-M. Madeleine Hutyra de Paula Lima-

A ideia do marco temporal foi afastada por decisão do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário (RE) 101736 em 2023. Posteriormente, o Congresso Nacional aprovou a Lei n. 14.701, em dezembro de 2023, que contemplava questão relacionada com o marco temporal. Na Ação Direta de Constitucionalidade - ADC 87/DF, a respeito dessa lei proposta pelos partidos Progressista e Republicano, o ministro-relator Gilmar Mendes decidiu criar uma Comissão de Conciliação. Destaco um dos argumentos da decisão do ministro ao fundamentar uma autocomposição do conflito na jurisdição constitucional, a seguir:
“esta controvérsia profunda em suas origens e sistêmica em suas consequências, não será resolvida apenas com uma decisão judicial. Pelo contrário, o próprio dissenso engendrado pelos debates político-jurídicos desde a Constituinte de 1987/1988 evidencia que dilemas estruturais dessa natureza dificilmente são solucionados pela atuação jurisdicional heterocompositiva, ainda que bem intencionada, pois o diálogo institucional usual entre os Poderes tem se mostrado insatisfatório”.
O reconhecimento desta dificuldade em harmonizar interesses tão contraditórios sintetizados numa decisão judicial pode encontrar dificuldade similar na efetividade e na eficácia de uma “composição” entre esses mesmos interesses diante de aspectos fáticos e históricos enraizados na pressão de grupos econômicos para seu próprio interesse, mas que violam os direitos dos povos indígenas.
Passaram-se 525 anos desde a chegada dos portugueses ao Brasil e a colonização dos povos nativos, com centenas de grupos indígenas explorados de diversas formas, mão de obra escrava, usurpar suas riquezas e seus territórios, ou a sua eliminação física e/ou cultural.
A ditadura dos governos militares começou 61 anos atrás, durou 25 anos e representou uma escalada constante de violação de direitos e de violência física contra pessoas e grupos que ousassem dela discordar. Neste contexto, o segmento dos povos indígenas foi duramente castigado. A História recente e as eleições que sucederam a partir do golpe parlamentar contra a presidenta Dilma Roussef revelam que os representantes no Legislativo contrários à demarcação das terras indígenas no Congresso Nacional estão unidos e em grande maioria, envolvendo interesses também de mineração em terras indígenas. Esta pressão pode afetar as próprias condições da pretendida conciliação, cujos estudos estão em andamento, tirando a segurança jurídica dos povos indígenas quanto à demarcação dos seus territórios e quanto à forma de sua utilização. Restaria sempre brecha para o grupo de pressão mais forte buscar formas novas para reduzir, ou simplesmente violar, esses direitos consagrados na Constituição Federal, minando a decisão do STF que afastara a tese do marco temporal.
Voltando no tempo, o Serviço de Proteção ao Índio – SPI foi criado em 1910, sob a liderança de Cândido Mariano da Silva Rondon, pretendendo integrar os indígenas ao modelo cultural e econômico dominante dos brancos, numa forma de pacificação de grupos indígenas e, assim, justificar a tutela do Estado brasileiro nas relações indígenas-sociedade com um aparelho administrativo único. Por meio dessa política, o governo passou ao domínio dos Estados terras devolutas, incluindo as terras ocupadas pela população indígena. A falta de verbas da instituição para suas atividades e pessoal sem qualificação dificultaram o trabalho de funcionários com intenção de dar assistência legítima nas aldeias e foram gerando ao longo dos anos uma série de arbitrariedades do SPI.[i] (Bem semelhante ao que pode vir a acontecer com o desmonte dos órgãos e institutos públicos atualmente...)
O SPI, porém, sucumbiu a diversas formas de corrupção de muitos de seus funcionários, que se aliaram a mineradores, madeireiros e fazendeiros e, desvirtuando totalmente sua finalidade, subjugaram povos indígenas a esses interesses, com violências extremas.
Segundo artigo de Aline Nóbrega de Oliveira, em março de 1963, a Câmara dos Deputados instituiu uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar irregularidades no SPI com o intuito de investigar a assistência prestada aos indígenas, arrendamento das terras e outros crimes tais como: contaminação por doenças (tuberculose e malária), subnutrição, mortes etc. Em 1964, após o golpe civil-militar no Brasil, em meio às investigações, ocorreram diversos incêndios sem explicação em Brasília, um deles afetando o Ministério da Agricultura, ao qual o SPI era subordinado e cuja sede funcionava no mesmo bloco incendiado e os arquivos guardavam cerca de 150 inquéritos em andamento. O jornal Correio da Manhã, em 1967, questionou a sequência de incêndios misteriosos aventando a hipótese de serem criminosos, pois tinham em comum inquéritos policiais e similares.
A pressão por respostas para o genocídio indígena continuou e uma nova CPI foi instaurada em novembro de 1967. A nova comissão investigadora foi instituída pelo Ministério do Interior e presidida pelo Procurador Jader de Figueiredo Correia, com novos poderes de atuação para apurar as irregularidades cometidas pelo SPI, infrações que haviam sido denunciadas na investigação anterior. Figueiredo e sua equipe produziram um conjunto documental com mais de 7.400 páginas, que apresentam um cenário incontestável de genocídio e etnocídio engendrado por agentes do Estado e grupos articulados com fazendeiros, empresas de mineração, borracha e madeira utilizando a administração pública para benefício próprio.
