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A vingança dos intelectualmente humilhados

Atualizado: 13 de set. de 2019

- VALQUÍRIA FERRÃO ANTUNES -

Vivemos uma época de mudanças profundas - para pior. Crenças e superstições de há muito desarraigadas são re-mascaradas diariamente em todos os campos do conhecimento humano. Nesse contexto, até a prova da esfericidade do planeta acaba se tornando necessária, acarretando um profundo desgaste de energia intelectual e perda de tempo para a reflexão sobre questões realmente pertinentes. Diante da total falta de interesse em perquirir a verdade dos fatos, Jornais impressos de alta circulação hoje passam o chapéu, tentando adiar o inevitável momento de seu fechamento. Jornais da grande mídia, naturalmente, dependem vitalmente de receita e, sem ela, fecham. Foi assim com uma série de jornais paulistas: Diário Popular, Última Hora, Notícias Populares, Jornal da República. Um a um, todos eles fecharam. Alguns, de circulação gratuita, como City News e Shopping News, outrora muito populares, embora pouco prestigiados, hoje não existem sequer nas bibliotecas de faculdades de jornalismo – todos os seus vestígios materiais desapareceram e só estão presentes na memória de quem viveu os anos 1960 e 1970 - no caso, meus pais e avós. Pelo que entendi, eram uma espécie de Destak ou MetroNews da época, só que eram distribuídos aos domingos, domiciliarmente. Jornal da República, por sua vez, foi uma tentativa de criação de um periódico diário menos reacionário, uma criação de Mino Carta e Cláudio Abramo, que no entanto não sobreviveu comercialmente: o público leitor progressista não foi suficiente para mante-lo vivo por mais de meio ano. Lançado em agosto de 1979, em janeiro de 1980 fechou as portas. Como nasci muitos anos mais tarde, na era da informática, penso que seria uma espécie de Revista PUB - Diálogos Interdisciplinares, só que com uma equipe de jornalistas investigativos também.


A grande imprensa brasileira é dócil, só quer dinheiro e faz tudo o que o capital pedir, mas não dá beijo na boca em público pra não enciumar leitores. Aborrecido com o jornalismo tradicional, que resiste a escancarar sua subserviência, Jair Bolsonaro acaba de editar uma tal de MP 892, que desobriga as sociedades anônimas de publicarem seus balanços em jornais de grande circulação, leia-se: Correio Braziliense, O Povo, O Globo, Folha de S. Paulo e Estadão. Os dois últimos são os sobreviventes paulistas da imprensa burguesa, ambos golpistas, o Estadão com um viés conservador e a Folha de S.Paulo transmitindo uma imagem liberal nos costumes. Os dois dominam o mercado sem concorrência na mídia impressa paulista.

É certo que a publicação de balanços de S/As está longe de ser algo comercialmente útil para uma empresa e seus acionistas. Tampouco constitui matéria jornalística que vá despertar o interesse do assinante do jornal. Eu, pelo menos, só abro a Folha quando vou na casa de pessoas mais velhas, e só para ler os quadrinhos do Laerte e do Caco Galhardo. Para efeitos de publicidade das contas das empresas, o acesso pela Internet é muito mais adequado, rápido e econômico. De fato, balanço em jornal de grande circulação é algo tão anacrônico quanto cartório de notas, xerox autenticado e firma reconhecida por semelhança: sob o pretexto de defender a lisura, só serve para encher os bolsos de parasitas sociais.

Por outro lado, é evidente que uma matéria como a tratada na MP 892 não é dotada de urgência alguma e sua relevância é apenas sutil, já que se desconhece qualquer pressão da sociedade para que cesse a obrigatoriedade da publicação. Por que não editar uma MP criando mecanismos para contenção dos incêndios criminosos na Amazônia? Ou para reduzir a letalidade policial na periferia das cidades? Considerando que uma medida provisória deve necessariamente preencher os requisitos da urgência e da relevância, fica claro que a norma recém publicada teve por finalidade, exclusivamente, atacar a imprensa livre. De forma tosca, grotesca, sem sutilezas, como é bem o estilo do governo atual, o objetivo da MP 892 foi de enfraquecer mais e mais a democracia. Levando-se em consideração que a mídia televisiva é totalmente capacho (Globo, Silvio Santos, RTC, Edir Macedo) e topa dar em público beijo na boca do freguês guardião do segredo do cofre, as chances de vir a população a informar-se sobre os desmandos do atual governo, de se construir uma opinião pública medianamente abalizada, reduzem-se significativamente. Trata-se, sem dúvida, de um gesto de vingança dos intelectualmente humilhados, daqueles que se sentem excluídos das rodas de conversa toda vez que esta vai além da reprodução de preconceitos e vulgaridades. Apanhemos aleatoriamente os mais importantes nomes da música brasileira contemporânea: se tudo o que sabem de João Gilberto é que foi uma pessoa conhecida aí, os nomes de Hans Joachim Koellreutter, Olivier Toni, Gilberto Mendes, Almeida Prado, Lívio Tragtenberg, Sílvio Ferraz nada significarão! E vai nessa toada: Einstein e Darwin? Ateus heliocêntricos! Hjemslev, Akira Toriyama, Jackson Pollock e Charles Peirce? Estão a serviço da Venezuela! A boçalidade revida a inteligência e a cultura com força-tarefa, condução coercitiva e rajada de metralhadora do alto do helicóptero. A ignorância tomou o poder e hoje quem manda é a dupla Mentira & Força Bruta. Nesse contexto, fica bem fácil para Bolsonaro, Moro, Olavo de Carvalho, Paulo Guedes e trupe perpetuarem-se no poder. A brutalidade e a burrice são tão poderosas que agora sufocam até mesmo a mídia burguesa que não aceitar ser filmada na intimidade dos quartos de motel de Brasília, satisfazendo o seu financiador. Como disse o próprio Bolsonaro há semanas: "Acabei de postar uma matéria sobre o Merval Pereira. Palestra de R$ 375 mil. Tá legal? Tá Ok? 375 pau [sic] uma palestra no Senac. Tá Ok? Faça a matéria. Se vocês não fizerem nenhuma matéria sobre isso nos jornais eu não dou mais entrevista para vocês. Tá legal? Tá combinado? Tem mais nome aí. Só levantei um nomezinho hoje" (FSP, 26/8/2019). Para reverter este quadro, será necessário formar redes sólidas de transmissão de informações idôneas, debater continuamente e expandir o quadro de interlocutores, visando à ruptura de bolhas inexpressivas. Não basta ler o TIB ou ver Bacurau. É preciso trabalho em mutirão: egocentrismo e narcisismo devem ser descartados. Quem não está de acordo com os rumos tomados precisa sair da zona do conforto, tem que dar as mãos e agir em conjunto, nem que tenha que fazer um cursinho de informática pra aprender a fazer um blog. No mínimo. Mas não sejamos ingênuos: resistência democrática e jornalismo de qualidade, sem dinheiro, não existem.

 

Valquíria Ferrão Antunes, 26 anos, é criadora de novos jogos de tabuleiro e jornalista free-lancer.

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