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Fairy Tale Brasileiro

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-PATRÍCIA BIANCHI-



Era uma vez um reino encantado chamado Brasil. Esse reino é representado por um vasto país localizado na América do Sul, com extensões da Bacia Amazônica, até os vinhedos e as gigantescas Cataratas do Iguaçu. Um país situado a oeste do meridiano de Greenwich, e cortado ao norte pelo paralelo do Equador. Quem lá habita, vive na zona intertropical, zona temperada sul, e sob o Trópico de Capricórnio.


Esse lugar, que já foi um encanto natural na época que foi governado por seus povos originários, hoje é celeiro de projetos político-econômicos (des) articulados, desde a época do Império. No país, como na maior parte dos demais reinos do globo, vigora um sistema chamado “capitalista”, instituído por volta do século XV. Um substituto do sistema feudal da Idade Média, onde havia três classes sociais: a nobreza, o clero e os servos. E é nesse cenário que ficaram presos os contos de fadas. Será?


Bom. Vejamos. No reino Brasil tem-se um sistema econômico, assim como na Idade Média e Moderna, que é propício à concentração de riquezas. Nesse sistema há duas classes sociais principais: os capitalistas (donos dos meios de produção) e os proletários (trabalhadores), estes, a gigante maioria, que vendem sua força de trabalho em troca de salários. Essas classes se apresentam profundamente diferenciadas, e mantêm-se quase inalteradas em termos de possibilidade de mobilidade dentro do sistema. Isso como antigamente e alhures, apesar da tão sonhada realidade meritocrática.


Aliás, a ideia de meritocracia faz parte de um encantamento moderno, desvendado pelo inglês Michael Young, em seu livro The Rise of the Meritocracy, no âmbito de uma realidade distópica, onde os “mais inteligentes” ou aptos adquirem a melhor educação e têm acesso aos melhores empregos, e os “menos inteligentes” ficam com os restos. Mas Young observou que esse sistema meritocrático contém distorções, e, em razão disso, seria um sistema apenas “aparentemente justo” com potencial, inclusive, de produzir e agravar injustiças.


Ainda focando em nosso sistema encantado, no reino Brasil economicamente vigora um forte modelo que favorece as instituições financeiras e grandes grupos empresariais. Um sistema que permite a produção de riquezas mesmo por especulação, onde a acumulação do capital chegou a níveis nunca vistos antes. A influência neoliberal foi particularmente sentida no país na década de 80, seguindo as proposições do que se estabeleceu no Consenso de Washington, que produziu regras básicas, que compuseram um “receituário” aos países em desenvolvimento, a fim de se promover os seus “ajustamentos macroeconômicos”.


Esse fenômeno magnífico é comum em países da Ásia, como diria Shrek, far, far away. Conhecido como “haboob”, ele se apresenta como um “rolo compressor” de sujeira que pode chegar a até 10 quilômetros de altura.

Assim como o receituário produzido no Consenso de Washington, hoje temos um paralelo no reino Brasil, estrelado pela seguradora de saúde Prevent Senior, que também promoveu alteração de prontuários médicos para maquiar seus reais interesses; realizou pesquisa médica sem consentimento de pacientes (aos moldes das investidas da inteligência Norte Americana aqui no Brasil); e distribui medicamentos para tratamento precoce de doença, sem qualquer eficácia comprovada. A propósito, tanto no caso das políticas econômicas, quanto no tratamento da Covid-19, a ineficácia foi comprovada no mundo real. Ainda que tenhamos finos representantes de Belas Adormecidas e Príncipes Encantados, completamente alheios à realidade brasileira, que insistem em repetir o contrário.



No inacabado livro que conta a sua história, o reino Brasil apresenta um extenso lastro de desigualdade social. Atualmente, conforme índice de Gini, estamos entre os dez mais desiguais do mundo, e temos a 2ª maior concentração de renda entre os mais de 180 países. Em termos de política econômica, aqui não se vê nem neoliberalismo puro, nem keynesianismo eficiente. Somos uma convidativa (às elites nacionais e ao capital estrangeiro) máquina encantada de acumulação de riquezas. Mas o sistema também produz a concentração do poder econômico e, por fim, ainda gera grandes externalidades negativas, ou seja: efeitos negativos das ações de empresas e governos, que não são assumidos ou internalizados, mas são socializados ou divididos com toda a população, como a poluição, por exemplo.




