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“A CONSTITUIÇÃO NÃO TEM CULPA” E A DEMOCRACIA CONSTITUCIONAL TUDO DEVE AO POVO BRASILEIRO

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-PAULO TORELLY-



Que diríamos de um mau jogador que apresentasse como pretexto de seus insucessos o fato de não poder pegar a bola com a mão? Ou do pretexto de um bom jogador que lamentasse ter perdido por tocar a bola apenas com os pés ou com a cabeça? Diríamos que estariam buscando nas regras do jogo o que as regras não contêm: o segredo da vitória.


Norberto Bobbio






A epígrafe de NOBERTO BOBBIO, lançada em texto de 1978 alusivo aos 30 anos da Constituição italiana com o mesmo título adotado no início do longo e analítico título do presente texto (In: As ideologias e o poder em crise, 1990, p. 189), define bem o equívoco de todos que desgostam de passagens do texto da Constituição do Brasil, editada e legitimada no esforço de superação da ditadura militar, mas que infelizmente também ignoram – diversamente do presente redator e da ampla maioria do povo brasileiro – que a ninguém é dado desconhecer que a virtude da Carta Cidadã reside exatamente no dado de que não agrada a todos em tudo e que há caminhos legítimos para a mudança do texto e de suas normas. Algo válido para os brasileiros e até mesmo para os “amigos do Brasil”, tal como o professor norte-americano que defendeu o parlamentarismo e uma nova constituinte – no Brasil e não nos EUA (vide: AQUI) – e confunde “crise constituinte” com “crise constitucional” (BONAVIDES, 2011, pp. 192-193) provocada por tantos que desconhecem o significado da expressão “autocontenção”, mas sobretudo parecem ainda ignorar que quem defendeu, preservou e salvou a democracia brasileira em 2022 foi o povo brasileiro dentro da tradição e da cultura presidencialista (vide: AQUI e AQUI).


Sem pretender conceber um paralelo entre realidades distintas, cabe lembrar que todo texto legal é incompleto e imperfeito, e no Brasil, assim como noutras partes do mundo, o texto constitucional expressa um compromisso, sendo notório que em 1988 se estabeleceu, pela primeira vez na história, um texto codificado, dogmático, analítico, rígido e formalmente promulgado com inequívoco compromisso de inclusão social. Um texto aberto e que colocou o Brasil em igualdade institucional com as maiores democracias sociais do mundo com explícito fundamento material, conforme consta no art. 1° da Carta Maior, nos valores da soberania, da cidadania, da dignidade da pessoa humana, do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político. Compromissos que desde a origem desagradaram segmentos conservadores, que chegaram a ironizar afirmando que “o papel aceita tudo” (REVISTA DE DIREITO do TJRJ, 1992, vol. 10, pp.40-56), pelo que hoje ficam perplexos diante da reação até mesmo em face dos acertos do STF ao enfrentar o “golpismo”. Uma corte que nos últimos tempos tem reescrito o texto da Constituição sob inequívoca hegemonia da lex mercatoria ao ponto de dizer o que pode – goza de eficácia jurídica – e o que não pode ao sabor das circunstâncias, tal como na autorização para a venda de empresas públicas sem lei e sem licitação na esteira do último impeachment presidencial, desconsiderando a segurança jurídica posta pelo próprio STF em tempos de redemocratização (ADI 234, r. Min. NÉRI DA SILVEIRA, julgada em 22/06/95), o que fazem até mesmo pelo fundamento de que a Constituição de 1988 foi escrita antes da queda do Muro de Berlim (Medida Cautelar na ADI 5624, julgada em 06/06/2019, contrariando o voto do relator, Min. RICARDO LEWANDOWSKI, que confirmara em decisão liminar a jurisprudência firmada na ADI 234).


