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Os que não cabem no mundo: crônica dos “isolados” na África

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    Revista Pub
  • 18 de ago.
  • 8 min de leitura

-Hermelindo Silvano Chico-


A história única cria estereótipos... e o problema dos estereótipos não é que sejam falsos, mas que são incompletos. Eles fazem uma história se tornar a única história.

— Chimamanda Adichie


Isolamento cultural ou preservação cultural permite contestar e resistir  à dominação.

— Amilcar Cabral


Nossas vidas são um campo de batalha onde é travada... uma guerra contínua entre as forças que se empenham em afirmar nossa humanidade e aquelas determinadas a desmontá-la...

— Ngũgĩ wa Thiong’o


Há lugares no mundo onde o tempo não corre. Ele anda, às vezes descalço, outras vezes cansado, carregando nas costas cestos de memória que ninguém mais quis lembrar. Lugares onde o passado não virou ruína nem atração turística, virou presença. Pulsante. Rude. Real.


Esses lugares ainda existem. Estão em florestas tão verdes que o verde parece doer. Em rios que não sabem o nome de nenhum satélite. Em savanas onde o silêncio é uma língua cheia de nomes. Estão na África.


Mas a pergunta que a modernidade não consegue calar, com sua pressa de catalogar tudo, é: quem são esses povos que vivem “isolados”? E por que insistem em não desaparecer?


Os chamam de “isolados”, como se fossem peixes fora d’água, quando, na verdade, é o mundo que se afogou em fios e telas e cercas e leis. Eles, não. Eles seguem onde sempre estiveram. Na floresta. Na seca. No sal. Na fala dos ancestrais.


Dizem que estão isolados.Dizem que não participam do mundo.Dizem, quem diz?


A ONU, as agências de cooperação, os antropólogos de gabinete, os que desenham mapas, os que escrevem relatórios. Eles dizem que há povos “isolados”. Povos que não se abriram ao mundo, que não aderiram à modernidade. Povos que, como querem fazer crer, vivem à margem do tempo, à margem do espaço, como se o tempo e o espaço lhes fossem negados por escolha ou por ignorância.


Mas eu pergunto: o que é estar isolado?Quem define o que é o “centro” e o que é “margem”?Quem disse que a modernidade é o único tempo possível?E o que significa estar fora de um mundo que não os acolhe, que os explora, que os transforma em nota de rodapé?


Ser isolado, segundo dizem, é não manter contato com o mundo externo.Mas qual mundo? Aquele que mede progresso por PIB? Aquele que ergue seus pilares sobre colônias, sobre minas, sobre mãos negras invisibilizadas?


Talvez seja este o maior equívoco da narrativa global: chamar de isolado quem apenas se recusou a ser assimilado.


Imagine uma aldeia encravada na floresta equatorial do Congo. Ou uma comunidade semi-nômade que atravessa os desertos da Namíbia. Ou ainda um povoado de palhotas circulares em Angola, onde as decisões ainda são tomadas pelo conselho dos anciãos, onde as palavras são herdadas com o mesmo peso que os ossos dos ancestrais.


Agora pergunte-se: eles estão isolados... de quem?


Estão distantes de Paris, de Bruxelas, de Washington, mas profundamente conectados à terra, às árvores, aos espíritos dos mortos, aos ciclos da lua, aos deuses da chuva. Estão longe da ONU, mas perto de si mesmos. Não aparecem no censo, mas existem em cada traço da memória do solo que pisam.


Chamá-los de isolados não é apenas uma imprecisão conceitual. É um ato político.É uma tentativa de nomear o Outro a partir da ótica do Mesmo.


A modernidade, essa máquina insaciável de normatizar o mundo, nos ensinou que ser moderno é ter luz elétrica, acesso à internet, uma Constituição nacional e uma economia de mercado. A modernidade nos ensinou que os povos devem ser “integrados”, que devem aderir ao “desenvolvimento”, que devem, enfim, se tornar aquilo que a Europa se tornou.


E quando não o fazem, o diagnóstico é imediato: estão isolados.


Mas o que a ONU chama de isolamento, talvez devêssemos chamar de resistência.O que as agências chamam de atraso, talvez devêssemos chamar de escolha civilizatória.Talvez esses povos não sejam os últimos do mundo, talvez sejam os primeiros em sabedoria.