E por falar em externalidades negativas, em dias recentes, como num passe de mágica, vimos uma cinematográfica “tempestade de areia” em cidades dos estados de São Paulo e Minas Gerais. Tempestade essa avaliada pelo monitoramento de secas da Agência Nacional de Águas (ANA) entre as piores já existentes, tendo como uma das condicionantes uma seca “excepcional” e “extrema”. Especialistas já alertaram que esse encantamento custará caro à agricultura, à pastagem, à saúde das pessoas, causando especialmente perdas de cultura e escassez de água generalizada nas regiões atingidas e próximas.


Esse fenômeno magnífico é comum em países da Ásia, como diria Shrek, far, far away. Conhecido como “haboob”, ele se apresenta como um “rolo compressor” de sujeira que pode chegar a até 10 quilômetros de altura. Aqui no país, o fenômeno vem adquirindo maior dimensão e freqüência em razão do também aumento de tempestades, queimadas e temperaturas extremas. Segundo a meteorologista Estael Sias, “São vários fenômenos extremos que parecem não estar conectados, mas estão dentro do mesmo fluido, que é a atmosfera. É a atmosfera buscando um equilíbrio com esse acréscimo de 1,5ºC (aumento de temperatura estimado até 2030 em relação ao nível pré-industrial, conforme divulgado em relatório do IPCC).”


Numa outra dimensão, assim como nos contos de fadas, gostaríamos que fosse mentira, mas no reino Brasil é real. Na semana passada, um chamado Movimento Brasil Competitivo (MBC) - que inclui as empresas Gerdau, Google, Amazon, Microsoft, SAP, Itaú, JBS, Globo entre outras -, pediu ao atual Ministro da Economia do reino a aprovação de um “Pacote Antiambiental”. O pacote inclui extinguir a lista do Conselho Nacional do Meio Ambiente que define casos em que se exige o estudo prévio de impacto ambiental (EIA); e a sugestão de “dispensar de licenciamento ambiental a reutilização de rejeito e estéril de mineração”, o que tem o potencial enorme de causar ainda mais danos às comunidades que já convivem com um processo de licenciamento falho e quase que inteiramente cooptado por mineradoras.


Assim, em razão desse processo perverso que nos rouba a possibilidade de uma realidade melhor, e uma perspectiva de futuro salutar, o planeta entrou em déficit de recursos naturais desde 1970, segundo a Global Footprint Network, organização internacional pioneira em calcular a chamada pegada ecológica.

O citado Movimento utiliza, como toda boa feitiçaria, palavras mágicas como “Projeto de Redução do Custo Brasil”; diz defender uma “economia sustentável”; e se diz em defesa de “uma política nacional de sustentabilidade social, ambiental e econômica”. Como não se aprovar um projeto com tamanho encanto nas palavras? Contudo, no mundo real, o Movimento intenta uma ação, acompanhada de uma gestão, criminosa do meio ambiente. Envolto a essa cortina de fumaça, típica dos contos mágico-argumentativos com truques lingüísticos e ficções retóricas, o presidente do Conselho Superior do Movimento, Jorge Gerdau, se disse “extremamente otimista” com o lançamento da agenda do Movimento.


Lembro, apenas, aos habitantes do Reino, que o lucro líquido da Gerdau no primeiro trimestre de 2021 aumentou incríveis 1.016% no primeiro trimestre de 2021, em comparação com o mesmo período de 2020, chegando a R$ 2,4 bilhões. Já o deputado federal Alexis Fonteyne (Novo/SP), participante do Movimento, e que preside a “Frente Parlamentar Pelo Brasil Competitivo”, fala em “nortear ações em favor do Brasil mais produtivo e competitivo que queremos!” Já em outra oportunidade, Fonteyne declarou um discreto patrimônio de R$ 28,8 milhões ao TSE em 2018.


Assim, em razão desse processo perverso que nos rouba a possibilidade de uma realidade melhor, e uma perspectiva de futuro salutar, o planeta entrou em déficit de recursos naturais desde 1970, segundo a Global Footprint Network, organização internacional pioneira em calcular a chamada pegada ecológica. No reino Brasil, particularmente, onde o governo parece ter pressa na degradação dos seus recursos ambientais, vê-se, como num passe de mágica, o crescimento de lucro, sobretudo das grandes empresas; o enriquecimento de poucos agentes; e um aprofundamento acelerado da crise ambiental, trazendo prejuízos sócio-ambientais a toda população do país.


