- Guilherme Purvin - Fernando Walcacer - José Nuzzi Neto
Em entrevista à Folha, Rubens Ricupero afirmou que a China não vendeu os equipamentos médicos ao Brasil em retaliação ao nefasto descontrole verbal de membros da família Bolsonaro. Corretamente, afirmou que as acusações de Eduardo Bolsonaro alienaram “a simpatia da única grande fonte possível de obtenção de material médico-hospitalar para combater a doença, a China”. E segue neste diapasão:
“Quando o ministro da Saúde se queixa de que os chineses preferiram entregar aos norte-americanos o material já contratado pelo Brasil, é preciso perguntar-se: por que o governo chinês faria isso ou deixaria que isso acontecesse se estivesse satisfeito com seu relacionamento com o Brasil? (...) É óbvio que Bolsonaro está começando a colher o que semeou ao acusar ou deixar que seu filho acusasse a China de ser responsável pela pandemia (...). Num momento como este, no qual todos países tentam obter dos chineses os mesmos fornecimentos escassos, é evidente que o governo chinês escolherá os beneficiados de acordo com seus próprios interesses ou pela qualidade e intensidade do relacionamento bilateral” (Fonte: Jamil Chade - UOL)
Não cremos, porém, que os fatos recentes (equipamentos não entregues aos estados do Nordeste) sejam necessariamente consequência direta do destempero da extrema direita no poder.
Relembrando a verborragia tóxica e a reação da diplomacia chinesa
Retomamos alguns dados recentes e que acabam sendo soterrados pela avalanche diária de novas informações. Tudo teria tido início em declaração feita no dia 18 de março de 2020 pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro nas redes sociais:
“Quem assistiu Chernobyl vai entender o que ocorreu. Substitua a usina nuclear pelo coronavírus e a ditadura soviética pela chinesa. [...] +1 vez uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas. [...] A culpa é da China e liberdade seria a solução”.
Existem, de fato, certas analogias entre os dois episódios. O desastre da Usina de Chernobyl, na Ucrânia, teve gravíssimas consequências e em boa parte decorreu do medo dos engenheiros que a comandavam em reportar o acidente às autoridades soviéticas. O prefeito de Wuhan também teria vacilado antes de expor às autoridades chinesas o grau de propagação de um vírus em sua cidade.
Esta simples analogia foi suficiente para o deputado tirar uma conclusão totalmente injusta e contraditória: (1) A culpa é da China (pois é verdade que o prefeito vacilou); (2) Logo, se o país fosse livre, o mundo teria evitado esta tragédia (o que é duvidoso, pois nenhum país conseguiu evitar a pandemia, mesmo após meses da notícia do fato).
Como era previsível, a declaração gerou um grave incidente diplomático com a China. Seu embaixador no Brasil, Yang Wanming, declarou:
“A parte chinesa repudia veementemente as palavras do deputado, e exige que as retire imediatamente e peça uma desculpa ao povo chinês”.
Ato contínuo, a Embaixada da China postou resposta no perfil do próprio deputado:
“As suas palavras são extremamente irresponsáveis e nos soam familiares. Não deixam de ser uma imitação dos seus queridos amigos. Ao voltar de Miami, contraiu, infelizmente, vírus mental, que está infectando as amizades entre os nossos povos”.
Tanto o deputado federal como o Ministério das Relações Exteriores tentaram recuar. O Ministro Ernesto Araújo afirmou que as palavras do deputado não refletiam a posição oficial do Governo do Brasil, mas, de forma inoportuna e temerária, assumiu uma postura de enfrentamento, afirmando que a reação da China à declaração de Eduardo Bolsonaro teria sido desproporcional à ofensa.
O deputado também recusou-se a pedir desculpas pela insensata declaração, afirmando tão somente:
“Jamais ofendi o povo chinês, tal interpretação é totalmente descabida. Esclareço que compartilhei postagem que critica a atuação do governo chinês na prevenção da pandemia principalmente no compartilhamento de informações que teriam sido úteis em escala mundial”.
Possíveis consequências do destempero verbal do deputado
Passam-se duas semanas e um carregamento de equipamentos médicos, encomendado à China por Estados da Região Nordeste do Brasil, é cancelado e é adquirido pelos EUA.
Rubens Ricupero afirmou que o Brasil estaria colhendo os frutos semeados pelo deputado federal e filho do Presidente da República. Esta explicação é bastante plausível: falou mal da China, a China dá preferência aos EUA. Só não responde a uma pergunta: os EUA falam bem da China?
Ricupero foi o protagonista de célebre episódio em setembro de 1994, época em que as transmissões televisivas ao vivo do exterior só eram acessíveis por quem tivesse uma antena parabólica em casa. Em entrevista para a Rede Globo, a emissora deixou acidentalmente escapar uma afirmação ao seu cunhado e jornalista Carlos Monforte: "Eu não tenho escrúpulos; o que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde".
