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A Advogada Popular

Atualizado: 2 de dez. de 2020

- Carlos Frederico Marés de Souza Filho -


As ditaduras latino-americanas de meados do século XX foram especialmente agressivas com as populações rurais. Povos indígenas, afrodescendentes, camponeses sofreram uma repressão sistemática e constante. Mesmo antes de iniciar o afrouxamento das ditaduras por volta dos anos 80, que não significou melhora na repressão ao campo, alguns advogados foram formando colegiados para defender os direitos violados. Chamavam-se Institutos, Núcleo, Coletivos, Grupos, Centros, com os mais variados nomes, mas sempre com a finalidade de apoio jurídico popular, em quase todos os países e de forma coletiva para haver apoio recíproco e uma espécie de auto-defesa. Os grupos se estenderam também para as cidades, onde a violação dos direitos sistema repressivo não eram menor, o e os Tribunais eram os mesmos.


Todos foram se vinculando às Universidades não apenas para aprofundar os conhecimentos, e os argumentos, mas também para ganhar autoridade acadêmica nas defesas sempre difíceis enfrentando advogados regiamente pagos, reconhecidos e famosos e um sistema judiciário pouco amistoso. Isto gerou muitas correntes do pensamento jurídico crítico, como direito alternativo, direito insurgente, positivismo de combate, pluralismo jurídico, jusdiversidade, etc. Foi então criada uma organização latino-americana que de certa forma unisse estes nós nacionais e locais em uma grande rede de defesa de direitos humanos, direitos coletivos e sociais e fortalecesse os advogados que mais tarde seriam chamados de populares. Foi nessa moldura que nasceu o Instituto Latinoamericano de Servicios Legales Alternativos, ILSA, com sede em Bogotá e que deu suporte a essa rede além de exercer forte influência no pensamento jurídico com as revistas "El Otro derecho" e "Beyond Law" e de muitas publicações periódicas, boletins, relatórios e livros importantes. A sede de ILSA era uma grande casa própria defronte ao Parque Brasil, Bogotá. Nos endereços sintéticos da capital colombiana era Calle 38, nº16-45 e com isto bastava para que nenhum motorista se perdesse, nem mesmo quem não conhecesse a cidade, mas tão somente a lógica de seus inteligentes endereços.


Era no casarão que ocorriam as longas reuniões da Junta Directiva de ILSA, formada por gente de diferentes regiões da América Latina, Chile, Brasil, México, Honduras, Argentina e, naturalmente, Colômbia. As reuniões eram longas, pesadas, mas amenizadas pela cordialidade colombiana que não deixava faltar café, bom café, frutas frescas e quitutes da culinária local. Por mais árido que fosse o tema, competia à Junta discutir finanças da organização, e por mais horripilantes os relatos das injustiças do continente, o clima era de concórdia mas não impedia que divergências surgissem, e surgiam. Durante muito tempo dirigiu a Junta na qualidade de Presidenta, Debra Evenson. Quem conhecia a história daquela mulher alta, esguia, sempre elegante e distante, não se deixava impressionar pela aparência suave e compreendia a facilidade que tinha em harmonizar divergências e diminuir o tom dos mais exaltados.


O fato que poderia parecer insólito para quem de fora do ILSA olhasse, era que Debra havia nascido em New Jersey, Doutora em Direito pela Rutgers Law School, professora na Universidade de Chicago e por anos com escritório na Wall Street. O que faria aquela imponente advogada e jurista entre defensores populares? Ninguém da Junta ou quem quer que fosse próxima a ILSA faria a pergunta. Todos que se aproximavam de Debra e conquistavam sua confiança e estendiam a conversa num espanhol que apenas em uma ou utra palavra denunciava a origem, a veriam em certo momento tirar uma carteira de uma grande bolsa e delicadamente escolher uma pequena e nítida foto em que aparecia com Nelson Mandela, já em liberdade, entre outras proeminentes figuras sul-africanas, os outros advogados do líder, mas na foto era visível a atenção dedicada à única branca presente. Se a conversa avançasse e o interlocutor tivesse sorte, Debra escolheria uma segunda foto, desta vez com Fidel Castro, com calor e estilo caribenhos entre abraços e risos. Esta é perigosa, dizia, não posso mostrar em meu país, e ria. Debra, como é próprio da advocacia popular, aceitava os clientes com a lógica de suas convicções e pagava alto preço por isso.



Debra Evenson e Fidel Castro.

