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INVESTIMENTO EM PESQUISA CIENTÍFICA PÚBLICA: REFLEXO DE AUTONOMIA

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    Revista Pub
  • há 2 dias
  • 6 min de leitura

-M. Madeleine Hutyra de Paula Lima-







Centro Experimental Central (CEC), conhecido como “Fazenda Santa Elisa”, tem 692 hectares e 14 km de divisas. -  https://conheca.campinas.sp.gov.br/pois/24
Centro Experimental Central (CEC), conhecido como “Fazenda Santa Elisa”, tem 692 hectares e 14 km de divisas. - https://conheca.campinas.sp.gov.br/pois/24

Durante a Segunda Guerra Mundial, a cidade soviética de Leningrado foi cercada pelas tropas nazistas de 1941 a 1944 e ficou sem suprimento de alimentos por quase dois anos e meio, para desespero das pessoas: comiam couro cozido, óleo de máquina, pasta de dente e pasta de papel de parede apenas para se manterem vivas. Mas, no centro da cidade, no Instituto de Leningrado, hoje Instituto Vavilov, um grupo de botânicos passava os dias cercados de alimentos que se recusavam a tocar - nozes, sementes e até mesmo um porão cheio de batatas - mesmo quando vários deles morriam de fome. Era a coleção do primeiro banco de sementes do mundo: uma biblioteca de variedades de culturas que continha a diversidade genética na qual as futuras gerações de criadores de plantas confiaram para alimentar o mundo. O fato integra um episódio de podcast contando a bravura quase inimaginável que está por trás dos alimentos que comemos hoje (Gastropod)[i]. Essa coleção de sementes representou o trabalho de vida do biólogo russo e sua equipe, que conduziria à criação, em 1924 em São Petersburgo (Leningrado), do primeiro banco de sementes do mundo.


A partir de 1916, Nicolai Vavilov, biólogo, geneticista, geógrafo e agrônomo russo, nascido em 1887, realizou várias expedições para recolher sementes cultivadas em regiões mais e menos “exóticas”, em cinco continentes, visitando mais de 64 países por mais de vinte anos. Aprendeu 15 línguas para ouvir diretamente dos agricultores tradicionais sua percepção sobre a importância da diversidade das sementes para seus cultivos. Descrevi sua perseguição por abuso de autoridade contra a ciência, levando à sua morte trágica em texto anterior, refletindo os erros da política arbitrária contra o avanço tecnológico (AQUI). A dedicação de Vavilov e dos botânicos ao trabalho científico permitiu ao banco de genes do Instituto Vavilov ser um dos maiores do mundo.


Nossos tempos são outros? Existe bastante conhecimento sobre a importância da biodiversidade e da alimentação saudável, embora desvalorizado por outros. Com base na experiência de que os países mais inovadores e competitivos registram maior avanço do conhecimento científico e visando dar continuidade a diversos progressos registrados, o Brasil, por meio dos vários Planos de Ação do Ministério da Ciência e da Tecnologia, atualmente Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação propôs reduzir a defasagem científica e tecnológica e ampliar as bases para a sustentabilidade ambiental e a superação da pobreza  por meio do lançamento em 2021 da ENCTI – Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação.[ii] O PACTI - Plano de Ação em Ciência, Tecnologia e Inovação para os Biomas Brasileiros de 2018, do CGEE, prevê o estabelecimento de linhas temáticas contemplando os vários grandes biomas (por ser espaço de biodiversidade) e reconhece como atividades estratégicas e prioritárias promover o uso da produção científica brasileira e aplicar seus dados científicos em políticas públicas (CGEE, 2018). Medidas que decorrem das normas da Constituição Federal que dão tratamento especial à ciência, de proteção à pesquisa científica, à liberdade de ação do pesquisador científico e ao patrimônio científico brasileiro (artigos 5º, 216 e 218). Visam proteger o patrimônio cultural brasileiro, na área da ciência, incluindo a proteção das criações científicas (art. 216, inciso III).[iii]


Na prática, porém, o Brasil passou a atuar de forma contrária ou, pelo menos, insatisfatória, inclusive no Estado de São Paulo. A desvalorização da ciência e da pesquisa científica vem acontecendo também com medidas que modificaram estruturas administrativas de institutos de pesquisas afetando a continuidade normal das atividades realizadas, com prejuízos evidentes, com dispersão e perda do patrimônio científico. A própria pesquisa científica de caráter público, nas áreas ambientais, vem sofrendo desvalorização, com redução de verbas e desmonte de estruturas em vários níveis de governo. A sociedade civil organizada e a comunidade científica vêm reagindo e cobram dos governos a revalorização do patrimônio científico e a promoção necessária à pesquisa científica ambiental e de biodiversidade diante da premência em proteger o meio ambiente e a diversidade biológica, recorrendo inclusive ao Poder Judiciário em questões pontuais sob a tutela do ordenamento jurídico interno e convenções internacionais.[iv]


