-M. MADELEINE HUTYRA DE PAULA LIMA-

Eduardo Yázigi, em seu livro O mundo das calçadas: por uma política democrática de espaços públicos,[i] apresenta a calçada como um retrato do Brasil:
“Uma vez num artigo, pretendi que a calçada era o próprio retrato do Brasil, seu fractal [ii] por excelência. Há qualquer coisa de didático na mirada sobre as calçadas; nelas se pode ler o subtexto de uma administração incapaz de planejar à altura do grau de consciência que se tem das questões urbanas. O abre-e-fecha que não termina nunca, o eterno canteiro de obras. A mudança exagerada de equipamentos, por razões técnicas mas também por pressão de fornecedores... A descoordenação de importantes setores, os repetidos gastos com as mesmas coisas...”
Não é preciso explicar muito, pois é fácil notar que a cidade de São Paulo tem vivido uma explosão de canteiros de obras, de prédios que surgem do solo, de ruas bloqueadas para consertos e remendos e calçadas disformes por poeira, barro ou buracos formados por resíduo espalhado durante o transporte de material de obras por pesados caminhões. Enquanto os prédios buscam o céu, quando estão em avenida movimentada, encobrem o sol e a visão dos moradores dos prédios vizinhos, cuja construção, em rua paralela, atendera aos limites de andares, cresce a pergunta: que tipo de população irá habitar estes altos prédios mas com dimensões internas, na maioria, restritas de unidades denominadas “studio”.
Conforme notícia no sítio oficial, em 18 de outubro de 2022, a Promotoria de Habitação e Urbanismo da Capital havia instaurado inquérito civil para apurar eventuais ilegalidades na alienação, para famílias com renda mensal superior ao permitido na legislação, de unidades habitacionais em empreendimentos de Habitação de Interesse Social (HIS) e de Habitação de Mercado Popular (HMP) na cidade de São Paulo.[iii]
Em Nota à Imprensa “Sobre irregularidades na política pública de moradias populares em São Paulo”, em 29 janeiro de 2025,[iv] a mencionada Promotoria de Justiça informa que ajuizou no dia 28 de janeiro “ação civil pública contra o município de São Paulo visando à suspensão da política pública de produção privada de unidades habitacionais de interesse social (HIS) e de mercado popular (HMP) até que seja demonstrada, no processo, sua readequação, mediante a adoção de medidas eficazes que, comprovadamente, segundo critérios de razoabilidade e pertinência técnica e jurídica, atendam, no mínimo, aos seguintes parâmetros: (i) controle prévio de concessão de incentivos públicos, que leve em conta os limites de renda estabelecidos para o público-alvo das unidades HIS 1 e 2 e HMP; (ii) fiscalização; (iii) monitoramento; (iv) aplicação de penalidades e (v) aferição de resultados”. Na fase investigatória havia sido apurada a omissão do município de São Paulo no dever de fiscalizar sua própria política, que prevê a concessão de incentivos públicos para empresas que pretendem construir moradias destinadas às famílias com renda de 1 a 3 salários mínimos (HIS-1), 3 a 6 salários mínimos (HIS-2) e 6 a 10 salários mínimos (HMP), “propiciando a ocorrência de inúmeras fraudes com alienação e locação daquelas unidades habitacionais para quem não se enquadrava nas respectivas faixas de renda, em prejuízo do público-alvo”.
Desta maneira, entre dezembro de 2024 a janeiro de 2025, aquela Promotoria recebeu dos Cartórios de Registro de Imóveis de São Paulo mais de 560 comunicações de possíveis alienações fraudulentas de unidades HIS e HMP. A ação pede a condenação do município, entre outras, à obrigação de instaurar e concluir os procedimentos administrativos “para apuração de fraudes no prazo de 180 dias para que sejam aplicadas as sanções administrativas previstas na legislação contra as construtoras e terceiros adquirentes, em especial, no que tange ao pagamento da outorga onerosa do direito de construir (antes isentada) e multa”.
Rosana Yamaguti,[v] da Universidade Federal do ABC, também aborda em artigo a problemática relacionada à produção de Habitação de Interesse Social (HIS) no município de São Paulo, no contexto de políticas neoliberais, analisando a legislação e as pesquisas que tratam dos resultados de sua aplicação, os incentivos urbanísticos envolvidos e uma breve abordagem dos possíveis impactos de revisões recentes do Plano Diretor Estratégico e da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo. Os resultados apontam para a ampla utilização dos instrumentos e dos incentivos para HIS com suas justificativas por um mercado que se estruturou em torno do chamado segmento econômico. Por falta de uma política habitacional efetiva e de controle do poder público em relação à destinação dessas unidades, observa-se o aumento do preço das unidades e o desvirtuamento da destinação, afastando as parcelas mais pobres da população, que sofrem as consequências do déficit habitacional.
As calçadas continuam a indicar “uma administração incapaz de planejar à altura do grau de consciência que se tem das questões urbanas”, nas palavras de Yázigi, sendo palco de tristes histórias de vida pessoal.
Uma destas foi registrada num fim de semana de verão, período das chuvas na cidade, em bairro de classe média, distante um quarteirão dos trilhos do metrô e perto da mais nova estação final da rede. Sábado calmo, seguindo um dia com fortes chuvas e alagamentos em regiões da cidade, para desespero de seus moradores. O local nada tinha sofrido. A mulher foi até a casa do filho, que estava viajando, estacionou o carro na frente do portão da casa e reparou num homem sentado na calçada, da outra rua perpendicular, e encostado na parede de uma casa, descansando e olhando para o alto, observando coisas que chamavam sua atenção... Havia alguns pertences do lado, estava bem vestido e calçava tênis. Era de manhã. A mulher entrou, cuidou das coisas que fora resolver e foi embora.
