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A verdade, a parresia e a mídia hegemônica

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    Revista Pub
  • 9 de ago.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 11 de ago.

-Flávia D'urso-


A palavra parresia vem do grego antigo παρρησία e significa literalmente a “coragem de dizer a verdade”, a "liberdade de dizer tudo" ou "falar livremente".


O termo vai alcançar vários sentidos ao longo da história, mas é importante assinalar, por ora, que a parresia representa ao mesmo tempo, virtude, habilidade, obrigação e técnica, cuja tarefa é a direção dos outros indivíduos na sua constituição como sujeitos éticos.


Na Grécia antiga, a parresia era valorizada na política e na filosofia. Identificava-se por uma qualidade essencial para a democracia e para a busca da verdade, mesmo que isso significasse desafiar autoridades ou opiniões populares.


Por Joseph-Noël Sylvestre - Historia No121, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=8890011
Por Joseph-Noël Sylvestre - Historia No121, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=8890011

Há muitos traços da noção de parresia também nos textos latinos e gregos. Pense-se, por exemplo, nos escritos de Sêneca, no universo latino, ou no texto de Plutarco sobre a bajulação, tema justamente oposto à parresia


Mas é mesmo na cultura grega que o conceito conquista maior apuro. Com efeito, havia dois sentidos de parresia: inicialmente um sentido político e, posteriormente, outro ético. 


O sentido político envolve a organização governamental de uma pólis e o modelo de poder democrático é o melhor exemplo. No início, a parresia era assim um direito político do cidadão, semelhante à liberdade de expressão. Nesta acepção política, no âmbito monárquico, o parresiasta deveria dizer a verdade para o Príncipe mesmo que isto lhe custasse a cabeça. 


Posteriormente, perceberam-se acepções da palavra parresia que não mais se referiam apenas a um direito democrático, mas também a uma ética segundo a qual o Príncipe devia reger seu caráter. Ele deveria ter a coragem racional de escutar as opiniões diversas, inclusive aquelas que ele normalmente não gostaria de ouvir, a fim de se prevenir contra a adulação. Tais percepções advém especialmente dos estudos desenvolvidos por Michel Foucault em As palavras e as coisas. 


Esse pensador se utilizou do conceito de parresia em seus trabalhos sobre a relação entre poder, verdade e ética. Ele analisou que a parresia – como prática de dizer a verdade - pode ser uma forma de resistência ao poder e um meio de transformação.


Na parresia aquele que diz usa sua liberdade e escolhe a franqueza ao invés da retórica, verdade ao invés da falsidade, o risco da morte ao invés da vida e da segurança, a crítica ao invés da adulação, e dever ético ao invés do interesse próprio e apatia moral. [1]

 

 Como se sabe, a filosofia grega teve e tem um impacto profundo nas sociedades e em seus pensadores contemporâneos, porquanto estabelecem e ainda mantém as bases para o pensamento crítico, diretrizes da ética, da política e da ciência ocidental. Estas premissas fundamentam a vida virtuosa, o conceito de justiça e, a partir delas, como devemos viver em uma sociedade efetivamente democrática.


De fato, filósofos como Platão e Aristóteles discutiram diferentes formas de governo e a natureza da cidadania. A suas ideias sobre a organização política e a participação dos cidadãos foram essenciais para o desenvolvimento do sistema democrático, além da importante compreensão do que sejam outros modelos de governabilidade.

 

Firmadas tais proposições, este texto tenta  correlacionar alguns destes primados filosóficos-políticos e éticos no contexto das mídias hegemônicas e suas opções que se encontram, de primeira intuição, em dissonância.


Na medida em que o modelo parresiasta erige a coragem e a ética da verdade, a crítica em oposição a adulação, os meios de comunicação de massa têm protagonizado, sem peias, os interesses privados em detrimento do interesse e da esfera públicas, negligenciando a responsabilidade social que lhe são constitutivas.


