- Carlos Frederico Marés de Souza Filho -
O homem começou a caminhar pela calçada da longa avenida que começa perto do Porto e termina no Antigo Forte. Estava nas imediações do Porto e se dirigiu lentamente ao início da avenida. Apenas caminhava. Durante os mais de 500 anos de dominação colonial essa região tinha sido proibida aos nacionais. Não é que houvesse uma proibição formal, mas todos os que não fossem suficientemente brancos sabiam que se estivessem por ali teriam que explicar o motivo. E ele não tinha motivos, apenas caminhava. Nem mesmo tinha a intenção de chegar ao Forte agora transformado em Museu de História Nacional. A independência do arquipélago completaria três anos e por isso o acervo do Museu ainda era sobre o tempo colonial e as lutas de libertação, e tinha poucos documentos do longo tempo em que a principal ilha servira de entreposto de escravos sequestrados no continente e ali diligentemente separados, catalogados e escravizados para serem exportados para as Américas. O homem, entretanto, não pensava em nada disso enquanto caminhava pela calçada ladeada por casas sólidas e ajardinadas.
Caminhava por caminhar, o sol se poria em breve, mas daria tempo de chegar ao Forte, talvez mais adiante, até as praias urbanas, também proibidas. Lembrou que as praias já estavam cheias de crianças que começavam a nadar, coisa que entre os mais velhos só os pescadores que viviam meio escondidos em praias remotas podiam fazer. De repente, depois de uma pequena curva terminaram os jardins e um muro branco, alto e longo surgiu. O homem tentava imaginar que belezas esconderiam aquele muro e por quê? Reparou que muito mais adiante havia um portão, animou-se e até apressou um pouco o passo, pensou que se desse sorte, poderia espiar os tesouros escondidos. Ficou em dúvida, não tinha certeza de que estava permitido caminhar por aqueles lados da cidade, como nunca houvera uma proibição formal, tampouco tinha notícia de uma liberação formal, só sabia que as praias proibidas foram sendo usadas por mulheres e crianças depois da Independência, mas seria o mesmo com as ruas proibidas? E espiar para dentro do muro, poderia? O que haveria atrás do muro? Um segredo colonial? Quem sabe ainda um território português.
Animou-se com a possibilidade de espiar e caminhou resoluto, encontraria uma brecha no portão e ostensivamente espiaria o interior, se fosse enxotado, seguiria o caminho, afinal, não poderia ser tão grave espiar. Ou seria? Na dúvida sobre a gravidade do ato voltou a caminhar mais devagar. Quanto mais se aproximava do portão maior era a dúvida. Poderia encostar o olho na fresta ou buraco que imaginava encontrar? Por isso foi tomado de susto, quase pavor, quando ao chegar ao grande portão o encontrou totalmente aberto, exibindo despudoradamente seu interior.
Parou de súbito, assustado. Pensou que tinha ultrapassado todos os limites de ousadia e se perguntava porque ninguém o avisara que continuava proibido andar por aquelas ruas? Não é nada razoável, pensou, deixar o portão aberto numa rua de livre trânsito. Mas a curiosidade foi maior que o susto e olhou para dentro com os olhos atentos, queria ver tudo antes que ouvisse um grito, um apito ou até mesmo uma chicotada e, sobretudo, antes que fechassem o portão.
Era o antigo Clube Náutico Português com uma elegante construção baixa, pintada de branco, envidraçada, com muitas mesas e cadeiras e, àquela hora, com algumas pessoas sentadas, conversando, bebericando e comendo à sombra. A cena era tão tranquila que o homem esqueceu o perigo, relaxou e observou. Mas, de onde estava na calçada, no começo do portão, podia ver apenas o lado direito do pátio empedrado do Clube, com a construção, o bar e as pessoas e, nem mesmo a casa toda podia ver. A curiosidade o empurrava para uma posição em que pudesse ver mais, mas a prudência o alertava que ao avançar seria visto pelo porteiro que, seguramente, estaria do lado esquerdo do portão. Tinha tido sorte, afinal, chegara pelo lado certo e de onde estava não podia ser visto pelo porteiro.
Vacilou. Sabia que se demorasse muito o portão se fecharia ou ele seria enxotado, até preso, quem sabe? Correu o risco e adiantou decididos passos para o centro do portão. Viu o mar, as pedras que o antecediam, e o pátio. Para sua surpresa, não havia porteiro, nem guarda, nem ninguém para fechar o portão. Estava a um metro da divisa entre calçada e o pátio, com dois, três passos no máximo, poderia entrar nos domínios do Clube. O homem estava tenso, todos os músculos enrijecidos, mas tinha perdido o medo. Ao dar o segundo passo pisou a divisa entre o que achava ser o público e o privado, sentiu prazer em deixar estar aí, o calcanhar na calçada e a ponta no pátio. Nesse exato momento sentiu pessoas a seu lado e os músculos retesaram ainda mais, mas não se moveu. Um casal jovem e duas crianças entraram descontraídos no Clube e o cumprimentaram. Demorou para entender o que acontecia e respondeu o cumprimento com voz baixa e só depois que a família já estava a mais de 5 passos de distância, os acompanhou com a vista até se sentarem a uma mesa redonda, eram as únicas pessoas brancas no bar, notou.
