As duras missões de um Papa
- Revista Pub
- 16 de mai.
- 3 min de leitura
-BERNARDO LINS-
Meu pai foi diplomata de carreira e, na infância, tive a oportunidade de conhecer outros países e estudar em escolas locais. Fui alfabetizado em espanhol e aprendi o italiano desse modo. Em 1971, tendo servido na embaixada do Brasil junto à Santa Sé, meu pai já estava removido para Buenos Aires e pediu uma audiência de despedida. O Papa Paulo VI o recebeu, junto com a família. Foi assim que conheci um Papa de perto, uma vez na vida.
No dia da audiência, chegamos um pouco mais cedo e ficamos em uma antessala, aguardando. Sua Santidade estava a uns vinte metros, recebendo outra pessoa, um emissário que, sozinho, conversava com ele muito alterado. Os intérpretes, ao lado de ambos, iam acompanhando a conversa em inglês. Nervoso, o homem foi levantando a voz e se agarrando aos braços de Paulo VI, as pessoas em volta dos dois espantados e o Papa pondo as mãos em seus ombros, para acalmá-lo. As palavras “guerra”, “massacre”, soaram nitidamente no tom aflito do interlocutor. A resposta do pontífice pareceu tranquilizá-lo e aos poucos ele foi recobrando a calma.
Encerrada aquela conversa, meu pai me disse, em voz baixa: “essa é a vida de um Papa; pescar no mundo o que há de mais sofrido e lidar com as dores mais sérias da humanidade”. Paulo VI se despediu do emissário, conversou com um par de pessoas que assistiram ao encontro e pareceu refletir.
Veio em seguida nossa audiência. Sua Santidade nos recebeu com gentileza, conversou com meu pai sobre seus anos servindo na embaixada. Mostrou-se discretamente alegre com a família, trocou umas palavras conosco, um a um, deu-me uma medalha que guardo até hoje em algum lugar, perdida na bagunça de casa. Mas não me culpo. Qual é a casa simpática que não tem uma bagunça?
Após a audiência descemos até algum estacionamento dentro da Cidade do Vaticano em que meu pai havia deixado o carro, um Fiat 124 preto em que cabíamos apertados. Cinco filhos não é algo que combine com luxo. Curioso como todo menino de treze anos, perguntei sobre aquela cena que havíamos presenciado de longe. Soube que era uma pessoa de Bangladesh.

O conflito em Bangladesh havia começado em março daquele ano. Chamado de Paquistão Oriental à época, a região constituía, com o atual Paquistão, um único país predominantemente muçulmano. As eleições gerais vencidas por um partido local haviam sido anuladas pelos paquistaneses e a reação popular foi reprimida brutalmente, dando início a um genocídio promovido pelo exército e por braços armados ligados a este. Cerca de dez milhões de pessoas fugiram da região, refugiando-se na Índia em condições de extrema miséria.
Do outro lado, movimentos guerrilheiros se organizaram e, com o apoio da Índia, que mantinha uma relação conflituosa com o Paquistão desde a independência de ambos, coordenaram um enfrentamento que resultaria, ao final daquele ano, em uma rendição das tropas paquistanesas e na declaração de independência de Bangladesh.
O resto do mundo virou o rosto para o conflito. Não houve apoio ou crítica a nenhuma das partes, elas que se virassem. Uma única autoridade se levantou para condenar a guerra e denunciar os horrores que ali aconteciam, Paulo VI. Fazendo um apelo moral, criticou duramente as Nações Unidas e os líderes dos demais países. E, a partir de então, mobilizou as instituições cristãs no leste da Índia para prestar auxílio aos refugiados que se amontoavam.
Não sei, e nunca saberei, se aquela reunião que vi ao longe foi especial, ou apenas uma entre tantas. Nunca saberei se aquele foi ou não o dia em que o Papa tomou sua decisão. Mas gosto de imaginar que, por acaso, assisti a um momento histórico. Quanto ao novo país que ali surgia, sua vida seria incrivelmente desafiadora. Três anos mais tarde enfrentaria o desafio da Grande Fome, que vitimaria milhares de pessoas. Mas, hoje, é um igual entre as nações e merece nosso respeito.
E nunca esqueci, também, das decisões que se impõem a um Pontífice. Enfrentar o que há de mais sofrido e lidar com as dores mais sérias da humanidade.
Bernardo Lins é doutor em economia pela UnB e consultor legislativo aposentado da Câmara dos Deputados e associado do IBAP. Escreve todo o dia 16 do mês na Revista PUB.
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