O exemplo da declaração de “constitucionalidade” da Medida Provisória 936/2020, editada pelo hoje inelegível – e inominável – em plena Pandemia do COVID-19 para permitir a redução de salários sem a realização de “convenção ou acordo coletivo” (exigência constante no texto do inciso VI do art. 7° da Constituição), placidada pelo Plenário do STF na ADI 6363, quando também não referendou a medida cautelar deferida pelo Min. RICARDO LEWANDOWSKI, dispensa maiores comentários. Também toma destaque, dentre outros, o inusitado entendimento fixado pelo STF com Repercussão Geral, ou seja, efeito vinculante para todos os órgãos do Poder Judiciário, no Recurso Extraordinário 760931/DF (r. Min. FUX, DJ-e 11/09/17), com fundamento apenas em argumentos e teses de natureza – e suposta autoridade – econômica para permitir a terceirização de mão de obra sem qualquer limite e, portanto, até mesmo para as atividades fins das empresas, o que contribuiu e segue contribuindo para a precarização ainda maior das relações de trabalho e definitivamente pretende revogar os preceitos constitucionais que determinam um equilíbrio entre trabalho e capital ao fundamentar a ordem econômica “na valorização do trabalho e na livre iniciativa” (Constituição, art. 1°, IV, e 170, “caput”). Tais temas são aqui referidos apenas a título de exemplo, pois nada foi mais nefasto para o Brasil do que a antecedente viabilização de um “impeachment” sem crime de responsabilidade e o eloquente silêncio de nossa Suprema Corte até a decretação da prejudicialidade do Mandado de Segurança 34.371, impetrato por DILMA ROUSSEFF (vide também: MS 34193 e MS 34441), o que se deu com o julgamento do remédio constitucional apenas após o término do período de mandato da presidenta eleita democraticamente pelo povo brasileiro.


Cabe sempre lembrar a lucidez do filósofo político inglês inspirador do Estado moderno, pois, no texto do Capítulo XIII de sua obra magna, o Leviatã, THOMAS HOBBES lembra que: “Onde não há poder comum não há Lei, e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são duas virtudes cardeais. A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito. Se assim fosse, poderiam existir num homem que estivesse sozinho no mundo, do mesmo modo que seus sentidos e paixões. São qualidades que pertencem aos homens em sociedade, não na solidão” (HOBBES, 1977, p. 110).


Com razão NORBERTO BOBBIO lembrou que as regras do jogo não podem ser culpadas pelas escolhas certas ou erradas do eleitorado soberano, mas o que dizer de quem mudou as regras para destituir um governo e impedir o candidato favorito de concorrer? Algo que o Comitê de Direitos Humanos da ONU em tempo advertiu ser incompatível com um Regime Democrático (vide: AQUI).


LAURENCE TRIBE, emérito professor da Universidade de Harvard e para muitos o maior constitucionalista norte-americano vivo, escreveu um belo livro em parceria com JOSHUA MATZ sobre o instituto do impeachment durante o mandato de DONALD TRUMP: “To end a presidence: the power of impeachment.” Mesmo diante de provas robustas da materialidade de diversos crimes de responsabilidade do então presidente dos EUA e estando, conforme registram no Prefácio da obra, “entre os advogados que o processaram por aceitar emolumentos ilegais” e sendo oposição “em muitas outras frentes legais e políticas”, os autores tiveram a sabedoria de refletir e ponderar a imprescindibilidade de “discussões responsáveis sobre o término de uma presidência” tendo presente que “o resultado colateral de um impedimento provavelmente será significativo”, pelo que colocaram “três perguntas vitais a serem feitas”: “(1) A remoção é permitida? (2) A remoção provavelmente terá sucesso? e (3) A remoção vale o preço que a nação pagará? Qualquer pessoa que defenda o impedimento de um presidente deve ser capaz de explicar por que todas essas três considerações sustentam essa decisão. Infelizmente, muitos escritos sobre impeachment são insuficientes. Mais frequentemente do que não os escritores adotam o que chamamos de estilo ‘Coliseu Romano’ de análise do impeachment. Na Roma antiga, multidões faziam julgamentos sobre gladiadores derrotados, votando com o polegar para cima (poupe-o) ou com o polegar para baixo (mate-o). Esta era uma determinação de sim ou não que ocorria em um único momento e em resposta a um único evento. Ao pronunciar sua sentença, a multidão não tinha que contar com quaisquer consequências contínuas de sua decisão no mundo em geral” (TRIBE; MATZ, 2018, p. XIV).