Deu mais um passo, desta vez decididamente largo e pode ver todo o interior do pátio. A esquerda, muito perto do muro havia uma grande piscina de água azul. O homem pousou o olhar na piscina, nunca tinha visto uma antes e lhe pareceu um objeto estranho e demorou muito para entender para que serviria. Reparou que as pedras do piso eram lisas, claras e se encaixavam perfeitamente, deixando espaços aqui e ali para pequenos jardins, perto do mar uma grande caroceira oferecia uma tranquila sombra equipada com um convidativo banco branco. Era agradável ver o conjunto.
O homem voltou a vista para a piscina e reparou os guarda-sóis, espreguiçadeiras, cadeiras e pequenas mesas. Todas vazias, as pessoas estavam no bar. Já tinha visto a cena completa e estava satisfeito, mas com a confiança adquirida se dirigiu à piscina para vê-la de perto, dando as costas para as pessoas, garçons e todos que pudessem estar no bar. Em ousada extravagância se pôs em pé, meio arcado, debaixo de um guarda-sol, a piscina ao alcance da mão. A cada gesto imaginava violar uma restrição. Viu, então, um homem com avental branco sair de uma porta de trás do bar, embora estivesse longe, pode ver a grande faca que carregava em uma das mãos. Agora sim, tudo voltaria ao normal, seria enxotado, o portão se fecharia e receberia um alerta contundente para não andar em vão por aquele lado da cidade. Se tivesse sorte ficaria por isso mesmo, pensava enquanto o homem do avental branco caminhava, mas, para mais uma surpresa, viu o homem sentar-se relaxadamente no banco à sombra da caroceira, acomodar a faca e puxar um cigarro do bolso interno, era o cozinheiro, percebeu. As ondas de fumaça subiam e se perdiam na caroceira, e o cozinheiro as vezes voltava a cabeça para o lado do homem. Debaixo do guarda-sol estava tenso e, talvez por isso ou porque evitou olhar diretamente ao cozinheiro, não reparara que ele estava sorrindo.
O cozinheiro terminou de fumar, olhou detidamente o homem, sorriu, levantou-se e voltou ao trabalho. O homem saiu de baixo do guarda-sol e se dirigiu a uma espreguiçadeira, nunca vira uma igual, era de madeira branca, mas intuiu para que servia enquanto, com o rabo do olho viu que outro homem saia da cozinha, agora parecia um garçom, que também veio fumar na sombra, já não se preocupou. Ganhou tanta confiança que sentou-se na espreguiçadeira, relaxou, levantou os braços e pôs as mãos sobre a cabeça, fechou os olhos, o sol se pôs. Quanto tempo teria se passado, o homem não saberia dizer, mas tinha certeza que, embora relaxado, não tinha dormido, ouvira o mar batendo nas pedras e intuíra o movimento suave da água da piscina. Se alguém pudesse observá-lo de perto, veria que os olhos estavam fechados, mas era visível um sorriso a lhe iluminar o rosto, sua alma estava enlevada e as pálpebras baixadas, a respiração tranquila e o sorriso estampado nos lábios revelavam uma profunda paz interior. Ficou assim, sem pensar em nada.
De repente levantou-se e, num gesto que surpreendeu a si mesmo, espreguiçou-se larga e lentamente. Olhou para todos os lados, já era noite, sem lua, as luzes do Clube de tão fartas revela com mais nitidez que o bar estava mais movimentado e a família branca, a única, continuava lá. Ficou muito tempo admirando as luzes e o contraste com a escuridão infinita do mar. A escuridão era sua velha conhecida. Então resolveu voltar à calçada. Acenou ao bar em despedida, mas não esperou, nem notou qualquer resposta. Lentamente atravessou todo o pátio, como dando tempo que alguém o alertasse para não voltar. Nada aconteceu. O portão continuava aberto e se viu novamente na calçada. Parou de costas para o Clube admirando as ruas iluminadas. À sua frente nascia a larga avenida de majestosas casas, morada das autoridades coloniais, quem as ocuparia agora?
Não sabia para onde ir. Voltar ao Porto, seguir até o Forte ou caminhar na avenida apreciando as elegantes casas portuguesas, conferindo quem as ocuparia agora, até chegar à rotunda onde estava o cinema, a rua para o Mercado, a rua do Palácio, poderia escolher qualquer caminho mas não queria decidir, nem mesmo estava em dúvida, apenas pensava nas opções e mentalmente percorria os caminhos por onde nunca antes havia andado, olhava o futuro. Estava envolto nesses pensamentos quando viu passar ao seu lado a família branca que deixava o Clube, todos lhe desejaram boa noite, o homem, agora, respondeu pronto, alto e sonoro "boa noite senhora, boa noite senhor, boa noite miúdos", todos se voltaram, os adultos com sorridente e respeitoso aceno de cabeça e os dois meninos com efusivos acenos de mão.
O homem viu a família se distanciar na rua iluminada e, levantando a cabeça e erguendo os braços aos céus, gritou tão alto que pudesse ser ouvido por todos os continentes e mares, não apenas por seu arquipélago: “Sou livre!”
Carlos Frederico Marés de Souza Filho, professor de Direito da PUC-PR, é escritor e associado da APRODAB e do IBAP.
Lindo conto ! Quantos medos passados ... e é preciso ousar para ser livre ! Me senti parte dessa angústia.