Já a Convenção da Diversidade Biológica qualificava expressamente como investimento a aplicação de verbas públicas em ciência, representando para a economia dos países um investimento para o desenvolvimento nacional. A COP 10/CDB integrou duas novas conquistas, ao exigir dos países: a) incorporarem a garantia da biodiversidade em sua contabilidade nacional, e 2) reduzirem os subsídios destinados a atividades consideradas prejudiciais e degradantes da biodiversidade. São novos paradigmas para conservar o meio ambiente e a biodiversidade, que reafirmam a necessidade fundamental de se conservar a natureza por ser a própria base da nossa economia e da nossa sociedade. Foi aprovado também o Plano Estratégico de Biodiversidade para o período de 2011 a 2020, de que são parte essencial as 20 Metas de Aichi. Desta forma, no Brasil, o poder público tem o dever reforçado de envidar esforços para preservar a biodiversidade e fazer uso sustentável de seus recursos biológicos, exercendo o controle sobre as atividades humanas, para prever, prevenir e combater, na origem, as causas da redução ou perda da diversidade biológica.[v]

 

Há obrigatoriedade de respeitarem-se os parâmetros constitucionais e convencionais em proteger e promover a pesquisa científica pública. Também considerar aplicável o pensamento do economista Celso Furtado em prol do desenvolvimento nacional, ao afirmar: “nunca pude compreender a existência de um problema estritamente econômico”.

Por mais outros motivos que não cabem neste texto, a consciência cidadã, a visão jurídica ambiental e a política de desenvolvimento nacional são violados com a medida pretendida pelo governador do Estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas, de marcar uma audiência pública para “debater a venda de 35 áreas de institutos de pesquisa do estado”, a ser realizada em 14 de abril de 2025, localizados nos municípios: Campinas, Cananéia, Dois Córregos, Gália, Iguape, Itapetininga, Itararé, Jaú, Jundiaí, Mococa, Monte Alegre do Sul, Nova Odessa, Palmital, Peruíbe, Pindamonhangaba, Piracicaba, Pirassununga, Registro, Ribeirão Preto, São Roque, Sertãozinho, Tatuí, Tietê e Ubatuba.[vi] Entre estas unidades, estão o Instituto Agronômico de Campinas, com mais de 130 anos de produção de pesquisa sobre o café; o Instituto Butantã, fundamental na produção de vacinas, e o Adolfo Lutz, referência para a saúde da população paulista. Segundo a Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC), existe um verdadeiro sucateamento dos institutos de pesquisa, com retirada de recursos para as instituições, falta de concursos para preencher vagas, falta de atualização salarial dos servidores.[vii]

 

Há obrigatoriedade de respeitarem-se os parâmetros constitucionais e convencionais em proteger e promover a pesquisa científica pública. Também considerar aplicável o pensamento do economista Celso Furtado em prol do desenvolvimento nacional, ao afirmar: “nunca pude compreender a existência de um problema estritamente econômico”.

 

Por fim, apelo para os espíritos de Nicolai Vavilov e dos heróicos botânicos russos para que venham iluminar a decisão política contra o ímpeto de vender as áreas dos institutos de pesquisa do Estado de São Paulo!


[i] Gastropod: The Shocking True Story of the World's First Seed Bank-And The Scientists Who Sacrificed Their Lives to Save It, lançado pela primeira vez em 25/02/2025.

[ii] No decorrer do PACTI 2007-2010 houve um aumento estimado dos recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) de mais de 750%, por entender que a destinação de 1,2% do PIB do Brasil, apesar de avanços, era bem inferior àquela de outros países.  

[iii] O Centro de Gestão e Estudos Estratégicos é uma organização social supervisionada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). CENTRO DE GESTÃO E ESTUDOS ESTRATÉGICOS, 2018. Plano de Ação em Ciência, Tecnologia e Inovação para os Biomas Brasileiros. Brasília, DF: Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, 2018.

[iv] Em plena pandemia, 2020, houve a extinção do Instituto Floresta e mudanças administrativas correlatas com suas atividades de pesquisa científica ambiental e de biodiversidade, com mudança de gestão de áreas de pesquisa, causando forte movimentação contrária na comunidade científica e na sociedade civil organizada (ACP 1029471-50.2021.8.26.0053, 2ª. Vara da Fazenda Pública da Capital, São Paulo).  

[v] LIMA, Marie Madeleine Hutyra de Paula. A tutela jurídica da ciência e da pesquisa científica: na área ambiental e da biodiversidade. Revista de Direito Constitucional e Internacional. vol. 130. Ano 30. p. 171-196.  São Paulo: Ed. RT, mar.abr. 2022.


 

M. Madeleine Hutyra de Paula Lima é advogada, mestra em Direito Constitucional e mestra em Patologia Social e associada do IBAP. Publica sua coluna todo dia 13 do mês.



 

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