Há os Twa, os Mbuti, os Aka e os Baka. Povos das florestas tropicais da África Central. Vivem com a floresta, e não apenas na floresta. Sua economia é de reciprocidade, seus calendários são marcados pelas colheitas e caças, e sua política é tecida por meio da oralidade, da partilha e da escuta. Eles tiveram contato com o mundo externo, sim. Mas escolheram recuar. Recolheram-se como quem protege um fogo ancestral que não pode se apagar.


Por Various Authors - Various sources, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=98457245
Por Various Authors - Various sources, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=98457245

E há os Khoisan, no sul de Angola, nas planícies da Namíbia, nos desertos do Kalahari e na África do Sul. Pintam as pedras, dançam para curar, vivem em harmonia com os ventos secos. São considerados o povo mais antigo da humanidade. Foram perseguidos, deslocados, empurrados para as margens do que hoje chamamos de “Estados nacionais”. Ainda assim, persistem. Alguns se mantêm semi-isolados, como se dissessem: “o mundo que nos rejeitou não terá a nossa alma”.


E há os Chokwe, Kangalas, Yahumas, Nganguelas, !Kung, Himba, Kuvale, Tjimba, Kwisi, Xindongas entre outros, em Angola, que preservam sua arte, sua mitologia, seus sistemas de iniciação. Que recusam o tempo ocidental linear e continuam vivendo no tempo circular da ancestralidade.


Há também os Ogiek, no Quênia, expulsos de suas florestas pelo Estado em nome da “preservação”, como se a própria floresta não soubesse quem a preserva há séculos.

Estes são os “isolados”? Ou são os que permanecem? Os que recusam a homogeneização?


Talvez estejam apenas protegidos, não por muros ou tanques, mas por uma resistência sem uniforme. Uma resistência de silêncio. De invisibilidade. De teimosia. Eles não se renderam à pressa, ao mercado, ao delírio do progresso. Não se renderam à ideia de que viver é consumir, comprar, deixar rastro na nuvem.


Isolados. Como se viver sem wi-fi fosse sinônimo de atraso.


A verdade é que muitos desses povos nunca quiseram contato. E não porque odeiem os outros, mas porque sabem. Sabem o que acontece quando os passos do “desenvolvimento” entram pelas frestas. Sabem o que acontece quando os mapas mudam de nome e quando a lei passa a servir a quem nunca pisou no chão que desenha.


Sabem que o contato raramente é convite: quase sempre é invasão.


Então resistem. Mesmo quando não têm palavras em alfabeto romano para explicar isso.


Mas o mundo não tem paciência com quem resiste. Os governos olham pra essas comunidades e dizem: “todos são iguais”. É o truque mais antigo do opressor: apagar a diferença no discurso da igualdade. Fingem que proteger uma cultura seria privilégio. Fingem que todos partiram do mesmo lugar. Fingem que as cicatrizes do colonialismo são passado, quando muitas ainda sangram.


A ONU tenta enquadrar os povos tradicionais africanos dentro da lógica da Convenção 169 da OIT, aquela que garante direitos aos povos que não se reconhecem dentro dos Estados modernos. Mas quase nenhum país africano ratificou essa convenção. Por quê?

Porque a maioria dos Estados africanos teme a fragmentação. Porque foram moldados a partir da geometria colonial, que dividiu povos, cortou fronteiras com régua e compasso, e depois exigiu deles uma unidade nacional.


Na África, somente a República Centro-Africana ratificou a Convenção 169 da OIT, que garante direitos territoriais e culturais aos povos indígenas. Assim, dentre todos os países africanos, ela permanece “isolada” nesse compromisso. 


A maioria ainda prefere falar de “comunidades rurais”, “tradições locais”, “autoridades consuetudinárias”. Palavras frias para não dizer o essencial: que há povos que são outros. Não são melhores nem piores. São outros. E que têm o direito de continuar sendo.


Mas ser outro incomoda. Porque exige que o mundo reconheça sua própria violência.


Em Angola, o soba[2] ainda assina papéis com dedos de terra. Em Moçambique, o régulo[3] ainda sabe o nome de cada árvore. Na África do Sul, a Constituição reconhece o papel dos dikgosi[4] ou kgosikgolo[5], mas a terra, essa continua no colo dos poderosos. Na República Democrática do Congo (RDC), uma lei recente reconhece os Batwa. É bonito, é avanço. Mas e os mortos? E as florestas tomadas? Quem devolve a dignidade confiscada a golpe de asfalto? 