Ricupero provavelmente sabe que as bravatas e destemperos verbais de um deputado extremista de direita de um país do tamanho do Brasil não seriam capazes de gerar um efeito tão perverso. No entanto, não tem escrúpulos de, com a mesma pobreza de raciocínio que seu antagonista, simplificar os fatos e ocultar a evidência de que, por detrás do cancelamento da venda dos equipamentos hospitalares, há uma potência bélica e econômica, comandada por outro extremista de direita que, desde sempre, adotou como lema a frase: a América em primeiro lugar.
Sob a perspectiva estritamente econômica, a venda dos equipamentos aos EUA teria sido mais vantajosa às empresas chinesas: pagamento à vista e por um preço melhor. Talvez se possa até cogitar de que os EUA seriam um parceiro infinitamente mais interessante para a China do que o Brasil – mas não irei especular sobre esta questão, pois exigiria uma análise do que os EUA têm a oferecer ao povo chinês além de dinheiro. É preciso avaliar se, objetivamente, o Brasil continua sendo um parceiro interessante para os objetivos da China no momento, até porque ela já é dona de metade de nossas riquezas minerais e da nossa soja.
As declarações de Eduardo Bolsonaro, o deputado mais votado do Brasil em 2018 (1.843.735 votos), seriam, então, inócuas? É claro que não! Elas conspurcam o relacionamento com o mais importante parceiro comercial do país e certamente tiveram uma consequência imediata de conturbar ainda mais o cenário político interno brasileiro. Elas geram efeito nefasto no plano da política cultural chinesa, que busca por iniciativas soft de sedução, trazer aos poucos um pouco de sua forma de pensar aos seus parceiros, sem o que nenhuma colonização seria factível. E, de toda sorte, não é apenas Ricupero que ressalta a relação entre a postura do Clã Bolsonaro e a parceria do Brasil com a China. Vide, a respeito, o artigo Escalada na crise diplomática com a China, maior parceiro do Brasil, publicado na CONJUR.
Não desprezamos, porém, um fato: declarações como a de Eduardo Bolsonaro ou as ridículas postagens do abjeto ministro da Educação Weintraub facilitariam muito a vida da China na tomada de decisões comerciais extremamente antipáticas e desumanas, caso essas decisões viessem efetivamente a ser tomadas unilateralmente pela China. Por isso, é tentador acolher a versão simplificada de Rubens Ricupero.
Imagine-se a dificuldade que teria aquele país de optar por uma venda aos EUA, em detrimento de nosso país, numa época como a de João Goulart, quando Brasil e China estreitavam relações – ato que incomodou os EUA e que contribuiu para a deflagração do golpe de 1964. Ou, mais recentemente, quando o Brasil e a China, com a Rússia e a Índia (e posteriormente a África do Sul) criaram o BRICS.
Não se trata, porém, apenas de lucro com a venda de 150 ventiladores pulmonares. Trata-se de fortalecer relações bilaterais — e, na prática, trabalhar para as vítimas estadunidenses fortalece o vínculo com os EUA, cujo presidente, Donald Trump, nunca mediu esforços em ver o gigante asiático como um adversário e não como um parceiro.
O que é bom para a lógica de Ricupero ele fatura, o que é ruim ele esconde. Desconsidera, por exemplo, que o adquirente dos equipamentos não era o governo federal, mas os estados brasileiros que vêm se postando ao longo dos últimos anos como focos de resistência democrática à ascensão do fascismo no país.
Nova manifestação da China [Atualizado em 06.04.2020] No dia 4-4-2020, o Consul da China no Brasil publicou carta contundente e lúcida, confrontando os pronunciamentos do deputado Eduardo Bolsonaro (Fonte: Revista Fórum).
Logo surgem questionamentos: Sim, a carta pode ser boa, mas o consul se esquece de explicar por que a China deixou de cumprir o contrato e mandou as encomendas a um comprador que lhe oferecia mais vantagens. Cabe lembrar aqui: consulados não são embaixadas (a anedota trágica no romance O Consul Honorário, de Graham Greene, exige que se saiba a diferença entre as duas instituições).
Ponderar que a venda ocorreu simplesmente porque tinha a garantia de receber pelo que estava vendendo ou porque ofereceram melhor preço exigiria um debate num nível maior de complexidade. Afinal, neste caso a China estaria adotando os mesmos padrões da lógica capitalista.
