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O Corona vírus não é “democrático”

O caso das comunidades de Fortaleza sem acesso ao sistema público de saneamento básico.

- João Alfredo Telles Melo -


Hoje, Fortaleza acordou impactada com a notícia de que, segundo projeção do Secretário de Saúde do Estado do Ceará, Dr. Cabeto, poderemos ter 250 mortes por dia no mês de maio, quando estaremos no pico da COVID19 em nossa capital. E as más notícias não param por aí: os leitos de UTI do sistema público já lotaram e só há equipamentos de proteção individual para os próximos cinco dias (vide Redação O Povo).


Na referida matéria, sabemos que, só ontem, na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da Praia do Futuro, havia 22 doentes em fila. A Praia do Futuro, muito conhecida por suas barracas e bares, concentram uma quantidade muito grande de comunidades de baixa renda, em toda a sua extensão, tanto na proximidade do mar, como em suas dunas. Uma dessas comunidades é a “Raízes da Praia”, bem em frente ao mar, na parte do que se convencionou chamar Praia do Futuro antiga. Há mais de 10 anos que ela luta por moradia e serviços de água e saneamento junto ao poder público municipal. Uma matéria de jornal de ontem dá conta que, dentre as mais de quatrocentos pessoas que moram em cerca de 80 residências extremamente precárias (feitas de madeira e/ou papelão), já se confirmou um caso de contaminação pelo Corona vírus. O problema é que aquela comunidade não tem nenhum sistema de esgotamento sanitário. Veja como a matéria do jornal relata a situação absurda: “um grande buraco foi aberto pela Prefeitura de Fortaleza para receber a água da chuva e evitar alagamentos. No entanto, por não ter um projeto sanitário, a água de esgoto das casas escoa para o local. Mau cheiro, lixo e grande quantidade de insetos são observados por todo lado” (vide Ítalo Cosme).


Infelizmente, essa situação – ausência de sistema de esgotamento sanitário – atinge em torno de 38% dos domicílios de Fortaleza (vide Portal Tratamento de Água). Se, de acordo com o Censo Demográfico de 2010, temos (ou tínhamos, vez que já se passaram 10 anos), pouco mais de 711 mil domicílios , significa dizer, que são mais de 270 mil domicílios (famílias) sem acesso ao sistema público de saneamento básico (vide Prefeitura Municipal de Fortaleza).


E o que isso tem a ver com a COVID19? Ora, além da possibilidade de nessas áreas, onde sistemas de abastecimento d’água por poços podem estar contaminados pela proximidade com fossas sépticas, já se investiga a possibilidade da transmissão do vírus por via de águas servidas e esgotos sanitários. Matéria da BBC Brasil dá conta de duas pesquisas – uma na China e outra na Holanda – onde foi detectada a presença do novo Corona vírus nas fezes de pacientes. Na Holanda, foi divulgada uma nota técnica “alertando para os efeitos da presença do coronavírus no esgoto. De acordo com o texto, a possibilidade da transmissão via feco-oral do vírus Sars-CoV-2 tem muitas implicações, especialmente em áreas carentes de infraestrutura de saneamento básico”. “Contaminação ou rota feco-oral”, diz a matéria, ocorre “quando o patógeno (o vírus, neste caso) está presente nas fezes de uma pessoa e pode entrar na boca de uma outra pessoa, por meio da contaminação da água e de alimentos ou da transmissão mão-boca, por causa de lavagem inadequada das mãos após tocar em itens contaminados” (vide Evanildo da Silveira). Observe-se a frase: “áreas carentes de infraestrutura de saneamento básico”!


Tudo isso desmente o senso-comum de que o vírus seria “democrático”, atingiria a todos da mesma maneira, independentemente da classe social, da cor, da moradia etc. Se é verdade que ele, o Corona, foi trazido pela classe alta e média alta, em suas viagens para o exterior (ou em contato com pessoas que realizaram essas viagens), seu espraiamento acaba atingindo com mais força os que não têm condições de se isolar – seja porque tem que trabalhar (já que a ajuda governamental é absolutamente insuficiente), seja porque suas condições de habitabilidade não permitem – e os que não têm acesso ao serviços básicos de água e saneamento.



Muito tem se falado que a COVID é uma doença de ricos, que só os bairros da burguesia e da classe média alta é que concentram os casos (a situação do bairro do Meireles, em Fortaleza, foi muito divulgada na imprensa, por ter mais casos de que estados inteiros). Mas, não é bem assim. O informe epidemiológico do Governo do Estado do dia de ontem (14/04/2020) é bastante esclarecedor. O que ocorre, na realidade, é que é nas duas pontas da pirâmide social (medidas pelo IDH, Índice de Desenvolvimento Humano) é que vão se encontrar os maiores números de casos confirmados da COVID19. Dos 969 casos de ocorrência onde se conhece a procedência dos bairros (779 em Fortaleza não têm identificação do bairro), 308 foram provenientes de bairros do IDH Muito Alto, enquanto 332 aconteceram em bairros com IDH Muito Baixo. Entretanto, quando se observa o número de óbitos com bairros identificados (23 ainda estão sem identificação), a injustiça e a desigualdade social cobram seu tributo: enquanto são 8 mortes nos bairros com IDH Muito Alto, foram 22 óbitos (quase três vezes mais!) nos bairros com IDH Muito baixo.


Não resta dúvidas de que vivemos uma situação-limite. Situação que só se agrava porque o sujeito (despreparado e perverso) que ocupa a presidência tem obsessivamente sabotado todas as boas, necessárias (e talvez até insuficientes) medidas para tentar conter a disseminação da pandemia no país. Se aqui no Estado, podemos ter confiança na conduta levada à frente pelo governo, em especial, pela Secretaria de Saúde, as medidas têm que ir muito além do que já vem sendo indicado. Requerem do governo e da prefeitura medidas urgentes para proteger as comunidades vulneráveis que vivem situação como a da Raízes da Praia, do ponto de vista de resguardar condições de vida e de saúde. Pois, o que significa isolamento social para quem convive diretamente com pequenos riachos e lagos de esgotos a céu aberto nas portas de suas casas?

 

João Alfredo Telles Melo é Advogado, professor universitário, presidente da Comissão de Direito Ambiental da OAB/CE, ex-parlamentar e é sócio da APRODAB e do IBAP.

 

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