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UNI-VOS, TRABALHADORAS E TRABALHADORES: PRIMEIRO DE MAIO

Atualizado: 5 de dez. de 2023

-CARLOS MARÉS-



O conceito moderno de trabalho e de trabalhador chega a ser constrangedor. Desde o século XIV, muito antes de Lutero, a Europa começava a execrar a figura do não trabalhador, isto é, de quem não submetesse seu próprio esforço a uma exploração intensa e alheia. Começaram a surgir as chamadas leis do trabalhador livre. As leis, invariavelmente, começavam assim: “Todos são obrigados a trabalhar”.


Quer dizer, eram livres para trabalhar, não para não trabalhar e o trabalho era dignificado pelo contrato. Está bem, o conceito de liberdade também chega a ser constrangedor na modernidade. Mas hoje é dia dos trabalhadores e vamos falar de trabalho.


Se pensarmos um pouco, afinal, quem precisa de um conceito de trabalho? Por acaso alguém pede explicações sobre o que quer dizer trabalho no momento que vai trabalhar? Provavelmente, não. Mas sempre é bom, pelo menos no dia de hoje, refletir sobre o conceito de trabalho da modernidade. Para começar e, quem sabe, aumentar as dúvidas, vamos ao proscênio assistir a uma breve esquete:


Um homem pára sua pequena carroça puxada por um robusto e obediente burro em uma pedreira. Outros homens, trabalhadores por certo, carregam a carroça com pedras de calçamento. Avisado por um dos trabalhadores que a carroça estava carregada, o homem deixa seu lugar à sombra de uma árvore e lentamente monta na carroça batendo no lombo do burro com um delicado talo. Obediente, o burro se movimenta puxando a carroça e se dirige a uma longa estrada em aclive, sabia para onde ir, não era a primeira vez. No meio do caminho o burro pára um pouco à guisa de descanso, mas o homem, que havia dormido no embalo da viagem, acorda e dá mais um pequeno peteleco no lombo do animal, mais para alertá-lo do que magoá-lo. O homem é bom, como se pode ver, e não quer maltratar o burro que considera mais amigo do que escravo. O burro, obediente, retoma a caminhada puxando a pesada carroça, o homem volta a cochilar.


O homem monta na carroça, se despede com um meneio de cabeça, bem guardada a renda num bolso interno do casaco, e incita o burro a levá-lo de volta a casa. Quem trabalhou? O homem ou o burro?

Chegado ao destino, o homem apeia e se dirige à sombra de outra árvore enquanto outros trabalhadores retiram as pedras tão lentamente quanto o humor do capataz suporta. Retiradas as pedras o capataz se aproxima do homem e lhe entrega uns papéis pintados que usavam chamar de dinheiro. O homem monta na carroça, se despede com um meneio de cabeça, bem guardada a renda num bolso interno do casaco, e incita o burro a levá-lo de volta a casa. Quem trabalhou? O homem ou o burro?


Antes de responder, se é que alguém tem a intenção de responder, vejamos o que ocorria enquanto isso na casa do carroceiro. Logo que o homem havia saído bateram à porta, era um vizinho que queria convidá-lo para pescar. A mulher respondeu: “Xi, vizinho, o marido foi trabalhar!” Algum tempo depois outro vizinho veio à casa do homem pedir o burro emprestado porque tinha que arar uma quadra e não tinha quem puxasse o arado. A mulher respondeu: “Xi, vizinho, que pena, mas o marido está usando o burro”. É claro que a mulher não tinha dúvidas de que o marido trabalhava enquanto o burro apenas puxava a carroça.



Mas as visitas à agitada casa do carroceiro ainda não haviam terminado, antes do marido chegar para o merecido descanso e sopa quente que seguramente o esperariam, passou uma vizinha que voltava do trabalho, trabalhava como faxineira numa grande casa, e viu a mulher do carroceiro pendurando roupas no varal, perguntou então: “Ué, vizinha, não foi trabalhar hoje?” A mulher respondeu: “Não, vizinha! Tirei um dia de folga, tinha muita coisa para fazer em casa e aproveitei que o marido tinha que sair para trabalhar”.


Quando o homem chegou em casa, tirou as botas, sentou-se à mesa sem ao menos lavar as mãos e recebeu um fumegante prato de sopa que a mulher tinha acabado de preparar e começou a sorver imediatamente. Entre uma ruidosa colherada e outra lembrou de dizer: “Mulher, vai dar comida pro burro e não esqueça de levar água, o coitado suou bastante hoje.” E continuou sorvendo a sopa antes que esfriasse.

Pano rápido! As luzes se acendem e voltamos à realidade.


Afinal, quem são os trabalhadores e quais ações podem ser consideradas trabalho pela modernidade nesta edificante história? Se acrescentarmos o adjetivo livre para qualificar o substantivo trabalho, certamente o primeiro, quem sabe o único a ser excluído seria o burro, com reticências para a mulher do carroceiro, que embora trabalhasse, não tinha trabalhado nesse dia, mas era livre, tanto que pode tirar um dia de folga, sem trabalho, para arrumar a casa, que, embora trabalhoso, não se enquadra na categoria trabalho. Mas que fique bem claro que a mulher não vadiou.


Vadio pode ser ofensa dura no feminino e insinuação de puro preconceito. É outra ambiguidade, chama de vadia mulher que trabalha e provê sua renda.

