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GUERRILHEIROS APOCALÍPTICOS

-RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO-


Quando se procura escrever sobre qualquer tema atual, corre-se sempre o risco de parecer que se está a negligenciar o restante dos problemas: assim, as queimadas na Amazônia e o antidiplomático, belicoso, mesmo, discurso do Chefe do Executivo brasileiro na Assembleia Geral da ONU; a “bala perdida” que vitimou, no Rio de Janeiro (o mesmo em que o Governador banca o Coronel Kilgore do filme “Apocalypse Now”, de Francis Ford Coppola), uma criança de oito anos que cometeu o pecado de ter nascido no lugar errado, justamente aquele em que, quando alguém sofre uma morte violenta, a primeira indagação é a respeito da biografia do morto para se saber se ele “mereceu” [aqui]; a votação da (quarta) reforma da previdência, aumentando as restrições das que a precederam, como se até então tivesse havido um aumento dos benefícios para além da capacidade do erário e não a respectiva restrição; a descoberta, por parte dos professores, de que na realidade ganham muito mais do que o respectivo contracheque informa, vez que o Ministro da Educação assim o disse e quem o contestar só pode ser um perigoso “doutrinador comunista”; a “militarização” do ensino público fundamental e médio [aqui]; o recrutamento de professores pelo critério da fidelidade aos superiores como prevalecente ao conhecimento da matéria [aqui]; a tentativa de desconstituir a seriedade da preocupação da menina Greta Thunberg como “manipulação espúria”, como se o nosso modo de vida na sociedade urbanizada de consumo não estivesse a conduzir a capacidade de o mundo se recuperar ao colapso em pouco tempo [aqui]; a conclamação feita pela Ministra da Mulher e dos Direitos Humanos a que os líderes do mundo se unissem em defesa das tradições cristãs ameaçadas por grupos tidos como espúrios pelo pensamento conservador e pela onda de imigrantes [aqui]; o ataque a Fernanda Montenegro em razão de sua posição contrária a um cada vez mais provável auto-de-fé [aqui]; a confissão, da parte de uma antiga alta autoridade, de planos homicidas não concretizados em relação a um Ministro do Supremo Tribunal Federal [aqui]...


Com uma lista tão grande de problemas, a escolha de um pode parecer deixar de lado os demais e, por outro lado, a impressão que se tem é que se pode estar a dar ênfase a um aspecto secundário, voltado à distração, em face de algo que se mostra mais profundo. Algo que se assemelha à guerra irregular, em que se procura cansar o inimigo atraindo-o para combates inesperados, de tal sorte que ele não tenha condições de enfrentar batalhas decisivas.


Se algumas das questões, conquanto graves, se mostram evidentemente voltadas a distrair – como, por exemplo, a grosseria dirigida pelo Presidente brasileiro, secundada pelo Ministro da Economia, à Primeira-Dama francesa ou a famosa frase do “rosa” e “azul” para qualificar as cores naturalmente destinadas ao sexo feminino e masculino -, outras tocam em questões que afetam valores fundamentais: dizer que índios usurpam as terras que deveriam ser destinadas à mineração é uma questão principal ou é uma questão voltada a ocultar a entrega do comando da base de Alcântara aos EUA? A “militarização” das escolas é uma questão principal ou é uma medida que se volta a distrair das negociações feitas em torno da reforma da previdência?


Se existe – recordando o comentário de Polônio a respeito de Hamlet, na tragédia shakespeariana - algum método na loucura, este está precisamente em se deixar os adversários perplexos, não lhes permitindo identificar um foco em que concentrar as críticas.

Ataques a pautas identitárias, muitas vezes em termos chocantes, podem vir a distrair do esvaziamento de uma pauta que atinge tanto os grupos vulneráveis em função de determinados traços comuns – raça, orientação sexual, religião – quanto os que integrem, simplesmente, o grande conjunto dos que não tenham o comando sobre os bens de produção, como ocorreu com a fiscalização do trabalho escravo e das violações à legislação ambiental, sobre as quais passou, a partir da edição da Medida Provisória 881, de 2019, convertida na Lei 13.874, de 2019, a pairar a presunção de arbitrariedade.

