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GUERRAS, ESTADO MÍNIMO E REFUGIADOS

Atualizado: 22 de abr.

-Ricardo Antonio Lucas Camargo-


Com o início da Guerra entre a Rússia e a Ucrânia, no começo de 2022, na qual há um agressor demonizado pela OTAN e um agredido por esta abençoado, nenhum dos dois, de qualquer sorte, exemplo de Governante democrático (recordando, aqui, as 14 lições de Umberto Eco acerca do fascismo), retornou à agenda europeia o conceito de “refugiado”.


É interessante que a distinção entre este e o conceito de “migrante”, em relação aos provenientes de países africanos ou do Oriente Médio, para governantes europeus de base eleitoral francamente xenófoba, tendo em vista as características étnicas dos que se retiram dos cenários conflituosos nesses países ao sul e sudeste do Mediterrâneo, tinha sido praticamente esquecida, até porque, se o ingresso de migrantes tem de ser controlado sobretudo diante da relação com questões de trabalho, habitação e acesso a serviços públicos, quanto aos refugiados, observou a Professora Sofia Ciuffoletti, do Centro de Estudos l’Altro Diritto, vinculado à Università degli Studi di Firenze, em evento realizado em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul em fins de 2021 (veja aqui), adota-se o princípio do “non refoulement”, da impossibilidade de se rejeitar o respectivo ingresso.

De outra parte, mesmo o ingresso de migrantes – salienta o Professor Emilio Santoro, ao comentar o caso do sequestro, na Itália, de passageiros do navio Diciotti, julgado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem – tem os limites do seu controle, no seio de um Estado de Direito, qualquer que seja a respectiva qualificação (liberal, social, democrático etc.), nos direitos e garantias fundamentais assegurados constitucionalmente a qualquer pessoa.

Não irei aprofundar, aqui, o tema dos refugiados, que ficará a cargo do meu colega de mesa, Dr. Afonso Grisi Neto.


Contudo, pretendo versar alguns pontos que penso estarem na raiz das motivações para que pessoas se sintam em um tal grau de insegurança que se disponham a cruzar uma mata cerrada, mais um deserto escaldante, atravessar o mar para se arriscarem, mesmo, a ser rechaçadas à bala, notoriamente a situação dos migrantes provenientes da África na Europa mediterrânea, em especial na Itália aos tempos em que Salvini esteve no comando.


Quando há um movimento populacional, é importante ter presentes fatores de atração para o lugar de destino e fatores de repulsão do lugar de saída.


Quem já trabalhou, como o Professor Gilberto Bercovici, o tema das migrações internas no Brasil, país de dimensões continentais cujas disparidades regionais são tais que é uma constante a referência à sua mitigação, nos incisos III do artigo 3º, I do artigo 151, VII do artigo 170, no artigo 43, no § 7º do artigo 166, da Constituição de 1988, tem muito clara a responsabilidade do indivíduo investido na função pública precisamente para que se reduzam tanto quanto possível os fatores que conduzem a massivas repulsões.

No âmbito internacional, a questão se mostra ainda mais delicada, sobretudo em função de não se poder recorrer a uma instância com poderes coercitivos sobre as partes: a solução pacífica em muito vai decorrer da boa disposição em atender ao que tiver sido apontado como a solução adequada pelo terceiro imparcial.


E aqui entra, necessariamente, a questão da relação do Estado com a economia, em especial diante da ampla difusão das teses do Estado Mínimo sistematizadas por Robert Nozick.


Quando da queda do Muro de Berlim, em 1989, difundiu-se a ideia de que a atuação do Estado, em relação à economia, seria perniciosa, com o que as necessidades humanas seriam satisfeitas com maior eficiência uma vez entregues as atividades econômicas e também a própria prestação de serviços públicos, na medida do possível, à iniciativa privada.


Deixemos algumas premissas bem claras: a primeira, é de que a atividade econômica desempenhada pelo particular é marcada pela livre iniciativa, o que significa, liberdade para desempenhar ou para não desempenhar, como bem salientou Modesto Carvalhosa em seu A ordem econômica na Constituição de 1969.

O Poder Público, uma vez que sua atuação é marcada pelo princípio da legalidade – observação feita pelo Professor Werter Faria, e que está presente em sentença da Corte Constitucional italiana, da década de 70 -, não tem esta liberdade de iniciativa.


Segunda: o serviço público é estruturado, segundo observava Léon Duguit, em lição seguida, entre nós, por Ruy Cirne Lima e Eros Roberto Grau, tendo em vista a satisfação de uma necessidade que toca à manutenção dos liames que permitem a convivência civilizada entre os que estão submetidos à autoridade do Estado.


Por isto, a observação feita por Geraldo Ataliba e por Washington Peluso Albino de Souza, quanto à impossibilidade de o Poder Público deixar de prestar essa atividade, postergando-a em prol de outros compromissos.


Terceira: a ideia de se imprimir à gestão pública a lógica empresarial privada é estranha ao pensamento clássico liberal e liberista, recordando, aqui, que, por “liberalismo”, o filósofo Benedetto Croce designava o “liberalismo politico” e, por “liberismo”, o “econômico”, terminologia, que, na Itália, vingou e, entre nós, empregada por José Guilherme Merquior e, mais recentemente, por Paulo Peretti Torelly.

Uma vez que o Estado seria o titular do monopólio da coação, tanto para Adam Smith como, mais recentemente, para Mises, é estranho dar como finalidade de sua gestão a busca do proveito individual própria da gestão privada.

Luigi Einaudi, por seu turno, observou que necessidades como a segurança não teriam como lograr mensuração por um sistema de preços.


Uma vez que existem necessidades cuja satisfação não pode sofrer solução de continuidade, a redução dos serviços públicos ou mesmo sua inexistência, vai constituir um fator de repulsão, em especial em regiões muito pobres.


Por outro lado, a própria ideia de que existe um aparato que tem de estar à disposição de todos para a satisfação dessas necessidades será um fator de atração.

Assim, a minimização da presença do Poder Público enquanto prestador de serviços tornar-se-á um fator inequívoco de repulsão.


De outra parte, um argumento simplista, de que, com a notícia de um amplíssimo processo de privatizações nos polos de atração, provavelmente, arrefeceriam os movimentos em sua direção, poderia ser refutado com o dado de que não é raro, especialmente em regiões em que a carência introduz um nível inadministrável de conflituosidade, que os deslocamentos sejam motivados pela noção de que aquele que não tem nada, lucra quando obtém pouco.


E, mesmo em nome de evitar um agravamento dos ônus fiscais e uma sobrecarga dos serviços públicos, dificilmente a população nos polos de atração estaria disposta a aceitar um processo de radicalização das privatizações, até mesmo em função do que os economistas denominam “efeito cremalheira”, ou seja, a resistência natural a que um ser humano regrida o seu nível de consumo, quantitativa e qualitativamente.


Tais são, pois, as questões que tenho a propor ao debate nesta tarde, com o que cedo, agora, o passo ao Dr. Afonso Grisi Neto. Muito obrigado.

 

Ricardo Antonio Lucas Camargo é professor nos cursos de Graduação e Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Professor Visitante da Università degli Studi di Firenze – ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública – IBAP.


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