-PAULO VELTEN-
Michel Foucault em 1976, em sua conferência sobre a Genealogia sobre o poder que originou o livro Em defesa da sociedade atribuiu grande importância simbólica para a frase atribuída a Clausewitz “[...] a política é a continuação da guerra por outros meios” (2010, p.16). Isso porque, a expressão apresentava a política como alternativa às infindáveis guerras medievais. Uma promessa de pacificação social a partir daquele momento se apresentava como solução contra o espírito humano, até então considerado naturalmente beligerante. Enfim, a paz poderia ser alcançada, caso, todos se submetessem voluntariamente à força suprema do Estado.
Na percepção de Foucault a expressão marcaria ainda uma mudança substancial na história, assinalando que a guerra mudaria sua principal característica, deixando de ser um instrumento do poder de reis absolutos para ser transformada em política pública a ser disputada no campo político, transformando-se numa relação social contínua e permanente.
Para exemplificar a atualidade da perspectiva foucaultiana, basta considerar o contexto das últimas eleições presidenciais, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Em ambas, as disputas se concentraram em torno de argumentos que justificavam políticas públicas típicas de um Estado em guerra. Os candidatos vencedores adotaram explícita e sem reservas a nomeação de um inimigo, ainda que não qualificado, inespecífico.
No caso as eleições americanas, o inimigo contra o qual o candidato vencedor conseguiu arregimentar eleitores foi à imigração. A necessidade de construir um muro, uma trincheira como forma de parar um inimigo externo, foi o principal argumento que arregimentou eleitores para uma verdadeira cruzada de proteção nacionalista.
Quanto ao caso brasileiro, o inimigo eleito foi interno e o discurso utilizado pelo candidato vencedor foi a explícita declaração de guerra contra “a bandidagem”. A convocação para participar desta suposta guerra se deu, entre outras, através da promessa de liberação do porte de armas para os cidadãos de bem se defenderem desse inimigo supostamente comum. O “romantismo” da ideia de tornar cada cidadão um herói da resistência, tendo em vista a incapacidade estatal de combater o que se convencionou chamar de “crime organizado”, de fato, iludiu o eleitorado.
Obviamente outros fatores devem ser considerados, dentre outros o impedimento de participação da chapa do ex-presidente Lula na disputa eleitoral, o atentado, o assassinato de Marielle; entretanto, a exiguidade desse texto não permite abordar.
Mas, o que se deve ressaltar é que o argumento decisivo nas duas campanhas foi a declaração de guerra como forma combate à violência, - vinda de fora no caso americano e interna no caso brasileiro -, donde se conclui que a política guerreira tem, atualmente, por assim dizer “turbinado” as disputas políticas.
Mas este não é fenômeno novo, na Alemanha dos anos 1930 bem como nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, esta tática foi escancaradamente assumida. De fato, os Estados Unidos duplicaram sua riqueza nacional e a solução para a estagnação econômica mundial no pós-guerra foi transformar o Estado em gastador-consumidor coletivo, assumindo despesas desproporcionais de natureza militar.
Dessa forma a guerra, que era um evento excepcional, foi se transformando em business, e os golpes de Estado que eram frutos de intervenções extraordinárias na normalidade política, foram se incorporando ao cotidiano.
Desde então, são cada vez maiores as compras bélicas estatais, - quase sempre através de processos de licitação especiais -, que, por sua vez, retroalimentam o sistema político, através de representantes escolhidos corporativamente. Investimentos públicos que, por meio da exploração do medo produzido pela violência, fazem surgir um mercado complementar de segurança privada que cresce exponencialmente. A indústria da guerra passou a fazer parte da política.
No Brasil na ultima década, sob o signo da garantia da lei e da ordem (GLO), as forças “armadas” foram instadas a agir constantemente.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública demonstrou que os gastos dos Estados com segurança pública cresceram mais de 30% em 10 anos. No Brasil na ultima década, sob o signo da garantia da lei e da ordem (GLO), as forças “armadas” foram instadas a agir constantemente. Assim foi, nos ataques do PCC em São Paulo (2006), na greve da Polícia Militar no Espírito Santo em 2017, nas séries de mortes a partir de motins em presídios em estados do Nordeste (2016, 2017 e 2018 especialmente Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco), na intervenção em Roraima e no Rio de Janeiro (2018), e em Altamira, no Pará, nesta última semana.