Se o Livro que encerra o Novo Testamento fala em Quatro Cavaleiros – Fome, Peste, Guerra e Morte –, hoje bem se pode falar que o combate a peito aberto, em que os meios leais contariam, faz parte dos ideais de um passado que não se compatibiliza com as exigências de rapidez dos agentes do mercado: somente com a tática de guerrilhas, deixando os obstáculos humanos perplexos, é que se pode operar com eficiência o milagre da mais ágil multiplicação dos números. Ao invés de Quatro Cavaleiros, cada um dos flagelos do Apocalipse se manifesta, por si mesmo, em várias pequenas unidades atacando ora simultaneamente em frentes diferentes ora em momentos alternados, para não deixar descansar os obstáculos...


Claro que esta perplexidade tem um lado positivo: textos de grande valia têm sido publicados, apontando as diversas facetas da irracionalidade. Só nesta revista, vale a pena citar a reflexão de Carlos Marés de Souza Filho acerca da tradução da palavra “democracia” para o oligarquês [aqui], o texto de Rui Vianna acerca do questionamento de quantos mais teriam de tombar nos “raids” realizados sobre os “suspeitos de costume” [aqui], o comentário de Max Kucera Neto ao alerta cinematográfico acerca da construção de um país que baniu o diálogo por parecer a fraqueza de admitir que o inimigo pode não ter de pedir permissão para existir [aqui], a constatação de Valquíria Ferrão Antunes sobre a vanglória da ignorância e, mesmo, do primitivismo [aqui], a denúncia da naturalização da barbárie e da trapaça feita por Guilherme Purvin de Figueiredo [aqui], entre tantos outros igualmente meritórios.


Entretanto, esses textos de grande valia são a boa resposta a uma realidade que acena com o culto à força e à crença cega, à rejeição da ciência quando não corrobore certezas predefinidas e à rotulação de compromisso com “ideologias espúrias” a quanto aponte para problemas na linha de conduta adotada atualmente no Brasil. Algo semelhante a canções que vieram a lume nos primeiros anos da Ditadura instalada em 1964, como a sempre lembrada “Para não dizer que não falei de flores”, de Geraldo Vandré, “Sabiá”, de Antonio Carlos Jobim e Chico Buarque, “Pesadelo”, de Paulinho Tapajós, e tantas outras.


Mas estas “boas respostas” podem passar despercebidas se vingar a noção do “bom patriota”, do “verdadeiro patriota”, que acha que do Hino Nacional brasileiro sabe a letra parnasiana e a música inspirada no “bel canto”, e vibra, no entanto, de civismo quando se fala em privatizar a Petrobrás, como se a dependência do petróleo da nossa sociedade fosse, hoje, menor do que era aos tempos em que Monteiro Lobato dedicava seu intelecto e sua energia a mostrar que o hidrocarboneto em questão não tinha qualquer aversão ou medo à bandeira brasileira, e por tal luta chegou a ser preso por ordem do Ministro da Guerra do Estado Novo, General Pedro Aurélio de Góes Monteiro.


Não é casual que obras como “Hans Staden”, “História do mundo para as crianças”, “Geografia de Dona Benta”, “O poço do Visconde”, “História das invenções”, “A chave do tamanho”, sejam tidas, hoje, como não relevantes na bibliografia do escritor paulista, tendo em vista que se tem – erroneamente – convertido, nos últimos tempos, em um ícone da direita, já que proposições nelas contidas se põem precisamente dentre as que, nos tempos atuais, são combatidas como expressões de quem “deseja sabotar o futuro brilhante da nação”. Condenar as “boas respostas” a não serem “ouvidas” faz parte, também, da guerrilha do Apocalipse. O lamento de Fernando Brant, posto em música por Lô Borges em 1972, vem à mente:


Mensageiro natural, de coisas naturais...quando eu falava dessas cores mórbidas, quando eu falava desses homens sórdidos, quando eu falava desse temporal, você não me escutou! Você não quis acreditar, mas isso é tão normal...” [Paisagem na janela].

 

RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO - Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP)



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