Os acertos do filósofo do nazismo
- Revista Pub
- 15 de mai.
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-FLÁVIA D'URSO-
Carl Schmitt foi um filósofo, jurista e teórico político alemão. Membro proeminente do Partido Nazista é considerado um dos mais significativos e polêmicos especialistas em direito constitucional e internacional do século XX. Não obstante a inegável envergadura de sua produção teórica, a adesão ao regime de Hitler, muito compreensivelmente, o tornou um intelectual proscrito.
Seria, nessa medida, oportuno um resgate de seu pensamento?
Vejamos.

Em prefácio da edição italiana Le Categorie del Político Carl Schmitt sublinha que a primeira metade do século XX foi um período em que a Europa veio gradualmente a perder sua até então incontestável superioridade política e intelectual. Nesta conjuntura, as grandes teorias e os “conceitos clássicos” da filosofia política moderna começam a ser fortemente questionados, pois foi justamente esta modernidade filosófica a grande responsável pela hegemonia do velho continente e que estava, catastroficamente, desmoronando. Mediante a crise dos velhos modelos políticos europeus ganhava força o pensamento liberal, importado dos Estados Unidos da América pela burguesia americana, a quem a mercantilização dos poderes instituídos era bastante conveniente.
Esse processo de despolitização levará os Estados europeus a se reduzirem a grandes máquinas administrativas, com funções e poderes essencialmente econômicos, pondera Carl Schmitt. Tornara-se então imperioso redefinir os conceitos-base de uma teoria política do Estado, de modo que este não sucumba perante a neutralidade moral e política da razão econômica. É este um dos principais intuitos dos seus “Quatro capítulos sobre a doutrina da soberania”, de acordo com o que explicita Alexandre Franco de Sá. Schmitt apresenta estes trabalhos como herdeiros da filosofia política moderna, essencialmente devido aos conceitos clássicos que neles são estudados como o de Estado, o de soberania ou o de decisão, conceitos que, precisamente nos autores dos séculos XVIII e XIX, atingem seu ápice de rigor teórico e aplicação prática. É nos marcos desta tradição que o jurista alemão encontrará as bases que lhe permitirão criticar incisivamente a validade do modelo liberal que se impunha à Europa.
Interessa-nos nessa análise aqui proposta, sobretudo, a Teoria do Direito de Carl Schmitt tal como desenvolvida no período de 1919 a 1933. Teoria que ele próprio define como decisionista, vale dizer, como uma expressão mais consciente e radical de uma metafísica da positividade. O jusfilósofo é um ferrenho adversário do positivismo jurídico e toda a sua polêmica com Kelsen, que é um dos maiores representantes dessa concepção, advém da sua vontade de elucidar e de denunciar os pressupostos desta corrente e de salientar sua incompreensão a respeito da relação fundamental entre direito e política.
Focalizando essencialmente os escritos de Carl Schmitt do mencionado período, destaca-se nesse momento, uma construção teórica proposta pelo autor que se fundamenta, dentre outros pilares, no tema da adversidade, ou do caráter necessariamente polêmico de qualquer discurso que incida sobre o campo da política. Schmitt reconhece a presença compulsória de um drama adversarial e estabelece o conceito de amigo-inimigo. O critério de inimigo é para ele um objeto de pensamento, ou ainda, uma construção intelectual a partir da qual ele procura definir a sua posição teórica. Para Schmitt, o inimigo apresenta a condição moral de uma ameaça à forma de vida.
Carl Schmitt preocupa-se então em preservar a autonomia da política como esfera de determinação das bases da existência coletiva em face da crescente regulação técnica e econômica da vida social. Partindo de mesmas premissas teóricas, muitos anos depois, Michel Foucault e, mais recentemente, Giorgio Agamben, desenvolveram investigações acerca do papel secundário e subjugado do direito igualmente pela regulação técnica.
Segundo Carl Schmitt, todos os conceitos, representações e vocábulos políticos apresentam um sentido polêmico. Encontram-se, na verdade, imbricados em uma situação concreta, cuja consequência é um agrupamento de amigo-inimigo. A vida política é, para o autor, indissociável da hostilidade entre grupos humanos e ela encontra na guerra uma possibilidade última e real que condicionaria o comportamento político dos homens.
