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Por um mundo sem racismo

Carlos Marés


Ilustração: Ibraim Rocha. Tratamento gráfico: Guilherme Purvin


No centro de Curitiba, logo atrás da Catedral, há um charmoso largo de solo empedrado, cujos paralelepípedos se juntam em círculos concêntricos envolvendo um antigo bebedouro para cavalos do então exuberante comércio local. Eram muitos os pretos escravizados que circulavam por ali carregando fardos e pacotes, materiais e mantimentos ou tomando as rédeas de carroças e charretes, sempre sob olhares ameaçadores de homens de chibata em punho. Tantos eram os pretos que foi autorizada a construção de uma pequena Igreja, construída por eles mesmo nas horas de descanso, que eram poucas e ainda assim com a necessária autorização de amos falsamente piedosos.


A Igreja se chamou Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e foi inaugurada em 1737. Muito oportuna a inauguração, assim os pretos ficariam a uma distância prudente da oligarquia que frequentava a Catedral ao lado. Escravizados ou não entravam na Igreja para orar, venerar e, sempre que possível, conspirar. A oração já seria, em si, uma conspiração, porque o principal pedido a Nossa Senhora haveria de ser a liberdade, o fim da chibata, a vida celebrada em festa. O simples sonho de liberdade era crime de conspiração. Igualdade, nem se fala. A pouca claridade da Igreja e a voz baixa deixava menos impossível a organização da rebeldia. E os pretos entravam e saiam rápido e com as esperanças renovadas.


Cento e cinquenta anos depois da inauguração foi abolida a escravidão e os pretos expulsos do centro de Curitiba e do agitado largo do bebedouro, com empregos negados e trânsito limitado, foram jogados em longínquas periferias onde não pudessem ser vistos na cidade que se jactava europeia. Não que houvesse uma lei ou determinação, apenas a ordem velada e sempre cumprida pela polícia de inquirir, como fazem até hoje, a razão de pretos vagarem pelo centro. Tinham, e ainda tem, que explicar porque andavam por lá e orar na sua Igreja já não era motivo, já não era mais dos Pretos, nem no nome, Nossa Senhora do Rosário passou a se chamar e, simples e charmosa, com o tempo se tornou atração turística no coração do centro histórico da cidade embranquecida por anos de políticas estruturalmente racistas.


A força que expulsou as gentes livres para a periferia e que trocou o nome da Igreja é o racismo estrutural, condenação da raça na concepção estrutural da sociedade. As gentes de pele preta entenderam que não basta liberdade, ou não existe liberdade quando a igualdade é negada. A resistência, a mesma surda resistência do tempo da escravidão, mais de cento e trinta anos depois, continuou mais dura ainda e o racismo foi negando a existência e os direitos dos que construíram o bebedouro e a singela Igreja. O racismo, inerente à escravidão, continua perseguindo e matando.


No dia 5 de fevereiro deste ano de 2022 um grupo em Curitiba resolveu protestar contra os assassinatos de Moïse Kabagambe e Durval Teófilo Filho. Justo protesto! Ambos assassinados por racismo, sem nenhuma outra causa que a cor de suas peles. O assassino de Durval declarou que atirou porque achou que seu vizinho era um criminoso. E por achou que era um criminoso? Pela cor da pele, claro! E os brutais assassinos de Moïse apenas disseram que ele estava incomodando. Não poderia ser mais justo o protesto! Aliás, houve e ainda há protestos por estes assassinatos, e muitos outros com mesma causa, no Brasil inteiro. Era nada mais que a continuidade da resistência tratada em voz baixa no interior da Igreja dos Pretos nos tempos da escravidão. Onde deveria ser o protesto? É claro que não poderia haver melhor lugar que o largo defronte da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Só que agora, porque mudaram os tempos -mudaram?-, o protesto não se faria em cochichos no interior escuro da Igreja, mas a pleno pulmão à luz do dia, na rua. Incomodando mais, é verdade.


Era final de tarde daquele sábado de verão. Havia missa. O barulho da rua, os discursos, as palavras de ordem, vozes bradando os nomes de Moïse e Durval incomodaram o Padre. A porta principal, a que dá para o largo, estava fechada, mas o Padre saiu pela lateral e se dirigiu aos manifestantes pedindo para que se calassem, não se tem notícia do modo nem das exatas palavras do Padre, se sabe, porém, que os manifestantes, em coro, o chamaram de racista. Ele fez um sinal de positivo com os dedos e voltou para o interior da Igreja, o protesto continuou. A missa acabou, os paroquianos saíram e a porta lateral continuou aberta, como de costume. As Igrejas católicas mantém as portas abertas e a entrada franqueada.


