJ) [8] e do Tribunal Internacional do Direito do Mar (ITLOS)[9], que reconhecem obrigações estatais no enfrentamento das mudanças climáticas.


A força simbólica e jurídica desses três pronunciamentos contemporâneos eleva o dever de ação climática dos Estados a uma dimensão não apenas jurídica, mas também ética e civilizatória. Para a América Latina, particularmente vulnerável e historicamente menos responsável pela crise, tais pronunciamentos oferecem bases legítimas para exigir responsabilidade, reparação e transformação. Como nos adverte a poesia quéchua, esquecer a Mãe Terra custa caro. Estamos, efetivamente, diante de um momento histórico em que o Direito Internacional reafirma seu compromisso com a dignidade humana frente aos desafios da crise climática, respeitando o legado ofertado pela Mãe Terra. 


Referências

BINDÁ, Ruthiene. Extremos nos rios da Amazônia acendem alerta para impactos das mudanças climáticas (22.07.2025). Portal G1. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2025/07/22/extremos-nos-rios-da-amazonia-acendem-alerta-para-impactos-das-mudancas-climaticas.ghtml. Acesso em 24.07.2025.

 

FAO, IFAD, PAHO, UNICEF & WFP. Latin America and the Caribbean – Regional Overview of Food Security and Nutrition 2024: Statistics and trends. Santiago: 2025. Disponível em: https://doi.org/10.4060/cd3877en. Acesso em 24.07.2025.

GUEVANE, Eleutério. Corte Internacional de Justiça: países têm obrigação de reduzir emissões de CO2 (23.07.2025). ONU NEWS – Clima e Meio Ambiente. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2025/07/1850532. Acesso em: 24.07.2025.

 

O GLOBO. Chuvas no Rio Grande do Sul deixam 4,5 mil pessoas fora de casa e afetam 90 cidades (19.06.2025). Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2025/06/19/chuvas-no-rio-grande-do-sul-deixam-29-mil-pessoas-fora-de-casa-e-afetam-86-cidades.ghtml. Acesso em 24.07.2025.

 

OMM. Estado del Clima en América Latina y Caribe 2024. OMN- n 1367. Ginebra: 2025. Disponível em: https://library.wmo.int/idurl/4/69463. Acesso em 24.07.2025.

 

VITÓRIA, Beatriz. ‘PL da Devastação’ aprovado no Senado: o que muda no licenciamento ambiental? (22.05.2025). Repórter Brasil. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2025/05/pl-da-devastacao-aprovado-no-senado-o-que-muda-no-licenciamento-ambiental/. Acesso em 24.07.2025.


[2] Cfr. FAO, IFAD, PAHO, UNICEF & WFP. Latin America and the Caribbean – Regional Overview of Food Security and Nutrition 2024: Statistics and trends. Santiago: 2025. Disponível em: https://doi.org/10.4060/cd3877en. Acesso em 24.07.2025.

[3] Cfr. OMM. Estado del Clima en América Latina y Caribe 2024. OMN- n 1367. Ginebra: 2025. Disponível em: https://library.wmo.int/idurl/4/69463. Acesso em 24.07.2025.

[4] Vid. O GLOBO. Chuvas no Rio Grande do Sul deixam 4,5 mil pessoas fora de casa e afetam 90 cidades (19.06.2025). Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2025/06/19/chuvas-no-rio-grande-do-sul-deixam-29-mil-pessoas-fora-de-casa-e-afetam-86-cidades.ghtml. Acesso em 24.07.2025.

[5] Vid. BINDÁ, Ruthiene. Extremos nos rios da Amazônia acendem alerta para impactos das mudanças climáticas (22.07.2025). Portal G1. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2025/07/22/extremos-nos-rios-da-amazonia-acendem-alerta-para-impactos-das-mudancas-climaticas.ghtml. Acesso em 24.07.2025.

[6] Documento disponível na integra em: https://corteidh.or.cr/tablas/OC-32-2025/. Acesso em 24.07.2025.

[7] Vid. VITÓRIA, Beatriz. ‘PL da Devastação’ aprovado no Senado: o que muda no licenciamento ambiental? (22.05.2025). Repórter Brasil. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2025/05/pl-da-devastacao-aprovado-no-senado-o-que-muda-no-licenciamento-ambiental/. Acesso em 24.07.2025. 

[8] Vid. GUEVANE, Eleutério. Corte Internacional de Justiça: países têm obrigação de reduzir emissões de CO2 (23.07.2025). ONU NEWS – Clima e Meio Ambiente. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2025/07/1850532. Acesso em: 24.07.2025.



Renata Fabiana Santos Silva é Procuradora do Estado da Bahia. Doutora em Direito pela Universidade de Sevilha (Espanha). Mestra em Direito Público pela Universidade de Sevilha (Espanha). Pós-graduada em Fundamentos de Direito Público Global pela Universidade Da Corunha. Membro do IBAP.



1 comentário


carlosmares
03 de ago.

Parecer consultivo extremamente importante. Reconhece a natureza com sujeito de direito. Isso nos remete a uma reflexão sobre o próprio direito moderno e sua subjetividade individual. Parabéns Renata.

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