A guerra, dessa forma, é sempre um pressuposto real e, nessa medida, considerada um método que parte da premissa de que o “núcleo das coisas” somente se torna manifesto para quem o considera a partir de uma posição extrema. É por isso que o inimigo, segundo Carl Schmitt, apresenta uma condição moral de uma ameaça à forma de vida. Aquilo que está em jogo não é apenas o que se julga como substancialmente negativo no outro, mas uma consideração a respeito de si mesmo, tendo em vista a preservação da própria forma de vida coletiva. Daí a ideia de que a independência do político se baseia em uma “objetividade conforme o ser”, explica Bernardo Ferreira. Vale dizer: a luta de vida e de morte associada ao caso extremo do conflito político tem um significado existencial que não se reduz à mera preservação de uma existência física ameaçada.
Dessa maneira, somente aqueles envolvidos no conflito poderiam dizer se o inimigo representa uma ameaça concreta à sua forma de existência. O antagonismo político, segue Bernardo Ferreira, de acordo com o pensamento de Carl Schmitt:
escapa a princípios normativos, sejam eles morais ou jurídicos, pois apenas os próprios interessados estariam em condições de decidir sobre a possibilidade do “caso crítico”. Se a hostilidade política remete à possibilidade última da aniquilação física do outro é porque a sua alteridade se apresenta como a negação da própria forma de vida.
A assunção do caráter radical da inimizade como condição de conhecimento político implica uma definição em relação ao inimigo e uma posição. Essa situação traduz-se de, necessariamente ao jurista, uma decisão. Uma decisão que se confronta com a possibilidade limite da morte. Todo o pensamento político se funde, consciente ou inconscientemente, em uma decisão em função da qual ela adquire a sua razão de ser e se situa em relação ao seu próprio tempo.
A construção polêmica do inimigo é elemento central da reflexão teórica de Schmitt e inimigo, para ele, durante a República de Weimar, é o liberalismo.
A obra de Carl Schmitt que trata mais proximamente do pensamento liberal é O conceito do político. Neste livro, o liberalismo se apresenta como uma negação do político. Segundo o autor, essa característica do pensamento liberal resulta de uma tentativa de neutralizar e despolitizar a existência política. É precípua do liberalismo a diluição dos antagonismos políticos em contraposições despojadas de toda a carga polêmica. Destaca-se o trecho:
"O pensamento liberal, de uma maneira sumamente sistemática, contorna ou ignora o Estado e a política e move-se, em lugar disso, em uma típica polaridade, em permanente retorno, entre duas esferas heterogêneas, ou seja, entre ética e economia, espírito e negócio, cultura e propriedade. A desconfiança crítica contra o Estado e a política se esclarece facilmente a partir dos princípios de um sistema para qual o indivíduo deve permanecer “terminus a quo” e “terminus ad quem”.
O individualismo, como se sabe, é o fundamento teórico assumido pelo liberalismo.
No mundo liberal, as escolhas tendem a ser relativas e todas as alternativas, moderadas. Para o jurista, as oposições se tornam políticas quando intensificadas até o extremo, o ponto em que a radicalidade dos antagonismos coloca a “possibilidade real de provocar a morte física”.
Assim, em oposição à ausência de medida para a distinção entre amigo e inimigo, inerente do pensamento liberal, o político, para Carl Schmitt, é concebido como o que confere a medida. Somente essa medida empresta à comunidade política a sua superioridade sobre as demais associações humanas, já que ela tem o direito, no caso extremo, de “exigir o sacrifício da vida”.
De fato, para Schmitt, cuja inspiração em Donoso Cortés é muito marcada, a característica do liberalismo é a de “suspender a decisão no ponto decisivo enquanto se nega que haja uma coisa geral por decidir”. Exemplo muito claro disso (e objeto de estudo próprio do autor) é o debate parlamentar suspenso por uma discussão eterna - pela clasa discutadera.
A singularidade do pensamento de Cortés é o de pensar o liberalismo à luz de um ponto de vista extremo, nos termos do conceito de inimigo de Schimitt. Um ponto de vista em que a exigência de um posicionamento em face de uma situação de confronto se coloca de forma imperativa; em que, portanto, a decisão se torna uma necessidade. Para Schmitt, essa perspectiva permite considerar, de forma privilegiada, o caráter neutro e apolítico das ideias e instituições liberais. A neutralidade liberal, a crença na possibilidade de eliminar o conflito do horizonte das relações humanas revela, com isso, a sua verdadeira face e suas consequências últimas.