É que as leis do trabalhador livre, que é obrigado a trabalhar, para ter eficácia têm que criminalizar a vadiagem. Mas, quem é vadio? “Aquele que, podendo trabalhar não o faz, nem tem meios de manter o seu sustento” (artigo 59 da Lei de Contravenções Penais). A lei se corrige rapidamente e dispõe que “a aquisição superveniente de renda, que assegure ao condenado meios bastantes de subsistência, extingue a pena”. A contravenção chamada vadiagem continua em vigor e é esclarecedora do quão constrangedor é o conceito de trabalho. Para não ser vadio não tem que trabalhar, tem que ter renda, isto é, tem que ter uma fonte donde brote o pintado papel chamado dinheiro.


Não é verdade que o contrário de vadio seja trabalhador, porém. Na economia política, trabalhador é quem reproduz o capital, isto é, o assalariado, não o que trabalha por conta própria como o que produz seus meios de subsistência lavrando a terra, o que pesca, caça ou colhe seu próprio alimento, limpa a própria casa, lava sua roupa ou prepara a sopa do marido e a comida do burro. Estes, embora nem sempre se enquadrem na categoria legal de vadios, não podem ser considerados trabalhadores, são indígenas, quilombolas, pescadores, camponeses, mulheres. Assim, há uma ambiguidade entre vadiagem e trabalho por conta própria na modernidade. É claro que este conceito sempre muda e fica mais perverso dependendo da cor da pele e do gênero que a habita. Vadio pode ser ofensa dura no feminino e insinuação de puro preconceito. É outra ambiguidade, chama de vadia mulher que trabalha e provê sua renda.


Vadios foi a palavra utilizada pelos senhores de escravos nas colônias espanholas quando o Reino resolveu escrever, copiando a França, um Código Negro que estabelecia obrigações aos senhores, como, por exemplo, manter os escravos alimentados. “Eles não podem ter direitos porque são vadios, e se tiverem direitos, deixam de trabalhar”, esse foi o argumento dos senhores para dizerem ao Rei que não cumpririam a Lei. O Rei desistiu, o argumento o convenceu ou sua fraqueza o impediu de insistir. Matar de fome continuou a ser um direito não escrito, mas usado. Afinal, disseram os senhores, que diferença faz a forma como se morre?


No mundo atual brasileiro, capitalista, acentuada a ambiguidade do conceito de liberdade, se comemora o dia primeiro de maio como dia do trabalhador, quer dizer, do assalariado, do resistente, do organizado em sindicato, do que tem consciência de sua exploração, do que deseja liberdade real. É uma justa homenagem à Revolta de Haymarket. Mas até na comemoração a ambiguidade se faz presente, o dia primeiro de maio foi instituído feriado nacional pelo Decreto no 4.859, de 26 de setembro de 1924, com o seguinte texto: “É considerado feriado nacional o dia 1o de maio, consagrado à confraternidade universal das classes operarias e à comemoração dos mártires do trabalho;” (atualizei ortograficamente), mas a partir da ditadura e até hoje se insiste em chamar dia do trabalho e não do trabalhador, ou classes operárias, esmaecendo a lembrança da revolta e amenizando o potencial de luta.


Na América Latina de 2021, porém, quase 100 anos depois do Decreto, a tradução de confraternidade universal das classes operárias e comemoração aos mártires do trabalho, não pode excluir os que trabalham por conta própria sem remuneração, nem os desempregados que podem trabalhar, nem os que não podem, nem os que se divertem trabalhando, nem os que gostam de trabalhar. E é claro que não se pode excluir da confraternização os movimentos sociais, mesmo que não se juntem por razões trabalhistas, como o movimento negro, das mulheres, camponeses, LGBTQIA+. Aliás, devem fazer partem da comemoração os animais, escravizados ou livres, e o resto da natureza que trabalha incessantemente para criar riquezas não só para as gentes. Riqueza que se come, respira e bebe.


Ao incluir tanta gente nem precisa festa, comemoração ou luta? Aí que está, precisa! E ainda mais do que antes! A confraternidade, comemoração e luta é contra certas gentes, certos humanos, em geral homem, branco, bem vestido e bem penteado, que vive da renda do capital vadio, este sim, vadio, que explora ao máximo o trabalho alheio, que destrói a natureza, que contrata especialistas em criar e difundir falsos conceitos, inventar ambíguas categorias e lógicas teorias tristes, tudo para acumular riqueza inútil que não se come, nem se bebe, nem se respira. Contra os que tudo fazem, sem se importar como cada um morre ou é morto, para acumular na algibeira gulosa punhados cada vez mais volumosos de papel pintado.


Por isso, o dia dos trabalhadores e dos mártires do trabalho, não seria justo se não estivesse escrito no feminino, em preto e branco, em gente, bicho e plantas. A palavra de ordem, então, há de ser: trabalhadoras, trabalhadores, operários e operárias, indígenas, quilombolas, camponeses, gente, animais e plantas, uni-vos!


Uni-vos por um mundo que celebre a vida!

 
O podcast Narrativas do Antropoceno entrevistou o prof. Carlos Marés. Ouça aqui o episódio #6: Spotify
 

Carlos Frederico Marés de Souza Filho é professor titular de Direito Socioambiental da PUC-PR e membro do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública. Foi por duas ocasiões Procurador Geral do Estado do Paraná.



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