- Ricardo Antonio Lucas Camargo -
O último filme dirigido por Charlie Chaplin, em 1967, foi também o único em cores. Costuma ser apontado como a “menos chapliniana” de suas obras, muito assemelhada às comédias românticas do início do cinema falado em Hollywood, realizada na mesma época em que Mike Nichols rodava o seu “A primeira noite de um homem”, bem longe daquela ingenuidade dos anos 30 do século XX. Era a época em que irrompiam um Bergman, um Antonioni, um Godard, um Glauber Rocha, um Nelson Pereira dos Santos, acenando, cada qual ao seu modo, com uma linguagem cinematográfica que se propunha a ser mais do que simples entretenimento. Mas era também a época em que o cinema hollywoodiano se punha como um poderoso instrumento de propaganda da Guerra Fria, e nesta mesmo cineastas do porte de um Alfred Hitchcock e de um John Huston se engajaram.
Espocavam os golpes militares na América Latina, ante o temor dos EUA de que se repetisse a experiência da Revolução Cubana, no conflito entre árabes e judeus no Oriente Médio havia o engajamento das duas grandes rivais, URSS e EUA, estes mandavam tropas para o Vietnam para sustentar o governo anti-soviético do Sul contra os socialistas do Norte, os países da África subsaariana, em sua maioria, ao se tornarem independentes, alinhavam-se com a URSS, tendo em vista que as suas antigas metrópoles eram integrantes da OTAN. O próprio Chaplin havia sido alvo de acusações de atividades anti-americanas no período do macartismo, quando se destacou um jovem parlamentar, que atacara impiedosamente o Carlitos por sua “mensagem comunista”: Richard Nixon. Ele não mais residia nos EUA quando rodou esta película.
Há várias curiosidades que a cercam: nela, Chaplin não tem o papel principal, mas apenas algumas brevíssimas aparições como um comissário de bordo. Comparecem, ali, além de seu filho Sidney, que havia quinze anos antes sido o galã de “Luzes da ribalta”, suas filhas Geraldine, que, ironicamente, havia, dois anos antes, vivido a Tonya de um dos filmes mais utilizados para apontar para os males da Revolução Russa, o “Doutor Zhivago”, de David Lean, Victoria e Josephine. As figuras centrais são vividas por Marlon Brando - que, treze anos antes, tinha vivido o herói da obra-prima do cinema de propaganda macartista, o Terry Malloy de “Sindicato de ladrões”, de Elia Kazan - e Sophia Loren, e conta-se que a relação deles com o diretor foi muito conflituosa, em especial pelo nível de exigência deste. Enfim, há muitos incidentes em torno dela que são apenas mencionados, mas não serão tratados aqui porque não são aptos a justificarem a escolha desta película.
É comum, como dito no início, fazer-se um juízo extremamente severo acerca deste filme, aparentemente tão pouco chapliniano, típica comédia escapista etc. Entretanto, quando vejo um cineasta do porte de um Éric Rohmer, a quem devemos a adaptação de “A Marquesa de O”, de Heinrich von Kleist, rasgar-se em elogios, divergindo do guru dos cinéfilos franceses André Bazin, já se vê que não se trata de uma nódoa na carreira chapliniana, embora muito menor do que monumentos como “O garoto”, “Tempos modernos”, “O grande ditador”.
O enredo, realmente, parece típico de uma comédia escapista: a personagem-título é descendente de uma das famílias nobres que emigraram da Rússia para a China e, mais tarde, para o então protetorado britânico de Hong Kong, e ali, para sobreviver, atua como “garota de programa”. Um diplomata americano, proveniente de família abastada, às portas do divórcio, chega em um navio transatlântico - claro, se fôssemos ser fieis à geografia, deveríamos chamá-lo “transpacífico”, já que a trama se passa no Oceano Pacífico - e, com alguns amigos, vai distrair-se em uma boate, na qual atua a nossa “Condessa”. Esta, por sua vez, vê a sua grande oportunidade de deixar a vida sofrida que leva em Hong Kong, e se esconde na cabina em que está hospedado o nosso diplomata. Contrariado por ter uma clandestina em sua cabina e ainda por ela chantageado, já que ela diz que o acusaria de sequestro, este é convencido pelo seu confidente e secretário a auxiliá-la. Mas a ida para os EUA envolve questões tão prosaicas quanto o guarda-roupa - ela não ingressara no navio portando bagagem, só a roupa do corpo - e tão graves quanto a regularidade da documentação. E, para complicar o quadro, o diplomata e a “Condessa” sentem desabrochar uma atração um pelo outro. Não bastasse isto, na primeira parada, ainda, está a esperar a esposa do diplomata.