Segundo Oliveira, em março de 1968, o relatório com o resultado das investigações da CPI de Jader Figueiredo foi divulgado pela imprensa, meses antes do desaparecimento dos arquivos, caso que gerou debates entre entidades e órgãos internacionais sobre o Brasil. A investigação foi interrompida com o Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, e o último depoimento colhido foi no dia 20 de novembro de 1968. Após a repercussão negativa do relatório, o Brasil foi pressionado a apresentar explicações sobre o genocídio indígena, o que resultou na extinção do SPI e na criação da Funai em 1970. Com o recrudescimento da ditadura militar após o AI-5, em 1968, o relatório desapareceu. O documento foi reencontrado em 2012, transferido da Funai em Brasília, entre as caixas com documentos sobre o SPI, para o Museu do Índio do RJ e identificado pelo pesquisador Marcelo Zelic como um conjunto de documentos que relatam crimes em seu mais elevado nível de barbárie contra a população indígena, antes e durante a ditadura militar. Zelic denunciou o documento à Comissão Nacional da Verdade (CNV),[ii] dando início à investigação de crimes contra os povos indígenas durante a Ditadura Militar, compondo um capítulo sobre o tema. Em 1º de abril de 2014, a reportagem "Silêncios da Ditadura" na TV SBT, relatava o sofrimento imposto a povos indígenas e fazia referência ao Relatório Figueiredo. (VEJA)
As práticas do passado continuam vivas a demonstrar que o indígena, por suas terras, é visto por segmentos do agronegócio e da mineração como obstáculo para a ampliação das fronteiras de suas atividades. Teve até manifestação pública do presidente anterior que afirmava “nenhuma terra a mais para demarcação de terra indígena”. É a visão neoliberal de eliminar os nativos para explorar com mais facilidade a terra e seus recursos minerais.
O pensador Ailton Krenak refere-se a estas novas forças mais poderosas que “atuam de forma mais aprimorada, com novas táticas, sem perder os velhos costumes e receitas de brutalidade que deram certo no passado de acordo com seus interesses, mudam de repertório, mas repetem a dança, e a coreografia é a mesma: um pisar duro sobre a terra. A nossa é pisar leve, bem leve” (KRENAK, 2020, p.60, apud OLIVEIRA).
Uma proposta de lei complementar foi sugerida pelo ministro-relator Gilmar Mendes. Alguns pontos são criticados. Um deles possibilitaria levar à remoção de povos indígenas de seus territórios tradicionais, no caso de situações de conflito antes da demarcação oficial das terras, quando essas comunidades poderiam receber outra área como “compensação”, uma prática que fora banida da Constituição de 1988. Outra mudança,no caso em que fosse “demonstrada a absoluta impossibilidade da demarcação” e, na busca de “paz social”, o Ministério da Justiça e Segurança Pública poderia realizar uma “compensação” às comunidades indígenas, concedendo “terras equivalentes às tradicionalmente ocupadas”, sem esclarecer a forma para demonstrar essa eventual impossibilidade da demarcação e quem seria o beneficiário da citada “paz social” (Agência Publica).[iii]
Um abaixo-assinado do Greenpeace.org com o título “Os direitos dos povos indígenas não se negociam” está circulando pelas redes sociais.[iv] O Presidente do Cimi, Dom Leonardo Steiner dirigiu-se à ONU e apelou para que o STF voltasse ao que foi decidido em 2023 sobre o marco temporal. Enfatizou que os povos indígenas não deram consentimento à Comissão de Conciliação do STF, que propôs lei complementar sobre tema pacificado pela Corte (4/3/2025). Após críticas da ONU, o ministro Gilmar Mendes suspendeu temporariamente o debate sobre demarcações, a pedido da Advocacia-Geral da União. Enquanto isto, o garimpo ilegal continua devastando terras indígenas.
Como pode haver conciliação diante dessas ppropostas de retrocesso no direito dos povos indígenasa suas terras e que possibilitariam a repetição dos condenáveis fatos do passado?
[i]Aline Nóbrega de Oliveira, Relatório Figueiredo e necropolítica: da política de proteção ao genocídio indígena. Em Favor de Igualdade Racial, Rio Branco, Acre, v. 6, n.2, p. 05-20, mai-ago. 2023.
[ii] A CNV, órgão temporário criado pela Lei 12.528, de 18 de novembro de 2011. Encerrou suas atividades em 10 de dezembro de 2014, com a entrega de seu relatório final. Disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/.
[iii] Isabel Seta, Reportagem: Proposta de Gilmar Mendes pode remover indígenas sob justificativa de “paz social”, Publica, 24/02/2025.
[iv] “Os direitos dos povos indígenas não se negociam”. Abaixo-assinado do Greenpeace.
M. Madeleine Hutyra de Paula Lima é advogada, mestra em Direito Constitucional e mestra em Patologia Social e associada do IBAP.
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