Retornou à tarde, permaneceu algum tempo, desceu as escadas para sair ainda na claridade. Abriu o portão e olhou para os lados, antes de entrar no carro. Aquele homem, que estivera de manhã na outra rua, estava a alguns metros do portão, diante do muro de arrimo do barranco sobre o qual ficava a casa e embaixo de uma grande árvore, cujos galhos impediam a passagem dos raios do sol no chão, deixando marcas verdes de limo, além de tufos de vegetação que nasceram do cimento da calçada. Tinha esticado alguma coberta sobre o qual estava deitado, com a cabeça virada para a parede e os pés na direção do leito da rua. Estava ajeitando a outra coberta sobre seu corpo.
Ela não conseguiu definir a sensação que teve, mistura de susto e compaixão, ao encarar de frente a extrema vulnerabilidade de um ser humano, sozinho, sem qualquer proteção e sem teto, preparando na calçada pública um canto seu para o descanso noturno. Parecia ter escolhido o local pela privacidade oferecida pela copa da árvore e por um carro estacionado.
Na manhã seguinte, o mesmo homem estava sentado na calçada do outro lado da rua aproveitando o calor do sol e secando suas coisas que devem ter umedecido. À distância, a mulher ficava observando sua movimentação, parecendo estar ajeitando suas coisas na mochila para seguir caminho. Ela sentia necessidade de ajudar de alguma maneira. Pegou algumas fatias de pão e encheu uma garrafa com água; não pretendia remexer na geladeira do filho para buscar outro alimento. Quando olhou novamente para a rua, o homem já tinha ido embora. Sentiu remorsos pela inação. Saiu da casa, passou de carro nas ruas próximas e sentiu alívio ao encontrá-lo num quarteirão acima, sentado num banco da pracinha de frente para a rua de certo movimento. Ele tinha caminhado pouco.
Parou o carro, deu um “bom dia” e perguntou-lhe se aceitaria as fatias de pão de forma e a água. Ele olhou calmo para a mulher, assentiu com a cabeça e levantou do banco. Deu para notar sua alta estatura e que sentia dor ao andar. À pergunta dela, ele apontou para o pé descalço onde havia uma grande ferida. - Quer que peça uma ambulância? Indicou “não” com a cabeça, com dificuldade disse “rua” e pegou o pacote. - Prefere ficar na rua? Ele assentiu com gesto da cabeça. Aparentava ter dificuldade para falar, talvez pelo isolamento que se impôs. A mulher desejou-lhe “boa sorte” e seguiu seu caminho com sensação de ter ajudado um pouco...
A fala curta do homem foi uma declaração de sua frágil liberdade.
Ao final da tarde, naquele domingo, a maior cidade da América do Sul foi de novo castigada por chuva carregada ...
Referências:
[i] Yázigi, Eduardo, O mundo das calçadas, p. 265. (São Paulo: Humanitas/FFLCH6/USP; Imprensa Oficial do Estado, 2000), p. 265
[ii] Fractal é um objeto geométrico que pode ser dividido em partes, cada uma das quais semelhante ao objeto original. Um fractal pode ser gerado por um padrão repetido, tipicamente um processo recorrente ou iterativo (Wikipedia)
[iii] https://www.mpsp.mp.br/w/inqu%C3%A9rito-do-mpsp-apura-direcionamento-de-moradias-sociais-para-fam%C3%ADlias-de-maior-renda
[v] Yamaguti, R. (2024). A problemática da habitação de interesse social no município de São Paulo: legislação, políticas, discursos e práticas. Revista Simetria Do Tribunal De Contas Do Município De São Paulo, 1(14), 103–130. https://doi.org/10.61681/revistasimetria.v1i14.209.
M. Madeleine Hutyra de Paula Lima é advogada, mestra em Direito Constitucional e mestra em Patologia Social e associada do IBAP.
O texto aborda a expansão desordenada das construções em São Paulo, a precariedade da política habitacional e o impacto social das falhas na fiscalização das Habitações de Interesse Social. Relata ainda um encontro com um homem em situação de rua, evidenciando a vulnerabilidade urbana. Com sensibilidade e precisão, a autora, que conheci há quase 30 anos em Curso de Pós Graduação da ESA-OAB/SP e que foi co-fundadora do Centro de Estudos sobre Meio Ambiente e Relações de Consumo - Projeto Marco, articula uma crítica contundente à degradação urbana e às contradições do planejamento habitacional. O texto transcende a análise técnica ao humanizar o impacto dessas políticas, expondo a dureza da exclusão social na metrópole. Da especulação imobiliária ao abandono das…
Ao utilizar as calçadas como metáfora, o texto nos conduz a uma profunda reflexão sobre a incapacidade estrutural da administração pública, subordinada aos interesses do grande capital, de planejar e implementar políticas urbanas que efetivamente atendam às necessidades da maioria da população. A autora destaca, de maneira incisiva, que as calçadas não são apenas vias de circulação, mas espaços que revelam as contradições sociais e a exclusão vivida por milhares de pessoas. As calçadas, portanto, tornam-se símbolos dessa desigualdade, onde histórias de vulnerabilidade e exclusão se desenrolam diariamente, revelando a urgência de uma transformação estrutural que priorize os direitos humanos e a dignidade de todos (art. 1º, inc. II, da Constituição da República).