A cada reunião anual da Junta chegava com uma lembrança cubana para os amigos, como uma pintura em pequena lâmina com a inscrição "cada loco con su tema", uma verdade gritante àquela gente que tinha escolhido nas carreiras da Justiça o lado dos por ela injustiçados. Como cada um que tinha seu tema e seus povos a defender, como loucos a quebrar tabus e enfrentar a ordem posta e imposta, Debra tinha o seu, o povo de Cuba. E, o que é mais dramático, as defesas eram perante os Tribunais pouco isentos do país que decretara total bloqueio econômico a Ilha. Isso mesmo, a Presidenta do ILSA era advogada do povo de Cuba, seus interesses e direitos, perante as violações perpetradas pelo gigante vizinho, nos Tribunais do gigante.


Entre muitas causas curiosas contava que um Tribunal havia impedido outros países de comprar rum cubano da marca Havana Club porque a marca havia sido registrada nos Estados Unidos por uma pessoa que não permitia seu uso por Havana. Estranhas coisas do Direito, Havana, a cidade, não podia emprestar seu nome para um rum, há muito tempo fabricado lá, porque o nome havia sido registrado, depois, nos Estados Unidos. Este Tribunal se dava ao luxo de impedir que Madrid e os madrilenhos bebessem rum Havana Club mesmo que Espanha não respeitasse todo o bloqueio imposto. Quem já entrou num Tribunal para defender alguém de chinelo e sem gravata é capaz de entender a dificuldade de Debra na Justiça de seu país, mas tanto fez e tantos inquestionáveis argumento apresentou que ganhou a causa e, finalmente, depois de muito tempo, quem quisesse poderia beber Havana Club fora de Cuba. Em homenagem a vitória obtida, a cada final de reunião repartia uma pequena dose de Havana Club, saída de uma garrafa muito bem guardada em sua enorme bolsa.


Debra vivia e amava Havana, onde efetivamente morava, mas tinha que atuar em Nova York e Chicago. Tinha dois vistos para entrar em Cuba e poder voltar aos Estados Unidos, um de Cuba, que a acreditava como residente permanente e com todos os direitos, uma espécie de cidadã honorária, e o outro, muito mais complexo, de seu país, que permitia, como cidadã estadunidense, entrar em Cuba e reintrar nos Estados Unidos sem muitos percalços. Visto estranho para um nacional entrar no próprio país sem ser muito importunado. É claro que podia trabalhar em Cuba como advogada, a permissão de viajar a Cuba era para isso, poderia estar em reunião com seus cliente e nada mais, nem pensasse em se aproximar de uma Corte Cubana. Debra nunca pensou em advogar em Cuba, mas era professora, e que boa professora era, mas estava impedida de lecionar em Cuba. Os professores e alunos de direito a encontravam meio escondidos, despistados, fora da Universidade para não dar na vista, temerosos de que a descobrissem ensinando. Cuba perdia com isso e as autoridades cubanas o sabiam, por isso facilitavam por diversas vias esses encontros. A proibição obviamente não era cubana, era expressa no visto estampado em seu passaporte. As autoridades dos Estados Unidos haviam escrito que sua autorização para entrar em Cuba não compreendia direito a trabalhar além de sua relação como advogada e cliente. Todo o mais estava proibido sob pena de alta traição, especialmente lecionar. Em geral são os países que proíbem ou permitem os estrangeiros de trabalhar. Com Debra era diferente, tudo com ela era diferente, o país estrangeiro queria que trabalhasse e seu país de origem não permitia. A vida de Debra era uma lição de Crítica ao Direito e quem estivesse por perto aprendia.


Que de tão perigoso ensinaria Debra? Possivelmente os meandros de Tribunais injustos e como enfrentá-los, mas isso os advogados populares da América Latina sabiam. A proibição era por pura maldade, a mesma maldade que Debra corajosamente combatia nos Tribunais do gigante.


Debra faleceu em agosto de 2011, em Chicago, onde lecionava. A Junta, os funcionários de ILSA e todos quantos a conheceram e ouviram, em Cuba, na Colômbia e no resto da América Latina, sabem que ela foi um exemplo para a advogacia popular porque juntava o conhecimento profundo à coragem inabalável e enfrentava os muito poderosos com a única arma que os povos têm, a verdade!

 

Carlos Frederico Marés de Souza Filho, professor de Direito da PUC-PR, é escritor e diretor do IBAP.

 

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