Ocorre que o fascismo sempre estará latente em qualquer sociedade complexa, mas nunca foi a resultante de escolhas livres e soberanas do povo brasileiro em sua ainda jovem democracia constitucional, todavia hoje é inegável que no mínimo ganhou vigor como efeito secundário do desenfreado ativismo judicial. O Brasil, por conseguinte, necessita com urgência de um Tribunal Constitucional (vide: AQUI e AQUI), uma instituição defendida pela OAB de Raymundo Faoro e que infelizmente não foi acolhida pela Assembleia Nacional Constituinte, mas que a qualquer tempo pode ser concebida pelo poder constituinte reformador para que o texto da Carta Maior de 1988 ganhe plena efetividade. Ainda com socorro na sabedoria de LAURENCE TRIBE e JOSHUA MATZ: “Não há dúvida de que uma campanha de impeachment bem-sucedida infligiria um trauma nacional duradouro. Durante meses ou anos, a política passaria do governo comum para um grande inquérito sobre os supostos maus feitos do presidente. Com grandes apostas possíveis, os interesses políticos e facções de todos os lados não teriam nada de volta. As inimizades resultantes, o cinismo e o desencanto com a democracia poderiam persistir por gerações” (TRIBE; MATZ, 2018, p. XIII).


Aqui reside a imprescindível distinção acima referida entre crise constitucional e crise constituinte, bem delineada por um dos maiores constitucionalistas que o Brasil conheceu, pois as lições do saudoso mestre PAULO BONAVIDES (1925-2020) permitem diferenciar estadistas e juristas diante de descompromissados ou mesmo inconsequentes com os fundamentos do Estado Democrático de Direito, dado que: “A crise constitucional – temos reiteradamente asseverado – é a crise de uma Constituição, ou de modo mais frequente e preciso, de um determinado ponto da Constituição. Se ela não abrange toda a Constituição, basta, para removê-la, utilizar o meio de reforma ou revisão; um recurso ou remédio jurídico que a Constituição mesma oferece, contido no chamado poder de reforma constitucional. Se a crise porém se manifesta mais ampla e profunda ou tem dimensão que excede o habitual, é de todo o ponto conveniente ter recurso ao poder constituinte de primeiro grau: faz-se uma nova Constituição para recompor as bases da legitimidade e auferir um governo estável” (BONAVIDES, 2011, pp. 192-193). Uma distinção que, enquanto o Brasil não conta com um Tribunal Constitucional, cobra a necessária observância da clássica lição de EMIL BOUTMY, em seus Estudos de direito constitucional, ao analisar as relações entre os poderes no sistema presidencialista concebido em 1787 nos EUA: “A convenção de Philadelphia, imbuida até á superstição da theoria de Montesquieu, poz todo o cuidado em conservar separados os poderes. Os caminhos que lhes traçou são invariavelmente parallelos; não se cruzam em ponto algum. Podem vêr-se, ameaçar-se com o olhar ou com a voz longiqua; mas não ha encruzilhada em que se possam encontrar, travar-se corpo a corpo e empenhar lucta que deixe a um delle a superioridade e a ultima palavra” (BOUTMY, 1888, pp. 78-79, texto original da 2° edição brasileira – grifamos).


Que a anunciada “unidade dos integrantes do STF” decorrente das ameaças ao Regime Democrático, referida pelo novo presidente da Suprema Corte em sua recente solenidade de posse, sirva para assegurar uma maior reflexão nas decisões do sodalício na busca de coerência e estabilidade das normas constitucionais, o que pressupõe a observância da supremacia e da unidade da Constituição em sintonia com os princípios da soberania popular e da independência entre os poderes (Constituição do Brasil, arts. 1° e 2°). A democracia constitucional é incompatível com a supremacia de qualquer dos poderes da república e, no Brasil, há mais de cem anos, com a renitente pretensão de saudosos da restauração monárquica de (auto)conceber um Poder Moderador.


 

Paulo Torelly é advogado, Procurador do Estado do RS, associado do IBAP e Doutor pela Faculdade de Direito da USP.



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