Vou parar a narrativa por aqui, justamente porque, como já devem ter percebido, o enredo, em si mesmo, é muito previsível, a partir desses elementos e, para o fim de examinar o tema do “confinamento em uma embarcação”, eles se mostram suficientes. Um navio, seja mercante ou bélico, tem a característica de ser uma plataforma que flutua sobre a água. É, indubitavelmente, um meio de transporte e, ao mesmo tempo, desempenha o papel de residência para os que nele estejam, a trabalho ou não. É o único espaço em que o ser humano pode se deslocar tão à vontade como se estivesse em terra firme, embora, claro, com os movimentos sob os pés, em decorrência do jogo das ondas, que vai desempenhar, no filme, o papel de deflagrar uma das gags mais expressivas, que é a da disputa pelos espaços para marear. Por outro lado, como se trata de um navio de passageiros, é um verdadeiro hotel flutuante, frequentado, no caso, por pessoas de alto poder aquisitivo. Essas pessoas, assim como a tripulação, estão confinadas nesse hotel que é também a totalidade do ambiente urbano em meio ao Oceano Pacífico, até chegarem ao porto mais próximo. Depois de partido o navio, não têm mais as pessoas a opção do desembarque, enquanto não chegarem ao porto ou não aparecer uma outra embarcação em que elas desejem ingressar e que se emparelhe àquela em que estão. O navio, pois, para os passageiros regularmente embarcados, é não só a sua casa, é também a sua cidade. Para a tripulação, é a casa, é a cidade, é o lugar de trabalho. De qualquer modo, no navio, tal como no inferno que Sartre imagina em “Entre quatro paredes”, não se convive somente com as pessoas que se escolhe para companhia, e se não se tiver como estabelecer uma convivência, no mínimo, respeitosa, ele se tornará o verdadeiro inferno cercado de água.
A personagem da “Condessa” introduz uma outra dimensão do confinamento: o esconderijo. Embora sua família seja de origem nobre, justamente em função da Revolução Russa, teve de emigrar para a China e, logo em seguida, para Hong Kong. E, ali, para sobreviver, a “Condessa” foi obrigada a exercer uma profissão que se encontra dentre as mais desprezadas pelas pessoas tidas como “respeitáveis”. Quer dizer, entra, aqui, a questão da “decadência social”, da pessoa que, pertencente, antes, ao estrato mais elevado, vem a se converter em pária, uma condição muito inferior à dos mujiques que, ao tempo dos czares, eram passíveis de plena disposição por parte dos nobres. Seu ingresso no navio, na condição de “clandestina”, traduz uma opção consciente pelo “confinamento”, e a sua motivação é poder vir a viver, em outro país - no caso, os EUA, de onde fora expulso o diretor em razão de suas “atividades antiamericanas” -, uma nova vida, em que possa ser tida como “respeitável”. A noção dos EUA como “terra prometida” não deixa, aqui, de merecer uma menção que, conhecendo-se a biografia do diretor, talvez se apresente muito mais como uma alfinetada nas expectativas nutridas por muitos refugiados e imigrantes que, por vezes, encontraram um ambiente hostil no novo Continente. Estes, ao invés de se porem na dúvida acerca de o inferno futuro poder ser pior do que o inferno presente, muitas vezes nutriam uma expectativa de paraíso que raramente se confirmava. Por sinal, um dos primeiros filmes de Chaplin a chamarem a atenção do FBI foi precisamente “O imigrante”, de 1917, em que a própria relação deste com a autoridade é posta em termos de ridicularizar a esta, que vai aparecer como um dos fatores que lhe irão frustrar as boas expectativas em relação à “Terra Prometida”.
Entretanto, voltando ao filme escolhido, a “Condessa” tem de permanecer escondida, em primeiro lugar, porque seu ingresso não se deu pela forma regular: não comprou o bilhete de passagem que a autorizaria a circular livremente pela embarcação e a fruir dos serviços que a tripulação lhe poderia prestar. É, aliás, em função desta condição de viajante clandestina que comparecem os outros dois problemas, quais sejam, o do vestuário - afora um vestido de noite, que estava a vestir quando ingressou no navio, ela passa a ter de envergar os pijamas do diplomata, que, obviamente, não são a sua medida - e o da documentação, que lhe poderia valer a qualificação como “imigrante ilegal” e determinar o seu retorno à vida de que estava a fugir. Em segundo lugar, porque a sua presença, ali, conduziria à necessidade de o diplomata dar explicações que, em sua condição de pessoa respeitável, a quem se confere a grave missão de representar o seu país em uma zona sensível, seriam aptas a comprometer-lhe a carreira. Quer dizer: a ideia do confinamento enquanto “esconderijo” vai ligar-se aos temas tanto da segurança da “Condessa” - se ela vier à luz do sol, sua situação se torna perigosa, porque pode sofrer inclusive as sanções por infringir não só a legislação concernente ao embarque em navios de passageiros como também a concernente à imigração - quanto da proteção da “respeitabilidade” do diplomata.
Curiosamente, este filme, aparentemente tão pouco chapliniano, acaba por trazer uma das perguntas mais constantes subjacentes à sua obra: o que é uma pessoa “respeitável”? Ou melhor, o que faz com que uma pessoa ou um modo de viver se tenha como “respeitável” ou não? O tema da “respeitabilidade”, tão recorrente não só na obra chapliniana como também no cotidiano - o próprio conceito de “boas” ou “más” companhias tem-no subjacente -, pelo simples fato de aflorar neste filme, faz com que sejamos menos severos no julgamento de seu último trabalho como cineasta.
Ricardo Antonio Lucas Camargo é Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.
O filme de Charles Chaplin será abordado no próximo webinar do Ciclo Narrativas em Confinamento, que ocorrerá no dia 15/07/2020. Mais informações pelo link: https://www.revista-pub.org/post/p15072020.
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