-IBRAIM ROCHA-
O Papa Francisco tornou pública, em 2 de fevereiro e 2020, a exortação apostólica pós-sínodo da Amazônia, denominada “Querida Amazônia”, dirigida “Ao povo de Deus e a Todas as Pessoas de Boa Vontade”, onde destaca de forma muito veemente a mensagem de que esse Amor pela Amazônia se manifesta pelos povos da floresta, cuja forma de viver deve nos inspirar a um novo mundo, que nos retire do colapso ambiental.
É interessante notar que o documento inicia pelo capítulo denominado UM SONHO SOCIAL, e ao identificar a origem de ‘injustiça e crime” que criaram o estado de coisas que vivemos aduz no § 9 “os interesses colonizadores, que legal e ilegalmente, fizeram - e fazem – aumentar o corte de madeira e a indústria minerária e que foram expulsando e encurralando os povos indígenas, ribeirinhos e afrodescendentes” (grifei), deixando claro o recado de que a legalidade não pode legitimar o crime ambiental e social.
Isto é relevante quando agora a ditadura bolsonarista avança e a sociedade pouco resiste e revela o grande desafio pois “a disparidade de poder é enorme, os fracos não têm recursos para se defender, enquanto o vencedor continua a levar tudo”. Por fim, no § 14 resume bem como o caos se instala: “Às operações económicas, nacionais ou internacionais, que danificam a Amazónia e não respeitam o direito dos povos nativos ao território e sua demarcação, à autodeterminação e ao consentimento prévio, há que rotulá-las com o nome devido: injustiça e crime.”
Mas o documento é de denúncia, e exortação à ação, e aponta no modo de viver das comunidades da Amazônia uma luz para a ação, destacando no § 20: “A luta social implica capacidade de fraternidade, um espírito de comunhão humana. Então, sem diminuir a importância da liberdade pessoal, ressalta-se que os povos nativos da Amazônia possuem um forte sentido comunitário.”
Sem deixar de ser teológico, o documento mostra na própria redação uma abertura ao secularismo, exortando a necessidade de se dialogar para encontrar a unidade permanente entre as diversas matizes de religião, com destaque às comunidades amazônicas, ainda que sem renunciar ao que designa como encontro intercultural pois “cuidar dos grupos indígenas deveria ser interesse de todos, porque a riqueza também é nossa” (§ 37) e este novo diálogo precisa ser aprendido e ensinado: “Não haverá uma ecologia sã e sustentável, capaz de transformar seja o que for, se não mudarem as pessoas, se não forem incentivadas a adotar outro estilo de vida, menos voraz, mais sereno, mais respeitador, menos ansioso, mais fraterno” (§ 58).
O documento sem se furtar a citar passagens bíblicas não se intimida a citar até mesmo o poetinha, que nos brindou com a descrição da garota de Ipanema, como um exemplo de sensibilidade poética que precisamos despertar para acordar a esse desafio que clama a natureza com a seguinte passagem de poema de Vinicius de Moraes “Sofre o mundo da transformação dos pés em borracha, das pernas em couro, do corpo em pano e da cabeça em aço (...). Sofre o mundo da transformação da pá em fuzil, do arado em tanque de guerra, da imagem do semeador que semeia na do autómato com seu lança-chamas, de cuja sementeira brotam solidões. A esse mundo, só a poesia poderá salvar, e a humildade diante da sua voz”.
Quando se vive uma era de intolerância contra a cultura popular, em que o samba é marginalizado pela ditadura bolsonarista, vem do Vaticano um recado de que o que importa é ampliar o culto da beleza pela arte, sem nenhum prejulgamento, importando ampliar o diálogo para nos reencontrar com a natureza que nos faz verdadeiramente humanos, como os exemplos que vêm da floresta.
IBRAIM ROCHA - Procurador do Estado e Doutor em Direito.
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