Como é sabido, três grandes grupos familiares detêm no Brasil o monopólio da informação, tanto no sistema de radiodifusão como na mídia jornalística impressa. São eles: 


  1. Organização Globo: que é o maior conglomerado de mídia e comunicação do Brasil e da América Latina. Em maio de 2016, ocupava o 14.º maior gripo de mídia do mundo, e tem as seguintes empresas subsidiárias: GloboEditora GloboSistema Globo de Rádio e Globo Ventures, além de ser mantenedor da Fundação Roberto Marinho. No mesmo ano, foi citado entre os maiores proprietários de mídia do mundo, de acordo com o ranking produzido pela consultoria Zenith Optimedia, sendo a única empresa brasileira da lista. A principal empresa do Grupo Globo é a TV Globo, que detém a maior emissora de televisão do país e a segunda maior do mundo. (Fonte Wikipedia)


  1. Grupo FSP: O Grupo Folha, oficialmente Empresa Folha da Manhã, é um conglomerado de mídia de diversas empresas, atuando em setores como financeiro comunicação, fundado pelo empresário Octavio Frias de Oliveira (1912-2007) e comandado por seu filho Luiz Frias desde 1992.O grupo publica, tradicionalmente, o jornal de maior circulação do país, a Folha de São Paulo, que de 1986 a 2020 manteve a liderança entre os diários nacionais. Nos anos de 2021 e 2022, o jornal O Globo tomou o posto de jornal de maior circulação do país. Na última década, o grupo Folha da Manhã quase triplicou seu faturamento, chegando a R$ 2,7 bilhões em 2010, com previsão de atingir os R$ 4 bilhões em 2016. Uma estimativa. Depois de 2010 o Grupo deixou de publicar os seus ganhos. Atualmente, o negócio mais rentável da empresa é a PagSeguro, que lucrou mais de um bilhão de reais em 2019. A subsidiária cuida da captura, transmissão e liquidação financeira de transações com cartões de crédito e débito como meio de pagamento eletrônico e instituição bancária tanto no meio físico (com suas máquinas sem aluguel), quanto no meio eletrônico (com suas soluções de pagamento on-line). (Fonte Google) 

 

  1.  O Estado de São Paulo: ocupa a segunda posição do jornal de maior circulação do país. Há uma alternância destes números entre o jornal O Globo e A Folha de São Paulo. A mais antiga de todas as seções, conhecida como "Notas e Informações", sempre localizada na página 3, mantém a tradicional postura do jornal e unir, em seus editoriais, conservadorismo político e liberalismo econômico, sendo uma das colunas mais emblemáticas deste jornal identificado com o pensamento conhecido como neocon e neoliberal no Brasil. [2]


E, de fato, é mesmo esse o ponto que identifica as três maiores representações dos meios de comunicação do país: a adoção do pensamento neoliberal. Não há uma matéria jornalística das Organizações Globo ou editoriais destes grandes jornais em que argumentos de políticas da liberalização econômica, como sejam a privatizaçãoausteridade fiscaldesregulamentaçãolivre comércio e redução da despesa pública para reforçar o papel do setor privado na economia não estejam presentes.


Não se trata aqui de invalidar diretrizes, inclusive constitucionais, acerca da comunicação social que assegura a proibição de restrição sobre a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo (art. 220 da CF), mas sim a compreensão de que uma lógica corporativa - e inteiramente predominante - como visto acima, possa comprometer o acesso à verdade. 


É, desta forma, o lucro da mídia prevalente e organizada em empresas privadas que vem determinando a obtenção e a divulgação de informações e ideias para a sociedade de massa e que são disseminadas, estrategicamente, como se fossem de interesse gerais. 


Jürgen Habermas em sua obra sobre o tema Mudança Estrutural da Esfera Pública [3] defende que os meios de comunicação de massa ocupam uma posição central na sociedade porquanto são pontos de entrada para interesses privados na esfera pública. O filósofo analisa que a mídia deva ser efetivamente livre e sem censura, porém, para possibilitar a formação da opinião pública e sua participação crítica na democracia e não, contrariamente, usada para influenciar e manipular a opinião através do ingresso de interesses privados.