Ratificar a Convenção 169 seria admitir que dentro de seus territórios existem povos que não se reconhecem naquele Estado, que não compartilham da sua lógica de organização, de sua língua oficial, de seus valores jurídicos. Seria admitir que há nação dentro da nação. Tribo dentro do Estado. Outro dentro do Mesmo.


E isso, para muitos governos, é perigoso.


Mas é a verdade.


A África vive em sistemas de governança híbridos. O Estado moderno coexiste (e muitas vezes entra em conflito) com as autoridades tradicionais. Há chefes, reis, conselhos de anciãos, rainhas-mães e líderes espirituais que detêm poder real sobre comunidades. Poder legítimo. Não por imposição, mas por reconhecimento ancestral.


Moçambique tem leis que reconhecem as autoridades tradicionais (Decreto 15/2000, inclusive a própria Constituição). Angola também (Constituição de 2010). A África do Sul garante na sua Constituição de 1996 o direito à autodeterminação cultural. O Quênia, após sua nova constituição, criou o Conselho Nacional das Comunidades para proteger culturas minoritárias. A Namíbia reconhece os grupos tradicionais com base em critérios de continuidade cultural (Constituição de 1990). O Congo (RDC) possui dezenas de chefaturas reconhecidas como legítimas, mesmo fora da estrutura moderna de governo.


E ainda assim, mesmo com esse reconhecimento, esses povos são tratados como folclore.A modernidade os tolera... desde que não reivindiquem autonomia.Desde que não saiam da vitrine.


Na África, os povos “isolados” não são relíquias. São vozes. São futuros guardados no presente.


Eles existem entre fronteiras invisíveis. Onde o tempo não é o mesmo. Onde não há relógios, mas ciclos. Onde a terra não é propriedade, mas parente. Onde o silêncio fala, o olhar ensina e o canto cura.


Eles são a memória viva do que o mundo esqueceu. E, por isso, assustam.


Afinal, como suportar que alguém viva bem sem o que todos correm para ter?


É por isso que os isolados são, no fundo, um espelho. Um incômodo. Uma pergunta sem resposta.


Não são exóticos. São radicais no sentido mais belo da palavra: raízes.


Talvez o mundo é que nunca se dispôs a se adaptar a eles. Mas talvez, se o mundo ouvir, não com o ouvido apressado das notícias, mas com o coração demorado das fogueiras, possa aprender algo com eles. Sobre como viver. Sobre como existir. Sobre como não ser engolido.


Talvez.


Mas só se o mundo quiser escutar.


Eles não estão no mapa, dizem.Mas talvez o mapa precise ser redesenhado.


Eles não entram no censo.Mas talvez o censo precise aprender outras linguagens.


Eles não falam português, francês ou inglês.Mas talvez o mundo precise reaprender a escutar o silêncio, o batuque, o vento, o mito.


Eles não usam Constituição.Mas talvez já tenham inventado há muito tempo um contrato com a natureza, mais justo do que qualquer Constituição escrita.


Chamar de “isolado” aquele que habita um tempo diferente é como chamar de “cego” aquele que fecha os olhos para sonhar.


Esses povos, que a ONU classifica com termos como “não contactados”, “isolados” ou “pré-modernos”, são, na verdade, os guardiões da pluralidade humana. São os que recusam a monocultura global. São os que afirmam que é possível viver de outro modo. São os que não aceitam o preço da “integração” se ela significar o extermínio da memória.


A sua resistência é política.A sua existência é filosófica.A sua persistência é um ato de amor radical ao próprio modo de ser.


Eles não estão isolados.Nós é que estamos.


Isolados da terra.Isolados do ritmo da lua.Isolados dos ciclos do corpo.Isolados dos nossos ancestrais.


Nós é que nos perdemos no concreto das cidades, nos códigos binários, nos contratos infindáveis, na pressa das horas.


Nós é que esquecemos o nome das árvores.Nós é que já não sabemos o sabor do silêncio.


E se um dia o mundo acabar, talvez sejam eles os únicos a sobreviver.Não porque estavam isolados.Mas porque estavam em casa.


Notas


[2]  Regedor tradicional.

[3] Chefe tradicional.

[4] Lideranças ancestrais.

[5] Supremo líder tradicional.



Hermelindo Silvano Chico - Doutor em Direito na Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR. E-mail: hermelindochico@gmail.com  



1 comentário


carlosmares
18 de ago.

Excelente

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