Muito além dos limites do Twitter
Cabe aqui indagar: estaremos munidos de todas as informações para tirarmos alguma conclusão a esse respeito? Acabam de surgir notícias de que não foram apenas os estados do Nordeste brasileiro que se viram prejudicados com o desvio dos equipamentos, mas também a Alemanha e a França.
Pensar em atos de força (militar e econômica) por parte do governo norte-americano, em benefício de sua própria população, é algo que faz muito mais sentido do que cogitar dos efeitos das bravatas verbais do círculo mais próximo do presidente da república (seus filhos e os ministros da Educação e das Relações Exteriores).
O futuro do Direito Internacional Público não está nas mãos de um ex-investigador de polícia de um país sul-americano, por mais tóxico que seja seu discurso no Twitter
O melhor é dar o benefício da dúvida à China. As declarações de seus embaixadores e cônsules não indicam que o nosso parceiro do BRICS tenha, deliberadamente, adotado a lógica de um neoliberalismo extremo. Por outro lado, ao longo dos últimos setenta anos (pelo menos), é bem plausível cogitar de atos de pirataria dos EUA contra seus países aliados. De acordo com o Globo, as autoridades alemãs disseram que 200 mil máscaras teriam sido desviadas para os EUA após determinação de Trump. A empresa 3M informou que Trump pediu que a empresa pare de exportar para o Canadá e a América Latina máscaras do tipo N95 fabricadas nos EUA. (Fonte: O Globo)
Há um ano e meio, 1,85 milhão de pessoas escolheram um deputado que traz em seu currículo a ameaça a uma jornalista (Patrícia Lélis), ao Supremo Tribunal Federal (basta um soldado e um cabo) e a toda oposição ao seu pai (a edição de um novo AI-5). Quando estamos na iminência do caos e da morte de centenas de milhares de brasileiros, só podemos dizer que as escolhas têm, sim, consequências, mas sobretudo no plano interno. Quanto às relações do Brasil com a China, ao que parece, estão realmente num elevado grau de deterioração, mas a verdade é que a pirataria, uma vez adotada pelos EUA, derrui as bases da civilização planetária que, no plano jurídico, é expressa pelo Direito Internacional Público. Não teremos médicos cubanos nem equipamentos chineses, mas quem terá?
Em tempo: a Argentina, outro país governado por um desafeto de Bolsonaro (que envolveu-se na campanha pela eleição do candidato derrotado), acaba também de bloquear a exportação de mil respiradores pulmonares para o Brasil (Fonte: UOL). Isso, porém, não significa que o bloqueio seja uma retaliação: trata-se de um salve-se quem puder. E não estamos fazendo absolutamente nada para nos salvarmos! Nem tudo na vida pode ser explicado com os 280 caracteres de um post no Twitter.
Enquanto isso, as perguntas cruciais não são feitas pelo jornalismo e pelos tuiteiros e viciados em WhatsApp: Por que não são convocadas as indústrias brasileiras para produzirem equipamentos hospitalares e de proteção individual dos trabalhadores (EPIs)? Nas águas pestilentas do neoliberalismo, até mesmo o art. 170, inciso III, da Constituição Federal, que determina que a iniciativa privada é orientada pelo princípio da função social da propriedade, é solenemente ignorado em prejuízo direto da vida dos brasileiros.
[Atualização em 06.04.2020] A Embaixada da China não deixou passar despercebida a desprezível mensagem do Ministro da Educação. Em mensagem dura, muito embora limitada a dois "tuítes", alerta que sua paciência está chegando ao fim. O Governo Bolsonaro está oferecendo todos os argumentos para levar o Brasil a uma tragédia muito maior do que a pandemia. No entanto, a maior parte dos brasileiros, consultada pela Folha, reprova a renúncia imediata do presidente.
Guilherme Purvin, escritor e advogado, é formado em Letras e Direito pela USP. Procurador do Estado/SP Aposentado, é secretário-geral do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública e coordenador geral da APRODAB.
Fernando Walcacer é advogado e professor da Faculdade de Direito da PUC/Rio. Procurador do Estado/RJ Aposentado, é vice-presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública.
José Nuzzi Neto é Procurador Autárquico (DAEE-SP) e Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública.
Ótima análise feita por Guilherme, Walcacer e Nuzzi . Destaco, para efeitos práticos, o chamamento do parque industrial nacional para produzir os EPIs e os equipamentos de que necessitamos agora, cumprindo a sua função social.
Purvin, Walcacer e Nuzzi acertaram na mosca. É tão falaciosa quanto irresponsável a fala de Recúpero que pensa com a lógica de picareta de carro, aliás, a mesma lógica do capitalismo sem escrúpulos, mas lucrativo.
Excelente reflexão de Purvin, Walcacer e Nuzzi. Evidencia o quanto explicações simplistas escondem mais do que parecem. Parabéns!