Trata-se de uma atitude que recusa assumir uma decisão e um posicionamento perante as situações críticas. Mais ainda, uma atitude que não admite necessidade de decisão e que, ao confiar na solução pacífica dos conflitos políticos, acaba por tornar relativas todas as diferenças. Na verdade, depara-se aqui na contradição baseada na “decisão por não decidir”.
Em apertada síntese, as premissas teóricas de Carl Schmitt aqui lançadas são:
o uso em sua metodologia científica do conceito de inimigo traduzida como uma ameaça à forma de vida. Para esse autor o “núcleo das coisas” aparece em situações extremas;
Schmitt defende a autonomia do político como a determinação dos fundamentos da existência social, comprometida pela preponderância de regulações econômicas e técnicas.
O conhecimento político, nessa medida, requer uma definição em relação ao inimigo e uma decisão de enfrentamento às questões críticas;
O inimigo para o autor é o liberalismo porque este modo de pensamento se constitui de tentativas para neutralizar e despolitizar a existência política.
Parecem inegáveis, realmente, os precursores e essenciais fundamentos teóricos de Carl Schimitt na compreensão e alcance da prática do liberalismo.
Essa racionalização de exercício de governo, no limite hoje do neoliberalismo americano da Escola de Chicago, com tantos e ardorosos defensores, impõe a lógica do mercado e contenção máxima do Estado como o critério para além da economia, estendendo-se à família, aos costumes, às pautas identitárias, às políticas penais, etc.
Não se pode deixar, aliás, de elaborar uma clara associação do que hoje é a configuração do nosso Congresso Nacional e a confiança em que pretensas soluções pacíficas, como seja o projeto de lei para a redução de penas a criminosos do Estado de Direito, possa relativizar as diferenças. A maioria do Parlamento hoje pretende imprimir às instituições uma fratura que atingirá mortalmente nossa democracia.
A propósito da controvérsia sobre a crença de Schmitt ao nazismo sentencia Antônio Cícero: estéril. É como considerar que a metafísica de Heidegger, igualmente nazista, também o seja. É agudíssima a crítica do filósofo, prossegue Antônio Cícero, ao sistema parlamentar, que pode tanto instigar o crédito de que a “casamata ideológica” que vela pelas democracias modernas é teoricamente insustentável, quanto apenas advertir os apóstolos liberal-social-democratas sobre a necessidade de cobrir certos buracos de sua ortodoxia, ou seja, torná-la mais sólida.
Referências:
1 SCHIMITT,Carl. Le categorie del político. Bologna: Il Mulino, 1972.Prefácio.
2 FRANCO DE SÁ, Alexandre. Do decisionismo à teologia política. Carl Schmitt e o conceito de soberania. Colecção Artigos Lusosofia. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2009, p. 25.
3 Ver em Renato Lessa, em prefácio da obra de FERREIRA, Bernardo. O risco do político. Crítica ao liberalismo e teoria política no pensamento de Carl Schmitt.
4 FERREIRA, B. O risco do político. Crítica ao liberalismo e teoria política no pensamento de Carl Schmitt, p. 43.
5 Premissas lançadas por Carl Schmitt em especial no livro Der Bregriff des Politischen, 1996a, texto original de 1931, apud FERREIRA, B. O risco do político. Crítica ao liberalismo e teoria política no pensamento de Carl Schmitt, p. 43.
6 SCHMITT, C. O conceito do político. Petrópolis: Vozes, 1992.
7 SCHMITT, C. O conceito do político. Petrópolis: Vozes,1992, p.37.
8 SCHMITT, C. O conceito do político, p. 37.
9 SCHMITT, C. O conceito do político, p. 37.
10 SCHMITT, C. O conceito do político, p. 54.
11 Kervégan fala em metafísica da indecisão. KERVÉGAN, J. F. Hegel, Carl Schmitt: o político entre a especulação e a positividade. Barueri: Editora Manole, 2006, p. 114.
12 Apresentação de Antônio Cícero a obra de Carl Schmitt. A crise da democracia parlamentar. São Paulo: Editora Scritta, 1996, p. X e XI.
Flávia D'Urso é mestre em Direito Processual Penal e Doutora em Filosofia, na linha de pesquisa política, pela PUC/SP. Foi procuradora do Estado e Defensora Pública. Dirigiu a Escola da Defensoria Pública de SP. Integra o Conselho Consultivo do IBAP. Preside a ENAJUD (Escola Nacional de Juristas para a Democracia).
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