-CARLOS FREDERICO MARÉS DE SOUZA FILHO-
A chamada guerra do contestado é a maior guerra camponesa do Brasil. Ocorrida entre 1912 e 1916 está contada pelos vencedores. Os historiadores e sociólogos que escreveram tiveram como fonte os relatos militares e algumas vezes depoimentos de pessoas que viveram a época, mas os principais atores da guerra, camponeses, foram mortos, queimados e os locais destruídos. A pouca documentação existente é militar. O próprio nome da guerra, contestado, se refere a uma disputa territorial entre o Paraná e Santa Catarina e cobre uma grande área entre os rios Iguaçu, ao norte e Uruguai, ao sul, até a fronteira com a Argentina, no oeste e a Serra do Mar, a leste. Mas a guerra camponesa não tem nada a ver com a disputa entre os dois Estados, aliás as duas polícias militares e o exército nacional se juntaram para participar do combate.
Foi esse imenso quadrilátero o palco da guerra. Os dados oficiais impressionam: 15.000km², 40.000 pessoas envolvidas, 8.000 combatentes do lado da “ordem”, sendo 7.000 soldados e 1.000 civis recrutados e 10.000 combatentes camponeses, mais de 1.000 mortos militares, não se sabe quantos camponeses morreram, os corpos eram queimados em fornos improvisados pelos militares. Estes dados são oficiais, provavelmente subestimados, mas por si só relatam a grandeza do “episódio”.
Tudo isso por quê? Para apropriar-se das terras férteis dos verdes vales da região ocupadas por camponeses, índios e quilombolas e promover a superexploração da mão de obra. Escrever a história dessa guerra com rigor científico é difícil, as fontes são poucos e unilaterais, portanto repetitivas e ocas. A solução é a ficção. Mas há uma contradição entre a ficção, criação de supra realidade, o mais próximo do real possível e a ficção sobre a realidade propriamente dita. Gay Talese dizia que a ficção, o romance, é a história das pessoas comuns enquanto na biografia, história, são os heróis que dominam, por isso se dedicou a escrever biografias de pessoas comuns que, pelo fato de se tornarem personagens de história, passam a ser heróis.
Mas onde estão e quem são as pessoas, personagens, na Guerra do Contestado? A guerra tem heróis e anti-herói, Monge José Maria, herói mítico e Coronel João Gualberto, comandante das forças da repressão, são os primeiros e mais notáveis. Sobre João Gualberto há pequenas biografias, sobre o Monge nem mesmo o nome certo se sabe. Mas os dois morreram no primeiro combate. Se João Gualberto não tivesse morrido na incrível derrota das forças oficiais provavelmente não seria sequer nome de rua em Curitiba, nem patrono da Polícia Militar do Paraná. O Monge não, quem sabe se tornaria Antônio Conselheiro, herói inconteste do sertão. Mas a história não pode ser escrita como não foi.
Não são poucos os romances, novelas e contos sobre o contestado. São poucos conhecidos, é verdade. Mas há personagens grandiosas. Uma mulher, jovem, de nome simbólico, Chica Pelega, praticamente não consta nos documento oficiais mas na oralidade, hoje já quase apagada da região, se sobressai. Existem pelo menos dois romances sobre ela com títulos quase idênticos, “Chica Pelega, a guerreira do Taquaruçu” e “Chica Pelega do Taquaruçu”, o primeiro de A. Sanford de Vasconcelos e o segundo de Cirila de Meneses Pradi, escritos mais ou menos na mesma época, virada do milênio.
É claro que as fortes cores da ficção pintam a mesma fascinante personagem com bastante diferenças apesar dos fatos parecidos. Mas o mais importante é o papel de Chica e a devoção que gera na irmandade cabocla em cada um dos romances. No primeiro é heroína até o final e morre como heroína, em campo de batalha e louvada pelo resto da guerra que ainda duraria três anos, no segundo, com morte parecida embora sem glória, aparece como se tivesse sido traída pelos companheiros. Assim como o mármore já escondia íntegro Moisés e dependeu do talento e do cinzel de Michelangelo para revelá-lo, Chica Pelega e outros grandes heróis dos sertões do sul têm histórias íntegras a espera de revelação. Chica Pelega foi revelada por Sanford de Vasconcelos, mas Maria Rosa, a menina guerreira, Adeodato, o incrivelmente único preso do fim da guerra, e outros tantos, aguardam a revelação épica, romântica ou poética de seus nomes, para serem ressuscitados porque, afinal, a guerra camponesa pela terra na região do contestado e adjacências não acabou e como previu monge José Maria, quem morreu lutando voltará num exército de fogo para redimir os injustiçados e assentar a justiça.
As belas personagens continuam aí flanando no ar, a espera de penas agudas que abram com a imaginação a verdade que os documentos oficiais insistem em não revelar. Quantos contestados esperam seus escritores no Brasil?
Carlos Frederico Marés de Souza Filho (PR) - Professor de Direito Socioambiental PUC-PR. Escreve todo dia 01 de cada mês.
Obrigado Sheila. Eu sou um revoltado com despreza que a historiografia e a literatura tem com nossas guerras camponesas.
Adorei, Marés!!! Excelente lembrança: - quantas insurreições sufocadas em “favor da ordem” tentaram mudar o curso de nossas práticas políticas ou de produzir e não as conhecemos. Se não as conhecemos não refletimos sobre nossa realidade!