Diante do contexto acima citado, foi criado em 2018 um novo Super ministério (Ministério da Segurança Pública), encarregado de congregar todas as forças militares e policiais, com o objetivo dar o devido combate a insegurança pública. Para tanto, foi promulgada ainda a lei 13.491/2017, transferindo para a Justiça Militar a competência do julgamento de crimes cometidos por profissionais das Forças Armadas em missões de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e no cumprimento de atribuições estabelecidas pela presidência ou pelo Ministro da Defesa. Demonstrando a excepcionalidade do aparato legislativo.
Na prática, isso significa que a segurança contará com dinheiro proveniente inclusive de loterias, bem como do fundo penitenciário nacional, o que também deve significar mais recursos.
Em que pese o atual governo ainda ter deixado claro se pretende seguir a estratégia planejada no governo anterior, a nomeação do Super ministro e o pacote anti crime por ele proposto evidencia esta mesma tendência.
Essa aura militar interventiva, os inúmeros enfrentamentos (tiroteios) típicos de uma guerra civil, com a utilização de dezenas de milhares de soldados, o sítio de favelas inteiras, a espetacular cobertura da mídia, foram produzindo um ambiente ideal para absorção pela sociedade, de uma nova perspectiva: a desesperança no Estado e na política para enfrentar o caos da segurança, e a crença de que o cidadão armado, pessoalmente poderá defender-se da violência.
Neste contexto, a desesperança vai forjando uma nova necessidade e com isso, ampliando um novo e enorme filão econômico, o mercado privado de materiais de guerra. Pronto, criada a demanda e a guerra que antes era pública e estatal começa a atrair interesses privados e econômicos. É esse o cenário preenchendo o imaginário popular.
Nestas eleições brasileiras, a bandeira do argumento não foi levantada, ideais e ideias não foram defendidas. A disputa se deu em torno do acesso ao imaginário ótico, foi uma campanha de imagens, e talvez a que tenha gerado mais impacto foi a do então candidato a governador, vencedor no Rio de Janeiro. O candidato despiu-se da imagem de jurista justo e equilibrado que tentava transmitir até então e apropriou-se da figura do soldado universal guerreiro, transformou-se numa espécie deturpada de “Rambo carioca”, ao rasgar uma placa de rua em homenagem à recém assassinada vereadora Marielle.
As demonstrações de intimidade dos candidatos com a indústria de guerra produziram uma eleição quase que instantânea daqueles que, conseguiram demonstrar sua proximidade com esse conluio. Eleitos os representantes do mercado da guerra, a eleição do vendedor mor de armas se tornou barbada.
Após a eleição, há uma forte ofensiva no sentido de preenchimento do inconsciente ótico com imagens guerreiras. Políticas públicas outrora inimagináveis como snipers atirando de helicópteros na população, têm sido utilizadas para fortalecer esse espectro de mito guerreiro no imaginário popular.
Essas imagens criam o ambiente ideal para a instalação do pânico coletivo, para justificar a instituição de Decretos e Reformas que só fazem crescer o maior e mais novo Business do mundo: O mercado de guerra no Brasil.
É preciso haver violência no campo incentivada pelo desmonte de políticas ambientais, é preciso haver violência nas periferias urbanas, garantir que elas estejam lá contidas pelo aparato estatal, é preciso um mercado e garantias de segurança nos ambientes privados elitizados, é preciso haver um sistema repressivo caríssimo e ao mesmo tempo brutal, uma nova ciência médica que cuide das conseqüências do pavor e do medo deve ser aparelhada, tudo isso para que o mercado consumidor se mantenha com viés de alta como se diz no mercado financeiro.
O Estado por sua vez foi cooptado, ele não pretende mais a pacificação das relações sociais, o mercado da indústria bélica não pretende pacificar o Brasil pelo crescimento econômico, ele despreza o Estado e a política. Escolha seu inimigo, esqueça a paz.
PAULO VELTEN é professor no curso de direito na Ufes- Universidade Federal do Espirito Santo, articulista na revista PUB no dia 09 de cada mês.
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