Alguns integrantes do protesto, então, entraram na Igreja, os de crença oraram pela alma dos assassinados, os céticos refletiram sobre a violência cotidiana que os matou. Assim como entraram, com os próprios pés e vontade, em pouco tempo voltaram ao largo. Eis os fatos. O padre, que tinha sido chamado de racista, divulgou imediatamente, por meios eletrônicos, que a Igreja havia sido invadida por uma horda de vândalos, profanadores da fé e sedentos de vingança. O Ministério da Justiça instou o Governador que acionasse a sua polícia para apurar os crimes cometidos. O Governador deu a ordem para a polícia chamando o ato de “crime religioso”. O gabinete do ódio e seus tentáculos virtuais começaram um massacre sistemático aos terríveis invasores de recintos sagrados. Muita gente ingenuamente acreditou, outros divulgaram.


Entre os que protestavam estava um vereador de Curitiba, jovem e aguerrido vereador, Renato Freitas, que pela cor da pele e posição que ocupa foi, e está sendo, execrado como o principal alvo, e de tal forma apontado como vândalo que poucos duvidariam que a fogueira seria pena leve para os atos praticados. O pelourinho foi lembrado. Contra ele foi apresentada uma queixa-crime e os colegas de Câmara Municipal instalaram uma comissão formal para cassar seu mandato por falta de decoro. É grave invadir e depredar uma Igreja, conspurcar a sacralidade do recinto e dos símbolos e ameaçar pessoas por professar uma religião, católica ou de matriz africana. É quase tão grave quanto chacinar Moïse e abater a tiros Durval.


Só que nesse caso a Igreja não foi invadida. A porta estava aberta e não é costume católico exigir licença para entrar nos templos, nem mesmo em grupo. Aliás, por essa porta da Igreja dos Pretos frequentemente ingressam turistas em grupos, brancos e menos devotos que os que protestavam. Como os turistas, o grupo ficou pouco tempo, diferente dos turistas, oraram. Bem, alguns turistas também oram ao entrar em Igrejas. Nenhum banco foi sequer riscado, nenhuma imagem foi sequer afrontada, nenhuma pessoa foi ameaçada, nenhuma crença negada. É verdade que o padre foi chamado de racista, mas do lado de fora. Nenhum dos manifestantes entrou na Igreja por desprezo à crença ou aos que a professam. Não houve profanação.


Se Nossa Senhora, vestida de Rosário dos Pretos, chegasse naquela hora, certamente abençoaria o grupo, entenderia a justeza do protesto e apoiaria a causa da liberdade e da igualdade reclamadas. E seu filho não faria diferente, nem seu representante na terra, Papa Francisco. Não haveria sequer necessidade de perdão, não houve pecado. Renato Freitas, cristão, pediu perdão. Ainda não foi perdoado pelos homens e há sérias dúvidas que o seja. A estrutura racista da sociedade deseja trucidá-lo para que não volte a incomodar com protestos contra assassinatos, perseguições e manifestações de racismo. Renato não está sendo perseguido agora, neste episódio, Renato é perseguido pela cor de sua pele e por sua bravura insurgente. A mesma bravura reconhecido pela cidadania que o elegeu vereador é entendida como ameaça aos privilégios, como perigos de mudanças, como risco de igualdade.


Assim caminha Curitiba e o Brasil: a saudade da escravidão continua na alma e na mente de que tem poder. Renato Freitas não quebrou o decoro parlamentar, nem o decoro cidadão, participou de um justo protesto seguindo a tradição de Zumbi, Dandara, Toussaint Loverture, Luiz Gama, é um guerreiro da igualdade e da liberdade. Sofre o destino de homens e mulheres inconformados com a injustiça do mundo, é perseguido, mas indispensável para haja um mundo melhor e mais justo.


Moïse e Durval presentes! Vida longa a Renato! Por um mundo sem racismo!

 

Carlos Marés é membro do IBAP, Professor de Direito Socioambiental da PUC-PR. Foi Procurador Geral do Estado do Paraná por duas vezes.




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