Mas esse feitiço, articulado por meio de uma política econômica irresponsável e incompetente, evoca a culpa dos próprios enfeitiçados. Por isso, você se sentirá culpado pelos prejuízos à sua própria saúde, e talvez até pela sua existência. Em razão disso, pedirão a você, sem corar a face, para que troque suas lâmpadas por outras mais eficientes, que dirija menos o seu veículo, e até que tome banhos frios. Tudo isso sem, de fato, limitar o poder das empresas ou melhor regular a economia.


Acredite! Vão esconder de você que mesmo que cada pessoa, mediante ação individual, nos Estados Unidos fizesse tudo o que se sugere, as emissões de carbono nos EUA teriam uma redução de apenas 22%, e o consenso científico é de que as emissões devem ser reduzidas, em todo o mundo, pelo menos em 75%. Não que ações individuais não sejam relevantes, mas elas não têm o condão de mudar o atual cenário crítico em termos socioambientais. Além disso, a solução precisa envolver os principais degradadores e consumidores de recursos ambientais.


Não se verá na televisão, ou em nenhum portal mágico, que a agricultura irrigada, o abastecimento urbano e a indústria de transformação são responsáveis por 85% das retiradas de água em corpos hídricos no Brasil. E que, apesar do aumento progressivo da fome no país, a maior parte do produto dessa agricultura nem permanece por aqui, seguindo para exportação. E disso se depreende que - em meio à crise hídrica que ano a ano se aprofunda - a elite agro exportadora do país (e não os pequenos e médios agricultores que nos abastecem a mesa) exporta nossa água!


Apesar desse cenário, não há reações suficientes no reino Brasil por parte da sociedade civil, já que o (des) governo e o grande capital econômico parecem não ver quase nenhum freio pelo caminho. A acumulação ilimitada de capital, a mercantilização de tudo, a super-exploração do trabalho e da natureza prosseguem, com ou sem pandemia, minando as bases de uma sustentabilidade futura.


Por tudo isso, num reino onde os poderosos magos-parasitas fazem a festa, talvez tenhamos que desenvolver antídotos e estratégias mais eficientes para nos proteger. Sobretudo num reino onde mesmo a satisfação das necessidades básicas é negada à grande parte da população, talvez o nosso tipo desenvolvimento enquanto país deva ser voltado para algo mais humano, dentro de uma ética ecológica de respeito à vida e à dignidade que ela requer. Na prática, talvez os investimentos devessem ser mais ligados à infra-estrutura, ao saneamento, e outras ações verdadeiramente mais sustentáveis ecologicamente, com a implementação de energias renováveis e expansão da produção agroecológicas, por exemplo.


Assim como nos fairy tales mais obscuros, preferiríamos que não fosse verdade, mas não apenas as maçãs estão envenenadas, e mesmo o Reino da Branca de Neve era mais seguro que o nosso. Hoje nossos solos, nossos recursos hídricos, e, por conseguinte, nós mesmos estamos nos permitindo envenenar e adoecer. Além disso, a extrema pobreza (família com renda per capita de até R$ 89 mensais) no país cresce a cada mês, e nos derruba enquanto sociedade. Em dezembro de 2018, eram 12,7 milhões na pobreza extrema. Esse número chegou a 14,7 milhões em junho de 2021. Há ainda 2,8 milhões de pessoas na (simples) pobreza, ou com renda per capita de R$ 90 a R$ 178 mensais. Como se vê, nossos líderes e seus aliados econômicos, com suas governanças narcísicas, fazem inveja a qualquer Rainha Má dos contos de fadas dos reinos encantados.

or fim, há uma emergência no desfazimento da maldição a qual o reino Brasil está envolto. Ela precisa ser quebrada para que possamos olhar a realidade, para que tenhamos condições de construir um país que merecemos. Precisarmos parar de agir como se algo de bom fosse cair dos céus, ou que fosse ser passivamente concedido ao toque de uma varinha de condão. Coragem a todos nós! Para vermos a realidade e iniciarmos a nossa resposta a esse sistema ecológico e social injusto. Vamos crescer de forma coletiva e organizada. Olharmo-nos como cidadãos merecedores de dignidade enquanto Nação, e não mais sonhar e viver num reino medieval que não mais deveria existir.

 

Patrícia Bianchi é Doutora pela UFSC. Pós-doutora pela USP e pesquisadora na área ambiental.


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