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Nelson Rodrigues: contradições e genialidade na anatomia da alma brasileira

  • Foto do escritor: Revista Pub
    Revista Pub
  • 20 de set.
  • 3 min de leitura

-FLÁVIA D'URSO-


Poucos escritores brasileiros despertaram tantas paixões, aversões e debates quanto Nelson Rodrigues (1912–1980). Jornalista, dramaturgo e cronista, ele atravessou o século XX como uma figura ao mesmo tempo escandalosa e genial, capaz de traduzir em palavras e cenas as tensões mais profundas da vida social e íntima dos brasileiros. Sua obra permanece atual porque fala das contradições humanas em estado bruto: o desejo e a culpa, o amor e a traição, a violência e a ternura.

 


Por Desconhecido - Arquivo Nacional, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=73413812
Por Desconhecido - Arquivo Nacional, Domínio público, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=73413812

Nascido em Recife e criado no Rio de Janeiro, Nelson Rodrigues cresceu em um ambiente impregnado de jornalismo e literatura, já que seu pai, Mário Rodrigues, era dono do jornal A Manhã. Desde cedo, Nelson conviveu com a imprensa, com os dramas políticos e com a violência urbana que mais tarde se tornariam matéria-prima de sua ficção. A tragédia pessoal também moldou sua visão de mundo: aos 13 anos, presenciou o assassinato de seu irmão Roberto dentro da redação do jornal, episódio que marcou sua sensibilidade e lhe deu uma percepção precoce da brutalidade da vida.

 

Sua trajetória política é marcada por contradições. Conservador em muitos aspectos, declarava posições reacionárias em sua crônica jornalística, defendendo a moral tradicional, combatendo movimentos progressistas e a “esquerda intelectual” e, no limite, apoiando a ditadura militar em determinados momentos. Ao mesmo tempo, sua obra teatral e literária desmontava a hipocrisia das instituições e revelava as sombras ocultas da família patriarcal, da classe média e da sociedade que ele próprio dizia defender. Nelson parecia ser, ao mesmo tempo, o crítico e o cúmplice do universo que retratava.

 

Essas ambiguidades se refletem na recepção de sua obra. Acusado de escandaloso, pornográfico e imoral, Nelson foi também saudado como o maior dramaturgo brasileiro, responsável por inaugurar o teatro moderno no Brasil. Com peças como Vestido de Noiva (1943), Senhora dos Afogados (1947), O Beijo no Asfalto (1960) Bonitinha, mas ordinária (1962) e Toda Nudez Será Castigada (1965) expôs o subterrâneo das relações humanas, escavando a miséria moral da família e da sociedade. Sua genialidade estava em compreender que os grandes conflitos não estão apenas no palco da política ou da história, mas no interior da casa, na mesa do jantar, nos quartos fechados e nos segredos inconfessáveis.

 

Como cronista, Nelson Rodrigues também foi insuperável. Sua escrita direta, irônica e desnudada de pudores o aproximava do leitor comum e, ao mesmo tempo, provocava desconforto em quem preferia manter intactas as máscaras sociais.

 

A maior genialidade de Nelson Rodrigues talvez esteja no fato de ter sido um escavador da alma brasileira. Não se contentou em narrar virtudes; fez do palco e da crônica um espelho onde o Brasil se via feio, mesquinho, hipócrita e violento — mas ainda assim humano. Suas contradições políticas e ideológicas, longe de diminuírem sua importância, fazem parte de sua complexidade como intelectual: um conservador que revelou a podridão da moral conservadora, um moralista que expôs o imoralismo enraizado no cotidiano.


Quarenta e cinco anos após sua morte, Nelson continua a nos provocar. Sua obra permanece como convite incômodo e necessário para olhar sem disfarces a miséria humana e reconhecer, nela, a verdade mais profunda da condição brasileira.



Flávia D'Urso é mestre em Direito Processual Penal e Doutora em Filosofia, na linha de pesquisa política, pela PUC/SP.  Foi procuradora do Estado e Defensora Pública. Dirigiu a Escola da Defensoria Pública de SP. Integra o Conselho Consultivo do IBAP.



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