 

E essa influência ocorre porque a mídia não é independente, mas sim forjada por interesses econômicos, políticos e sociais de grandes grupos corporativos, exatamente como nosso país. Grupos de poder, a exemplo de restritas e bastante lucrativas empresas jornalísticas nacionais, que usam a mídia para promover suas agendas e influenciar a opinião pública, muitas vezes com maior facilidade do que outros atores sociais.


Essa dinâmica pode levar a uma situação em que o interesse e o espaço públicos, que deveriam ser esferas de debate livre e igualitário, acabam sendo dominados por interesses particulares, dificultando a participação efetiva da sociedade civil e a formação de uma opinião pública soberana, como deve ser mesmo em uma real democracia. 


Na medida em que os meios de comunicação social são fundamentalmente responsáveis pela circulação de ideias e de informações na sociedade de massa, o comprometimento e a sua enorme responsabilidade da concretização dos valores democráticos e da construção da cidadania não podem estar submetidos apenas a uma lógica corporativa. [4]


 O dever ético da verdade - oposto ao dissimulado de interesse geral - que é constitutivo do direito à informação e do interesse público, exige meios de comunicação em massa plurais e não excludentes.

 

Nesse passo, há no nosso ordenamento constitucional disposição expressa. Trata-se do art. 220, parágrafo quinto que dispõe: 

Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.


Ainda que haja algumas disposições infraconstitucionais que regrem indiretamente a matéria é certo que a regulamentação desta norma principiológica ainda não foi feita pelo Estado Brasileiro. Há uma anomia, portanto, que dificulta a alteração de um cenário já muito complexo.

  

Identifica-se, pois, uma dissociação dos nossos meios de comunicação em massa a um dever ético, uma vez que compromissários de uma lógica negocial ao invés da verdade parresiasta. Em outras palavras, a adulação a uma ordem econômica neoliberal ao invés da crítica e a manipulação da opinião pública ao invés da garantia de um espaço igualitário, plural e democrático.


A singularidade destas distinções talvez possa contribuir à compreensão de uma importante fragilidade democrática, no limite ainda do comprometimento da constituição na sociedade de uma subjetivação ética. 


Notas:

[1] Foucault, Michel. “As palavras e as coisas”, Ed: Martins Fontes, SP, pag. 134.


[2] Azevedo, Fernando Antônio (abril–maio de 2006). «Mídia e democracia no Brasil: relações entre o sistema de mídia e o sistema político». Opinião Pública. 12 (1): 88-113. ISSN 1807-0191


[3] Habermas, Jürgen. "Mudança Estrutural da Esfera Pública. Editora Unesp. apud Carajelescov, Yuri. MÍDIA, DIREITO, DESENVOLVIMENTO E DEMOCRACIA NO BRASIL. Tese de doutoramento, USP, 2016.


[4] Carajelescov, Yuri. Op. Cit. Oportunas, igualmente, considerações neste trabalho acerca da necessidade da regulamentação dos meios de comunicação.


 

Flávia D'Urso é mestre em Direito Processual Penal e Doutora em Filosofia, na linha de pesquisa política, pela PUC/SP.  Foi procuradora do Estado e Defensora Pública. Dirigiu a Escola da Defensoria Pública de SP. Integra o Conselho Consultivo do IBAP. Preside a ENAJUD (Escola Nacional de Juristas para a Democracia). 


 


1 comentário


Cesar Cordaro
Cesar Cordaro
11 de ago.

O texto acima é uma peça de reflexão fundamental para qualquer pessoa interessada em uma visão crítica da comunicação no Brasil. O seu conteúdo não só informa, mas também provoca e desafia o leitor a questionar as "narrativas" que consome diariamente, reafirmando a importância da ética e da coragem na busca pela verdade. É um artigo que, ele próprio, pratica a "parresia" que defende.

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