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ARGENTINA ENCOSTA ABAIXO

-RICARDO ANTONIO LUCAS CAMARGO-


Ahora, cuesta abajo en mi rodada

Las ilusiones pasadas, yo no las puedo arrancar

Sueño con el pasado que añoro

El tiempo viejo que lloro y que nunca volverá

(Alfredo le Pera/Carlos Gardel. Cuesta abajo)



Foto - Rui Vianna - Bariloche

Diferentemente do Brasil, a Argentina procurou não deixar de responsabilizar os agentes militares que conduziram o seu regime autoritário, que se veio a esboroar definitivamente após o fracasso na guerra contra a Inglaterra, em 1982: com efeito, aqueles que se mostraram tão corajosos contra inimigos indefesos mas não tanto no momento da batalha contra um inimigo que tinha condições de reagir e de atacar, no País vizinho, diante de seguidos pronunciamentos da Corte Interamericana de Direitos Humanos, tiveram de dar satisfação pelo que fizeram.


Claro que isto não os impediu de elegerem personagens que se identificavam com bandeiras voltadas a manter, quando não aprofundar, as hierarquias baseadas nas diferenças patrimoniais, como foi o caso de Carlos Menem, Mauricio Macri e Javier Milei, agora. A derrota do candidato do Governo Fernandez, Sergio Massa, deveu-se, em grande parte, a uma identificada dificuldade de enfrentar os problemas econômicos decorrentes da desvalorização monetária, algo muito sensível para uma “classe média” sequiosa de aquisição de bens de consumo, e a uma promessa de o vencedor, economista fundamentalista de mercado, recuperar a autoestima do povo argentino, apostando num programa de intensificação de privatizações, inclusive da moeda, e redução de impostos.


Desde Menem, a extrema-direita argentina não conseguia emplacar uma figura tão caricata, ao exemplo de Mussolini, quanto o Presidente ora eleito, Milei. Potencial destrutivo: similar ao de Macri. Alertemo-nos para uma eventual aposta em uma figura que negue a civilização, como esses dois personagens, Milei e Macri, mas saiba usar os talheres.


A eleição de Milei, na Argentina, deu-se, ironia cruel, no primeiro aniversário da morte de Hebe de Bonafini, a líder das Mães da Praça de Maio que, em seu país, enfrentou covardes fardados, que negavam, em nome da defesa das tradições da família cristã, o direito de as mães sepultaram os filhos mortos.


Esta eleição mostra que não se deve subestimar a capacidade de as forças conservadoras capitalizarem os medos e frustrações daquele conglomerado heterogêneo denominado “classe média”, receita que conduziu ao poder, pela via democrática, tantos personagens autoritários que falavam em nome de combater a decadência em que a sociedade estaria a viver e de trazer um futuro glorioso a partir do resgate dos valores tradicionais, com ênfase no dever e na ordem: Hitler, Mussolini, Salazar, Bolsonaro, todos estes, cada qual com u’a marca pessoal distinta, mas sempre capitalizando o binômio “frustração/medo” e falando em nome do resgate dos bons velhos tempos, em que tudo estava a seguir a ordem natural das coisas, construir um futuro de prosperidade, prestígio e abundância, com o Bem recompensado e o Mal castigado para sempre.


Sabemos que a referência a Hitler é sempre delicada, quer porque é um personagem que conta com uma “antipatia geral”, em especial graças à ampla exploração que a indústria cinematográfica dos EUA fez das atrocidades do III Reich como matéria-prima para inúmeras películas de qualidades desiguais, quer porque o mais destacado dos seus alvos – justamente os que reportam sua ascendência a Isaac, filho de Abraão – costuma repelir quaisquer comparações com o holocausto ocorrido nos campos de extermínio.


Contudo, tanto ele quanto Mussolini são exemplos obrigatórios quando se trata de líderes que se serviram precisamente do binômio referido no primeiro parágrafo e as propostas apontadas ao final. Bolsonaro usou a mesma receita, e mesmo depois de se ter passado por uma gestão comprovadamente desastrosa de uma pandemia que deixou um rastro de mortos que somente não assusta os que estão fanatizados demais, tão assustados com o fantasma vermelho que consideram tais mortes um preço barato para fazer a vontade de Deus (veja aqui, aqui, aqui, textos publicados na Revista PUB). O resultado apertado das eleições brasileiras de 2022 revela que este grupo de fanatizados não é de pouca expressão. Entretanto, fez questão de mostrar como traço próprio a tosquice de comportamento e raciocínio, e, com isto, não seria um convidado adequado a jantares em que se discutiria quem seria do maior agrado dos amigos mais ricos.


Salazar, mais esperto que seus colegas da Alemanha e da Itália, Professor de Economia e Finanças em Coimbra, lançou mão da mesma receita que eles, temperando-a com fortes doses de devoção religiosa – um dos seus Conselheiros mais prestigiosos foi o Cardeal Cerejeira, como se sabe -, não embarcou na aventura imperialista em que eles se envolveram, forneceu, simultaneamente, tungstênio para os alemães e uma base na Ilha da Madeira para os ingleses, e, após a II Guerra Mundial, mesmo sendo conhecido como ditador, com a sua temida Polícia Internacional de Defesa do Estado, famosa torturadora, esteve dentre os fundadores da Organização do Tratado do Atlântico Norte, que a indústria cinematográfica norte-americana nos ensina a ver como o “baluarte das liberdades no mundo”.


Estudar a República de Weimar, na qual um povo muito mais culto – e, portanto, menos vulnerável que os latino-americanos em geral a um aventureiro deste tipo – chegou a levar ao poder um Adolf Hitler com seus sequazes, é dever de quantos se preocupem com a preservação da democracia enquanto valor. Veja-se quantos quase reelegeram Bolsonaro, a despeito da morte de mais de 700.000 pessoas pelo seu descaso com a pandemia e do estímulo às queimadas, com os efeitos conhecidos de aceleração da crise climática. A Argentina, agora, elegeu um ser semelhante, que parece saber usar garfo e faca. Como bem disse Benedetto Croce, o grande pensador napolitano que representou a resistência liberal contra Mussolini, em sua Lógica como ciência do conceito puro, “a história não se julga, narra-se”. E é a partir do que se narra que se fazem os paralelos.

 

Ricardo Antonio Lucas Camargo - Professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – Integrante do Centro de Pesquisa JusGov, junto à Faculdade de Direito da Universidade do Minho, Braga, Portugal – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.


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